A SINA DE DERILDITA - Imagem: arte da artista Adélia Klinke. - Derildita nasceu em Quiduru, um povoado vizinho de
Alagoinhanduba. Sonhava ir lá: Pai, quando a gente vai? Logo, minha filha. Mãe,
quando a gente vai lá? Depois. E cresceu com tudo ao redor, até o dia em que
encontrou Deginaldo: Você é daqui? Não, sou de Alagoinhanduba. Pronto. Ele não
era lá essas coisas, nem podia; mas ela se encheu de esperanças num namorico
arrochado entre mãos, saias, braguilhas e sarro pesado. A coisa além dos limites
quando o pai dela flagrou com os ouvidos na boca dos outros: deu-lhe uma pisa e
no meio das lamboradas raivosas, ela teve a petulância vingativa de dizer que
não tinha mais os três vinténs – mentira só sua para desmoralizar a ira do pai -,
foi escorraçada pra rua sem bem nem terém. Não tinha pra onde ir e foi ter com
Deginaldo que se escondia dela depois do incidente, encontrando-o surpreso numa
esquina ao meio dia. Ela não esperava aquilo: uns trocados nas mãos e a fuga
alvoroçada dele. Chorou sentada no batente. Apertou o peito, empinou a venta
sem direção, seguiu adiante até a condução e se foi pra nunca mais voltar. O
sonho, apesar dos pesares, era real: chegou lá e andou e pernoitou e sorriu e
morreu, passou fome, perdeu-se, recolheu-se a céu aberto e se desfez de si para
ser o que fosse. Era outra até ser recolhida morta de fome e sono de dias, por
uma mão amiga. Aquela seria daí por diante a sua única parente. Comeu,
asseou-se, ganhou presentes e vestes como se fosse de casa, e era pra ela. Estava
feliz, menos com as mãos do atrevimento dos homens que iam e vinham por seu
corpo. Fora persuadida: não reprima, entregue. Asco contido, deu-se apesar da
repulsa aos beijos, mãos, tapas e pênis nas faces, entre as pernas, entre os
seios, rasgando sua carne e alma. O que parecia amor era cruel: subjugada,
subtraída, seviciada. Não era isso querer, nem poderia mais querer nada, era
grata, só isso. Perdia tudo de seu: nome, dignidade, afeto. A violência era o
seu convívio, fodida e mal paga. Quem era? Não sabia, deixou de ser: apenas uma
inútil presença qual ínfimo descarte ou perda, resto. E dançava nua entre
dedadas, puxavanques e pegações, até cair desacordada aos murros e esporros. No
meio de tantos martírios de quase décadas, apareceu Venancinho, um gorducho
catingoso que lhe chegou com acarinho, oferecendo casa, comida e agasalho.
Fugiu com ele e dividiu a vida entre o conforto e as porradas: apanhava todo
dia para não botar a cara na janela, porque era uma puta na casa dele e ninguém
dali podia saber que lá estava. Escrava entre quatro paredes, preparando a
comida, limpando a casa, lavando roupa, cuidando da higiene que ele não tinha. Quantas
vezes fedendo e aos vômitos e entupido de álcool não a fez lambê-lo e chupá-lo
dos pés à cabeça, removendo detritos entre as dobras da carne com a língua e,
ao final do suplício, apanhar de render-se nua e em carne viva à sua crueldade.
Outros tantos anos de tormento e ela muda e servil, atravessando a vida. Foi
quando ele teve um troço, uma pilora descontrolada, de se debater por socorro,
ela apenas via o seu estertor, paralisada. Não sabia o que fazer, nem queria.
Viu-o estrebuchar agoniado e, de repente, dar um último suspiro aliviado e
ficar imóvel até o sepultamento. A família revoltada não sabia quem era ela,
naturalmente a escrava responsável pela morte dele. Como sempre enxotada,
voltou pra rua sem ter ninguém nem pra onde ir depois de tantos anos. Passou a
ser levada pelo vento até sumir definitivamente. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio
Tataritaritatá especial
com a música do compositor, pianista e arranjador Radamés
Gnattali
(1906-1988): Sinfonia Popular, Concerto de Copacabana, Concerto nº 3 &
Concerta para Viola & muito mais nos mais de 2
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mil acessos ao
blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir
é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS – [...] Aí
está um estudo para se fazer. A gente procura resolver os mistérios da Lua e de
Marte, mas com os mistérios que pululam ao nosso redor ninguém se preocupa.
Trecho do artigo Os sobrenomes,
extraído da obra Melhores crônicas
(Global, 2004), da escritora, jornalista, dramaturga e tradutora Rachel de
Queiroz (1910-2003). Veja mais aqui.
A DECADÊNCIA DO OCIDENTE – [...] Quem
não compreender que tal desenlace é absolutamente inalterável; que nos cabe
desejar isso ou nada; que temos de amar esse destino ou desesperar do futuro e
da própria vida [...] quem perambular
pelo mundo com idealismo provinciano, à procura do estilo de vida de épocas
passadas, deverá desistir do proposito de entender a História, de viver a
História, de criar a História. [...]. Trechos extraídos da obra A decadência do ocidente: esboço de uma
morfologia da história (Zahar, 1964), do historiador e filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936), que em
outra obra, O homem e a técnica
(Guimarães & C, 1980), assinalou que: [...] Estes homens têm um menosprezo, derivado da sua vontade de domínio, por
todas as limitações temporais e espaciais, colocando o ilimitado e o infinito
no centro dos seus objetivos possíveis; subjugam continentes inteiros, envolvem
a Terra com as suas cerradas redes de comunicação e de transportes. É esta
vontade de domínio que transforma literalmente o planeta, através da força da
sua energia prática e do poder gigantesco dos seus processos técnicos.[...].
O AMANTE DO VULCÃO - [...] É
a entrada de um mercado de pulgas. Não se paga ingressos. É grátis. Gente mal-ajambrada.
Vulpinos, brincalhões. Por que entrar? O que você espera ver? Estou vendo. Estou
constando o que há no mundo. O que sobrou. O que foi descartado. O que não se
quer mais. O que teve de ser sacrificado. O que alguém pensou que poderia
interessar a outro alguém. Mas é lixo. Se existe algo aqui ou ali, já foi
peneirado. Mas lá pode haver algo valioso. Não exatamente valioso. Mas algo que
eu que eu poderia querer. Querer resgatar. Algo que me fale. Que fale aos meus
anseios. Que fale com alguém, fale algo. Ah... [...]. Trecho do romance O amante do vulcão (Companhia das
Letras, 1993), da premiada Susan
Sontag, pseudônimo da escritora, crítica de arte e ativista estadunidense
Susan Rosenblatt (1933-2004), Veja mais aqui.
TRES POEMAS - A DÉCIMA
MORTE – Se tens mãos, elas me sejam / de um tato sutil e brando, / apenas
sensível quando / anestesiado me creiam; / e que teus olhos me vejam / sem
olhar-me, de tal sorte / que nada me desconforte / ao te roçar, ao te ver, /
para não sentir prazer, / e nem dor, contigo, Morte. / Por caminhos ignorados,
/ por secretos entremeios, / por misteriosos veios / de troncos recém-cortados,
/ te vêem meus olhos fechados / penetrar-me a alcova escura / e converter-me a
figura / opaca, febril, cambiante, / em matéria de diamante, / luminosa, eterna
e pura. / Não durmo, querendo vcr-te, / lenta, chegar, apagada, / querendo
ouvir-te, pausada, / a voz que silêncios verte; / para que, tocando o nada, /
que envolve teu corpo incerto, / e ao teu aroma deserto, / possa, sem sombra de
engano, / a ti saber que me irmano, / sentir que morro desperto. / O ponteiro
dos segundos / percorrerá seu quadrante; / será tudo em um instante / desse
espaço moribundo / que, largo, só e profundo, / será dócil ao teu passo, de
modo que o tempo forte / prolongará nosso abraço / e assim será possível /
viver mais depois da morte. / Morte, em vão ameaçadas / fechar-me a boca à
ferida / e pôr fim à minha vida / com uma palavra baça. / Que desejas mais que
faça, / se, na dor que me devora, / violei a tua demora; / se pro ver tua tardança,
/ para encher-me a esperança / que não morra não há hora. INVENTAR A VERDADE - Faço atento o
ouvido ao peito, / como, na praia, o caracol ao mar. / Ouço meu coração latir
sangrando / e sempre e nunca igual. / Sei por quem ele late assim, mas não
posso / dizer o porquê será. / Se começasse a dizê-lo com fantasmas / de
palavras e enganos, ao acaso, / chegaria, tremendo de surpresa, / a inventar a
verdade. / Quando fingi que te amava, não sabia / que já te amava! DESEJO - Amar você com fogo duro e
frio. / Amar você sem palavras, sem pausas, silêncios. / Amar você tão-só
quando você quiser / e tão-só com a presença muda dos meus atos. / Amar você na
ponta da língua e enquanto a mentira / em você não se diferencia da ternura. / Amar
você quando finge toda a indiferença / que seu abandono nega, que funde seu
calor. / Amar você cada vez que tua pele e boca / procurem minha pele dormindo,
minha boca desperta. / Amar você pela solidão, se você me abandona nela. / Amar
você pela cólera que acende em meu coração. / E mais que pela alegria e o
delírio, / amar você pela angústia e a dúvida. Poemas do poeta e dramaturgo
mexicano Xavier Vilaurrutia (1903-1950).
A ARTE DE NEILA TAVARES
A atriz,
escritora, jornalista e apresentadora de televisão, Neila Tavares, em momentos de arte: no filme Cada vez mais longe (2014), de Eveline Costa & Oswaldo Eduardo
Lioi; na novela Gabriela (Globo, 1975); no filme Os sensuais: crônica de uma família pequeno burguesa (1978), de
Gilvan Pereira; e A enúltima donzela
(1969), de Fernando Amaral com música de Egberto Gismonti; e em fotos de
Guillaume St Martin. Veja mais dela aqui e aqui e uma entrevista dela aqui.
AGENDA
&
A arte da artista Adélia
Klinke.
&
Emoções que me dou feliz de sonhar, Ludwig Feuerbach, A arte visionária de Laurence Caruana, Antônio Torres, Aníbal Beça, Jacqueline
Bisset, Natália Correia, Alex
Grey, Colégio Estadual Eliseu Pereira de Melo, Arnold
Schoenberg, Clara Schumann, Constança Capdeville & Itamar Assumpção aqui.