O SONHO DE VERA – Imagem: arte da
artista espanhola Maria José Aguilar
Gutierrez. - Desde criança Paulina chamava atenção em Toulouse. Aos quatro anos
já tocava piano feito gente grande. Aos seis impressionava plateias. Aos dez
escrevia versos recitados em impressionantes recitais e saraus. Aos quinze
enfrentava filas de pretendentes, formando claque inarredável. Aos vinte não
podia sair às compras sem a companhia de uma multidão colada aos gestos e
poses. Sua chegada incomum, aonde quer que fosse causava os mais diversos
transtornos, desastrosos prejuízos, congestionamentos inusitados. Atrapalhava desde
o funcionamento das instituições e negócios, dificultando o passeio e a vida
religiosa da localidade, todos não paravam de lhe atormentar com galanteios e
mesuras. Foi preciso intervenção de autoridades para coibir seus passeios de
tarde, suas aparições na varanda, sua ida à feira ou mesmo a festas no final de
semana. Os reclamos emergiam de toda parte, promovendo uma ação jurídica para
determinar que aparecesse apenas duas vezes por semana na sacada de sua
residência, nada mais. A cobiça era tamanha de envolver o clero, a corte e os
mais proeminentes de todos os países e continentes. Filas enormes se faziam em
frente a sua casa, consumindo seus dias de clausura. Diante da sua recusa a todas
propostas dos candidatos, passou a ser o alvo de tramas forjadas não só pelas
mulheres invejosas, como pelos mais importantes homens do mundo, acusando-lhe
de feitiços ao coração dos mais inocentes cristãos de toda parte, como de
esnobe bruxa causadora da ruina de nobres e plebeus em todos os rincões. Aumentava
o seu confinamento a jactância dos mais afoitos, como as blasfêmias de mulheres
e religiosos, sem poder mais sair, nem se debruçar à janela, apenas para
realizar seus concertos e apresentações públicas, sob rigorosa segurança.
Estava aprisionada em sua própria venustidade, tornando-se a reedição da sina milenar
da formosa Frineia, aquela hetaira grega Mnesaretea que durante o Festival de
Posidão, em Elêusis, despiu-se colocando suas vestes de lado, soltou os cabelos
e mergulhou nua no mar, à vista do povo, tornando-se exaltada como a Afrodite
Anadyomène do pintor Apeles, retratada antes do Areópago por Jean-León Gerôme e
pela estátua da Afrodite de Cnido de Praxíteles, cantada por Baudelaire, Rilke
e Saint-Saëns. Por conta disso foi condenada sem direito a defesa. Em situação
idêntica estava Paulina de Viguière, acusada não só de profanar os antigos Mistérios
de Elêusis quase nem mais vigentes, como o de disseminar a loucura dos homens e
arruiná-los para a queda como uma Eva despudorada, e afrontar os dogmas da
Inquisição. A acusação foi apresentada perante o tribunal, por um furioso
Savonarola de plantão reencarnado de Anaxímenes de Lâmpsaco, numa sessão pública
que entrava pelo terceiro dia de duração, e convocá-la a comparecer
imediatamente para receber a sentença. Acuada em sua residência, recebeu a
visita do defensor Hipérides que chegara ao seu socorro, orientando-a a
desnudar-se perante a corte judicial. Recusou-se terminantemente, sob a
alegação de quem não deve não teme. Olvidou de todos os conselhos, seguiu de
fronte erguida para enfrentar seus algozes, acompanhada pelos oficiais aos
apupos, ameaças e difamações vociferadas pela população que seguia em seu
encalço. Ao chegar ao recinto apinhado, sua presença causou o maior estardalhaço
no júri. Denúncias surgiam de todos os lados, imputando-lhe os mais hediondos
crimes. Viu-se, então, obrigada a atender o conselho, e no meio da solenidade desnudou-se
e todos ficaram hipnotizados com a sua extrema beleza. Mesmo que a sua nudez fosse
considerada como de fato era divinal, não podia vacilar. E ao se ajoelharem, todos
cabisbaixos, em sua homenagem, tratou de fugir e seguir seu destino. A partir
de então foi perseguida pelos quatro cantos do mundo, pela marcha inexorável dos
mais poderosos exércitos, todos ávidos por capturá-la. Ao se evadir, atravessou
os pontos cardeais, todos os hemisférios e polos, sem que ela jamais sossegasse,
nem encontrasse paradeiro seguro. Não havia mais como escapar, nem pra onde, jamais
se veria livre desse fadário, sozinha, apavorada e sem ter a quem recorrer
nessas horas de extremo apuro. Aos gritos e lavada em suor Vera acordou-se
desesperada. Demorou a perceber o pesadelo recorrente que lhe atormentava o
sono por noites seguidas. Era madrugada, alguém batia à porta e ouvia-se uma
voz de mulher idosa chamando-a pelo nome. Assustada ainda com o sonho dantesco,
teve coragem de ir, perguntando atrás da porta quem era, sou eu, eu quem, sou
eu, Vera, abra, preciso lhe falar. A voz parecia amigável e constatou ao abrir
a portinhola. Abra, sou sua amiga de muito tempo, minha filha, na verdade você
é fruto do meu ventre por milênios, desde os tempos da Frinéia de Téspis na
Beócia, de Paulina de Viguière e de outras tantas belas que, como você, foram
agraciadas com a formosura das deusas do Olimpo e de todas as Eras. Quanta
coincidência aquela anciã tratar exatamente do que ocorrera em seu pesadelo.
Ela prosseguiu em tom ameno e amigável: a sua salvação, minha filha, chega com
um dever: todas as noites, antes de dormir, você deve acender duas velas nos
castiçais e, de joelhos, rezar a oração de Ísis, sua mãe que sou eu. Ao ouvir
aquilo, Vera arrepiou-se. Ainda sonolenta, procurou entender tudo aquilo,
fechou os olhos buscando forças para enxergar melhor aquela que falava e, ao
abri-los, não havia ninguém. Atravessou a porta procurando de um lado a outro,
nenhum sinal de nada na rua, nem de movimento, o canto mais limpo. Aterrorizada
com tudo, Vera escondeu-se embaixo do travesseiro e tentou dormir, não conseguia.
Voltava-se, inquieta, não achava canto nem conforto. Ao se levantar para tomar
água, encontrou sobre a mesa a oração manuscrita em ouro com uma caligrafia de letras
arredondadas, num papel estranhíssimo de cor púrpura e, a partir de então,
jamais dormiu sem homenagear a deusa. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais abaixo e aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com a música da compositora russa Sofia Gubaidulina: Fachwerk, Sonata, In Tempus Praesens & Fachwerk
for bayan percussion and string orchestra & muito mais nos mais de 2 milhões & 500 mil acessos ao blog &
nos 35 Anos de Arte Cidadã. Para
conferir é só ligar o som e curtir. Veja mais aqui e aqui.
PENSAMENTO DO DIA – [...] Somos
seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente em uma aventura
inteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a
situação que nos sujeita à individualidade do acaso, à individualidade
perecível que somos. Ao mesmo tempo em que temos o desejo angustiado da duração
deste perecível, temos a obsessão por uma continuidade primeira, que nos religa
geralmente ao ser. [...]. Trecho extraído da obra O erotismo (Arx, 2004), do
escritor francês Georges Bataille (1897-1962). Veja mais aqui, aqui e aqui.
TOLERÂNCIA & IMBECILIZAÇÃO - […] A
tolerância com a imbecilização sistemática de crianças e adultos pela
publicidade e propaganda, a libertação do espírito destrutivo ao volante dos
automóveis, o recrutamento e treinamento de forças militares especiais, a
importante e benevolente tolerância com a fraude declarada no comércio, no
desperdício, na obsolescência planejada, não são distorções ou aberrações, constituem a própria essência que
fomenta a tolerância como meio de perpetuar a luta pela vida e suprimir as
alternativas [...]. Trecho extraído da obra Crítica da tolerância
pura (Zahar, 1970), do sociólogo e filósofo
alemão pertencente à Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse (1898-1979), em
parceria com Robert Paul Wolff & Barrington Moore Jr. Veja mais aqui e
aqui.
BONS CONSELHOS – Não seja tutelado,
não seja colonizado, não seja calado, não seja ignorante, não seja submisso,
não seja indiferente, não seja amargo, não seja intolerante, não seja medroso,
não seja burro. Meu pai
nunca me deu estes conselhos da forma sistematizada que está aí. mas deu todos,
inclusive mostrando como era que se fazia.[...]. Trecho extraído da
obra Dez
bons conselhos de meu pai (Companhia das
Letrinhas, 2017), do escritor, jornalista e professor João Ubaldo
Ribeiro (1941-2014). Veja mais aqui.
DOIS POEMAS - O CACHIMBO DO POETA:
Sou o Cachimbo de um poeta, / Sua ama: que a Besta lhe aquieta. / Quando um sonho
cego apanha / A fronte em seu louco trajeto, / Fumego… e ele, no seu teto, / Já
não vê as teias de aranha. / …Eu dou-lhe um céu de paisagens: / Nuvens, mar,
deserto, miragens; / – Seu olho morto ali se perde… / E quando a névoa se faz
pesada / Crê ver uma sombra passada, / – E minha boquilha ele morde… / Outra
tormenta desabrida / Solta-lhe alma, corrente e vida! / …Sinto-me que apago. –
Ele dorme – AVENTURA GALANTE E A
VENTURA: (Odor della feminità).
Eu faço o ponto, quando belo vai o dia, / Para a passante que, com
satisfação, / À ponta da sombrinha me fisgaria / O piscar da pupila, a pele do
coração. / E acho que estou feliz – um pouco – é a vida: / O mendigo distrai a
fome na bebida… / Um belo dia – triste ofício! – eu, assim, / – Ofício!.. –
velejava. Ela passou por mim. / – Ela quem? – A Passante! E a sombrinha também!
/ Lacaio de carrasco, toquei-a… – porém, / Contendo um sorriso, Ela espiou meus
botões / E… estendeu-me a mão, e… / me deu uns tostões. Poemas
do poeta francês Tristan Corbière (Édouard-Joachim Corbière - 1845-1875).
Veja mais aqui.
O JULGAMENTO DE FRINEIA
Ocorrido
por volta de 400aC, o caso da cortesã Frineia
inspirou várias obras de artes, como a obra Il
processo di Frine (Majell, 2004) do escritor Edoardo Scarfoglio; a série
cinematográfica Altri tempi (1951),
com o epílogo Il processo di Frine,
de Alessandro Blasetti, bem como Apeles, Jean-Léon Gerome, Baudelaire,
Rilke, Saint-Saëns, Antonio Parreiras e até o poeta brasileiro Olavo Bilac, sem
contar com a homenagem feita por Eugéne Joseph Dalporte ao denominar o asteroide
1201 Phyrne, descoberto em 15 de setembro de 1933. Veja mais aqui.
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A arte da artista espanhola Maria José Aguilar Gutierrez.
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Quando se sentir só, fale comigo!, a poesia de Vladimir Maiakovski, a literatura de Ernest Hemingway, a arte de Cildo Meireles, A caverna das mãos na Argentina, a música
de John McLaughlin, Felicja Blumental, Wagnert Tiso e Ida
Presti aqui.
APOIO CULTURAL: SEMAFIL
Semafil Livros nas faculdades Estácio de Carapicuíba e Anhanguera de São
Paulo. Organização do Silvinha Historiador, em São Paulo. Fone: 11 98499-2985.