
O VELHO & O MAR DE HEMINGWAY
[...] Na treva,
porém, sem clarão fulgindo, nem luzes, só com o vento e o firme impulso da
vela, sentiu-se como se já estivesse morto. Juntou as mãos para sentir as
palmas. Não estavam mortas, e era capaz de sentir a dor da vida, apenas com
abri-las e fechá-las. Encostou as costas à popa, e reconheceu que não estava
morto. Os ombros lho disseram. [...] "Não
devo pensar em tolices. A sorte é coisa que vem de muitas formas. Quem sabe
reconhecê-la? No entanto, eu aceitava alguma em qualquer forma, e pagava o que
me pedissem. Quem me dera ver o clarão das luzes. Quem me dera tanta coisa! Mas
é isto o que eu quero agora". Procurou instalar-se mais confortavelmente
ao leme, e pela dor sabia que não estava morto. [...] Sentia-se
dormente, dorido, e as feridas e as partes mais esforçadas do corpo doíam-lhe
com o frio da noite. "Espero não ter de lutar mais, pensou. Tanto espero
não ter de lutar outra vez!" Mas, por volta da meia-noite, lutou e dessa
vez sabia que era inútil. Vieram em massa, e apenas via as linhas que as barbatanas
abriam na água e a fosforescência deles ao atirarem-se ao peixe. Batia-lhes na
cabeça, ouvia o estalo das queixadas, sentia o tremer do esquife quando eles mordiam
por baixo. Batia-lhes desesperadamente no que apenas sentia e ouvia, e sentiu
que alguém lhe agarrava no cacete, que se sumiu. Arrancou a cana do leme, e
bateu e feriu com ela, segurando-a com ambas as mãos, abatendo-a vezes
seguidas. Mas vinham pela proa, um após outro, juntos, arrancando pedaços de
carne, que brilhavam dentro do mar quando eles se voltavam para um novo ataque.
Veio, por fim, um, que se atirou à cabeça, e o velho viu que tudo acabara.
Acertou com a cana na cabeça do tubarão, cujas maxilas estavam presas na dureza
da cabeça do peixe, que se não rasgava. Vibrou a pancada uma, duas, três vezes.
Ouvia a cana partir-se, e espicaçou o tubarão com a ponta estilhaçada. Sentiu-a
penetrar e, ciente de que era aguçada, enterrou-a mais. O tubarão soltou-se e
rolou para longe. Era o último tubarão do bando que aparecera. Nada mais havia
de comer. O velho mal podia respirar, e sentia na boca um sabor estranho,
adocicado, metálico, e por instantes teve medo. Mas não durou muito. Cuspiu
para o oceano e disse: -- Comam isso, “galanos”. E fiquem a julgar que mataram
um homem. Sabia-se irremediavelmente derrotado e voltou à popa e verificou que
a ponta partida da cana encaixava no olhal do leme o suficiente para ele poder
governar. Compôs o saco pelos ombros e repôs o esquife no rumo. Vogava ligeiro,
e o velho não tinha pensamentos ou sentimentos nenhuns. Passara por tudo, e
limitava-se a dirigir o barco para o porto, tão bem e tão inteligentemente
quanto podia. Pela noite, tubarões atacaram a carcaça, como alguém pode apanhar
migalhas da mesa. O velho não lhes prestou atenção e a nada prestava atenção
senão ao leme. Apenas reparava em como o barco singrava bem, muito ligeiro,
agora que não levava grande peso na borda. [...].
Trechos da obra O velho e o mar (Livros do Brasil, 1956), do escritor estadunidense & Prêmio Nobel de 1954, Ernest
Hemingway (1899-1961), contando a história de um velho pescador que luta
com um gigante marlim em alto mar. Veja mais aqui e aqui.
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mais sobre:
A
esperança equilibrista, O espaço da cidadania de Milton Santos, Admirável mundo novo de Aldous
Huxley, Os saberes da educação de Edgar Morin, a música de Vivaldi & Michala Petri, a fotografia de Andreas Feininger, a pintura de Gianluca Mantovani & Jose De la Barra, a arte de
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procura da paternidade, Lenda, Mito & Magia, A trombeta do anjo vingador de Dalton Trevisan, Vivendo com as estrelas de Duília de Mello, a
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&
POEMA
PÓSTUMO DE MAIAKOVSKI
Duas
horas em breve. Estás deitada, talvez.
Na
noite, como um Oka de prata a Via Láctea corre.
O
tempo é meu, e os relâmpagos que eram meus telegramas,
Não
mais te virão despertar, atormentar.
Comose
diz: encerra-se o incidente.
A
canoa do amor foi-se quebrar de encontro ao cotidiano.
Eis-me
quite com a vida.
E
é inútil o passar em revista penas, azares e recíprocas feridas.
Vê,
que paz no universo.
A
noite impôs ao céu a servidão de tantas estrelas.
Chegou
a hora em que a gente se ergue e em que fala aos séculos,
À
História, ao universo.
Poema
póstumo,
extraído da obra Autobiografia e poemas
(Presença, 1977), do poeta,
dramaturgo e teórico russo Vladimir Maiakovski
(1893-1930). Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.
RÁDIO
TATARITARITATÁ:
Hoje
é dia de especiais com o guitarrista britânico de jazz John
McLaughlin;
da pianista e compositor polonesa Felicja
Blumental
(1908-1991); do músico, arranjador, regente, pianista e compositor Wagnert
Tiso;
e da violonista francesa Ida Presti (1924-1967). Para conferir é só
ligar o som e curtir.
A ARTE
DE CILDO MEIRELES
A arte do artista plástico Cildo Meireles.