OS FANTASMAS DA BIBLIOTECA – Imagem: Him
Again, do pintor francês David Gista.
- Ao regressar para minha terra, resolvi fazer
uma residência voluntária na Biblioteca Pública: unia, assim, o útil ao
agradável. Sempre fui refém dos livros, desde menino. Ficava maravilhado com as
estantes abarrotadas do meu pai e adorava, às escondidas, surrupiá-los,
folheá-los, lê-los e descobrir narrativas, como as de Borges, Bachelard, Nejar,
Eco, Canetti, Alberto Manguel, Carlos
Dominguez, Bonnet, o mundo de Midlin, a autobiografia de Andrea
Kerbaker, outros muitos. Nunca fui bibliômano,
esses são os que compram livros e livros e não lêem nem deixam ninguém sequer
abrí-los, servindo só para enfeite e vaidade. Curioso de gente que compra
livros e os mantém intactos, ou abrindo-os com todo cuidado, um ritual de não
deixar uma página sequer machucada nem com rugas a lombada. Sempre fui desajeitado,
gosto de dobrá-los, riscá-los, relê-los, assíduo visitante de sebos,
livrarias e bibliotecas. Reúno alguns poucos volumes em algumas estantes.
Quando me convidam para uma visita, a primeira coisa que me chama atenção em
qualquer lugar são os livros. Os curiosos que me chegam, perguntam logo: já leu isso tudo? Quem lê muito fica doido. Sou doido de
nascença mesmo, advirto, e até os meus livros possuem um pacto entre eles de
nunca me deixar achar aquilo que procuro, afora os que dão cria, de um só
volume viram muitos exemplares, como o esfíngico Assim falou Teles Júnior.
Também já dei de cara com maníacos outros, como o intelectual de sovaco: só os
compra para acomodá-los às axilas e se passar por contumaz leitor, sem nunca
ter lido além da capa e orelhas, quando muito, mais nada. Voltando ao papo da
Biblioteca, pois bem: lá estava eu no habitat mais aprazível para mim, o paraíso. Ao cabo de alguns
meses, como eu era o primeiro a chegar e o último a sair de lá, o diretor me confiou
as chaves. Ao acordar por volta das cinco da manhã, eu ia pra lá. Chegando mais
cedo que de hábito, ao abrir a porta tomei um susto: fui recepcionado pelo
patrono. Como pode? Pode entrar, disse-me. Um carrancudo dramaturgo que matava
todo mundo nas cenas, exceto o ponto porque fugia antes do final. Convidou-me e
fui arrepiando dos pés à cabeça. Parecia haver uma reunião: vi de cara Ascenso
que se aproximou e me puxou pelo braço falando das ladainhas do invisível que
influenciam o sangue e o mau tempo, dizia: Todos os fantasmas moram no Rio Una.
É de lá que eles saem todas as noites para os festejos daqui, do Clube
Literário. Logo se aproximou o comediógrafo Lelé Correa que me chamava atenção
com piadas que conjuravam desgraças, apontando para o Jayme Griz a recitar uma
poesia com a participação de Eliseu Pereira que solfejava uma ópera, ao som do
piano do Dery, regidos pelo maestro Zé da Justa. Ao lado, João Costa balbuciava
frases sobre as trevas da noite e os seus mistérios, virando um copo de bebida,
acompanhado de Abel e Raymundo que soltavam lorotas para Elita, Stella e Julia
Leite. Sentado mais adiante estava Artur Griz obstinadamente fechado folheando
sua enciclopédia, enquanto Calazans largava trovas para Amaro Matias. Dei por
conta a chegada de Hermilo com uma estatueta cheia de escoriações, a me dizer
que verei tudo que terei de ver, e me conduziu a um copioso repasto às maiores abluções,
nas quais proclamavam ser aquela a verdadeira realidade, enquanto nós, os que
se dizem vivos, todos vivíamos no embuste dos sentidos. Levou-me por um tapete
bonina que mais parecia uma passarela para desfiles. Todos estavam ali, vi. Não
os temia mais, até colaborava com as façanhas deles. A imaginação ditava as
regras: contavam de um beiçudo caeté que vivia no fundo do sétimo mar que vez
em quando aparecia para nos ensinar a vida; ou de um insurreto oculto na
solidão do deserto, e dos personagens que saltavam dos livros para conversarem
conosco. Cochichou-me Hermilo dos livros que encontrei escondidos entre uma
estante e outra. Sim, isso ocorria com frequência, não sabia que era iniciativa
deles, para me perturbar. Isso dissipava meus temores já achegado ao circulo
habitual. Passei a entender o pacto dos livros em me tapiar: procurava ao
máximo colocá-los nos lugares devidos e, no dia seguinte, deparava com prateleiras
desorganizadas, assuntos misturados, tudo fora de ordem. Eram eles que faziam a
confusão. Hermilo então me confidenciou sobre a assiduidade de determinados
visitantes diários, também fantasmas enlouquecidos e ocultos em formas humanas:
o que furtava livros todos os dias, sem saber a causa, disse-me: Ele fugiu de
uma história e se perdeu. Por isso todo dia rouba um livro para voltar, mas a
maldição não permite. Falou-me daquele mitômano que senta todo santo dia como entretido
na leitura que não faz, passa a manhã todinha e no início da tarde sai na sua
loucura de misturar ideias à realidade. Entre outros haviam os obcecados que
chegavam ali para encontrar suas próprias doidices nas leituras de terror, ou crimes
hediondos, psicopatologias e os mais diversos horrores da humanidade. Alguns
apareciam na veneta, carregados de remorsos a espremer seus íntimos e soltar
suas enfermidades em conversas longas e demoradas comigo, relatando coisas como
se fossem de outras pessoas quando, na verdade, eram seus próprios desatinos. Todos
eram fantasmas que vagavam pelos dias, esses os condenados à vida que, a
exemplo de Bonnet, me apresentavam curiosidades estranhíssimas recolhidas de suas
próprias vidas como se recolhidas das epopeias, como a da morte do compositor Charles
Alkan, esmagado pelos livros da sua própria biblioteca; o poeta Gilbert Lély que só reunia cem volumes, ou aqueles
que apareciam com cortes de vítimas de bordeline ou
Síndrome de Lesch-Nyhan, utilizando-se
das páginas de livros para autogolpes; aqueles que utilizaram de grossíssimos
volumes para abater seus alvos humanos; aqueles que foram atacados pelos
personagens revoltosos que emergiram das histórias lidas, ou os que misturaram
suas vidas entre os relatos ficcionais, os que assumiram a personalidade de
seus heróis históricos, os que enlouqueceram com o volume de informação de suas
leituras, os que mergulharam nos cenários narrativos para nunca mais voltar, os
que viraram verbetes de dicionários e enciclopédias, enfim, não sabia que vivos
e mortos pagavam suas contas à revelia. Era adorável, pois, durante oito meses convivi
antes e depois do horário de funcionamento com os fantasmas do Una, benfeitores
que apenas gozavam da outra vida deles; era doloroso, durante o expediente,
encontrar outros tantos disfarçados de gente que me exaltavam qualidades e
virtudes que nunca tivera, teimando ambíguos em transitar entre a minha atenção
e os logradouros, com pinoias e lamentações inaceitáveis, os menores que seu
próprio tamanho. Oito meses inesquecíveis nos labirintos da biblioteca. E a minha
história acabou. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música do compositor e multi-instrumentista
mexicano Carlos Santana: Concert Live, Shaman, Supernatural & Abraxas & muito
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500 mil acessos ao blog & nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para conferir é só ligar o som e curtir. Veja
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PENSAMENTO DO DIA – [...] Os
perigos dos quais se tem medo (e também os medos derivados que estimulam) podem
ser de três tipos. Alguns ameaçam o corpo e as propriedades. Outros são de
natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem social e a
confiabilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego)
ou mesmo da sobrevivência, em caso de invalidez ou velhice. Depois, vêm os
perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a posição na hierarquia
social, a identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais
geral, a imunidade à degradação e à exclusão social. [...] E, como você deve ter adivinhado, não há
como revogar totalmente as expulsões. A questão não é se, mas quem e quando. As
pessoas não são eliminadas por serem más, mas porque faz parte da regra do jogo
que alguém deve ser eliminado e porque outras pessoas se mostraram mais habilidosas
na arte de se descartar de outras como elas; ou seja, eliminar outros jogadores
do jogo que todos jogam, os que expulsam e também os que são expulsos. Não é
que as pessoas sejam expelidas por terem sido identificadas como indignas de
permanecerem. É exatamente o contrário: as pessoas são declaradas indignas de
permanecerem porque há uma cota de eliminações que deve ser cumprida. [...]
Trechos da obra Medo líquido (Zahar, 2008), do sociólogo polonês Zygmunt
Bauman (1925-2017). Veja mais aqui e aqui.
O AMOR – [...] Ao contrário daquilo que filósofos,
moralistas, teóricos, afins e psicólogos sempre afirmaram, o amor não é um
escolha. É um imperativo biológico. E assim como a evolução favoreceu seres
humanos capazes de fincar de pé, ela favoreceu os seres humanos que sentiam
amor, porque o amor possui um grande valor de sobrevivência. Aqueles que sentiam
amor asseguravam a sobrevivência de sua prole, essa prole herdou a capacidade
de amar e viveu mais tempo e teve mais filhos seus. Com o decorrer do tempo, a
tendência ao amor tornou-se parte de nossos dotes genéticos, por fim tornou-se
mais profundamente inata do que uma simples tendência, aptidão ou legado, e sua
riqueza passou a subsidiar todas as iniciativas de nossa vida. Os seres humanos
tornaram-se capitalistas aventureiros emocionais. [...] Quando amamos com todo nosso coração, com
toda nossa alma, com toda nossa vontade, trata-se de uma paixão elétrica. O
amor desenvolve-se nos neurônios do cérebro, e sua maneira de crescer depende
de como esses neurônios foram treinados quando éramos crianças. [...] Nossa maneira de amar é uma questão de experiência.
[...]. Trechos extraídos da obra Uma
história natural do amor (Bertrand Brasil, 1997), da escritora e
naturalista estadunidense Diane Ackerman.
Veja mais aqui e aqui.
A PORTA ILUMINADA – [...] Aqui
não se deve morrer. [...] No
rês-do-chão habita um sujeito chamado El Alami; homem de cinquenta anos, sempre
de mau humor que aterroriza sua jovem mulher, ameaçando-a todos os dias de
repúdio. Mas eu amo esta pobre Aicha que se ouve chorar com soluços de criança
e fungos de menina ranhenta. Eu a amo porque ela é sempre limpa e canta com
gorjeios de andorinha: Amor! Amor! / Abriste meu coração / para aí te alojares.
/ Nem médico nem fqih / podem nada contra ti. Minha não compartilha da minha
simpatia para com a jovem. [...] Aicha!
Sonho para ti uma existência melhor, saturada de perfumes e flores, acalentada
de cantos de pássaros. Com gorjeios de andorinha cantarás todo o dia atrás das
árvores do jardim [...] Aicha reina
neste palácio e canta sobre as romanzeiras em flor [...] Esta canção me vem aos lábios; não
compreendo o seu sentido, mas há necessidade de que uma canção tenha sentido? [...]
Aicha, não chores mais com teu soluço de
criança, teus fungos de menina nervosa. Os escravos preparam caçoilas de
perfume; estendem tapetes da Pérsia para receber-nos. Vem, vem, para nós
nenhuma porta ousará permanecer fechada. Todos os dias, através dos maciços
jasmins, cantaremos com gorjeios de andorinha [...]. Trecho de conto do escritor
marroquino Ahmed Sefrioui
(1915-2004).
SE O HOMEM PUDESSE DIZER - Se o homem pudesse dizer o que ama, / Se o
homem pudesse levantar seu amor pelo céu / Como uma nuvem na luz; / Se como
muros que se derrubam, / Para saudar a verdade erguida no meio, / Pudesse
derrubar seu corpo, deixando só a verdade de seu amor, / A verdade de si mesmo,
/ Que não se chama glória, fortuna ou ambição, / Mas amor ou desejo, / Eu seria
aquele que imaginava; / Aquele que com sua língua, seus olhos e suas mãos / Proclama
ante os homens a verdade ignorada, / A verdade de seu amor verdadeiro. / Liberdade
não conheço senão a liberdade de estar preso em alguém / Cujo nome não posso
ouvir sem arrepio; / Alguém por quem me esqueço desta existência mesquinha, / Por
quem o dia e a noite são para mim o que quiser. / E meu corpo e espírito
flutuam em seu corpo e espírito / Como troncos perdidos que o mar afoga ou
levanta / Livremente, com a liberdade do amor, / A única liberdade que me
exalta, / A única liberdade por que morro. / Tu justificas minha existência: / Se
não te conhecer, não vivi; / Se morrer sem te conhecer, não morro, porque não
vivi. Poema do poeta e critico literário espanhol Luis
Cernuda (1902-1963). Veja mais aqui e aqui.
FANTASMAS NA BIBLIOTECA
[...] os livros eram
onipresentes e formavam verdadeiras florestas com alamedas, avenidas, bosques,
caminhos, nos quais se tropeçava nas pilhas e nos montes que transbordavam das
prateleiras, abarrotavam as mesas, os móveis, os assoalhos... [...] Curiosamente, a fonte infinita de informações
que constitui a internet não tem para mim o mesmo estatuto mágico que a minha
biblioteca. Estou diante de meu computador, graças ao qual posso chegar a todas
as informações imagináveis, ainda mais mestre do tempo e do espaço, e, no
entanto, falta aí o "divino". Talvez se trate de uma questão
corporal: faço isso com a ponta dos dedos, e tudo permanece exterior, passando
por uma máquina e uma tela. Nada a ver com minhas paredes atapetadas de livros
que eu conheço — quase — de cor. De um lado, tenho a impressão de estar no
comando de um braço articulado capaz de todas as performances no vazio sideral
exterior, de outro, num útero cujas paredes são atapetadas de prateleiras cujo
arquétipo romanesco poderia ser o Nautilus. Como se vê, a questão não é apenas
de racionalidade. [...].
Trechos
extraídos da obra Fantasmas na biblioteca
(Civilização Brasileira, 2013), do escritor francês Jacques Bonnet. Veja mais
aqui e aqui.
Semana Hermilo & Bienal
Internacional do Livro de São Paulo & muito mais na Agenda aqui.
&
A arte do
pintor francês David Gista.
&
Amizade & dos amigos & amigas, a poesia
de Carlos Drummond de Andrade, a
literatura de Ana Maria Machado, a arte de László Moholy-Nagy, a música de Tom Jobim, Guiomar Novaes, Sebastião Tapajós & Teca Calazans aqui.
APOIO CULTURAL: SEMAFIL
Semafil Livros nas faculdades Estácio de Carapicuíba e Anhanguera de São
Paulo. Organização do Silvinha Historiador, em São Paulo. Fone: 11 98499-2985.