VIVER É TÃO POUCO, É PRECISO SONHAR - Imagem: Despertares, do
artista plástico e professor português Gil Teixeira Lopes. - Ao espelho, à primeira vista, sou eu.
Sim, sou eu, talqualmente sou agora. Olho melhor: será? Não, não sou eu, mas o
que restou de mim. O que realmente sou ficou na infância, quando eu me via
sorridente, olhos vivos, coração livre brincando de tudo. Precoce, não perdi de
todo a infância, escondi apenas. Fui tragado pela pressa no desejo urgente de
viver, malgrado eu sequer soubesse o que era o verdadeiro viver. Impaciente,
construí sonhos e neles mergulhei para saber o doce e o amargo. Adolesci rápido
e nela fiquei até quase maturidade provecta, indiferente a tudo. Tinha pra mim,
lá pelos quinze ou dezesseis anos, que não passaria dos trinta, hoje quase ao
dobro da idade. Obstinei-me aos meus propósitos, olvidando prescrições, rótulos,
modas, um xexéu metido à besta. Por conta disso, sucumbi trocentas e reiteradas
vezes. Aprendi a renascer das cinzas, movido pela determinação. Enfrentei
apupos, reprovações. Na lona, recuperava o fôlego e vestia outras máscaras,
tantos recomeços, outras feições. Até certo ponto desempenhava bem o papel
imposto, enquadrado, contudo, chegava a hora em que das tripas coração não
segurava mais, tudo pelos ares, viva sede de libertadade. Tantas quedas,
recorrentes fracassos, de meter as mãos pelas pernas surfando pelos catombos, até
findar estatelado em palpos de aranhas – todas elas insaciáveis prontas pra me
devorar e eu gostando -, soprando os arranhões na epiderme dilacerada. Aprendia
e reaprendia, não era nada do que pensava ou previa, estava redondamente
enganado, como de costume. Encarei torpezas e astuciosas malandrices, não caí
do cavalo, fazia às vezes na regra três, sem sujar as mãos. Às vezes, senão
muitas, amarrava o bode entre o cuidado de evitar e o horror de sofrer. Como
não investia dolosamente contra nada nem ninguém, perdia a parada e até me
regozijava com isso, a consciência tranquila de nunca ter tentado contra quem quer
que fosse. Pronto, partia pra outra, confiança no taco, batendo no peito a
força da munheca, sem esmorecer jamais, mesmo quando não tinha nada mais além
que o chão pra me cobrir. Até chegar diante do espelho com os meus muitos eus
em mim mesmo, do que sonha ao que aterrissa na marra, pela força das
circunstãncias. Ao me enfurecer, a lição de La Fontaine: paciência e tempo. Ao
me deprimir saía à cata de portas abertas, mesmo que todas estivessem fechadas,
braços abertos pra indiferença e dissimulações, compreensão diante da
impaciência, uma lição aprendida de Kafka depois de perder o meu paraíso e não mais
poder voltar. Havia o resquício da infância escondida e ao espelho a
constatação: reduzi-me a sonhos, como todo passado, falando sozinho, pras
paredes. Aprendi o visinvisível e me entendo no imprevisível e fora da lógica. No
espelho o que sou e não, da lua, meta onírica; da alma, a vida, viver é tão
pouco, é preciso sonhar e sempre. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados.
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A DIFICULDADE DE SER DE JEAN COCTEAU
[...] Eu já passei dos cinquenta anos. Isso quer
dizer que a morte não deve demorar a me encontrar. O teatro da vida está bem
avançado e me restam poucas falas. Se olho à minha volta, no que me concerne,
descubro somente lendas que sustentariam uma colher na vertical. Evito colocar
o pé ali para não ficar preso nessa matéria viscosa. [...] não vejo nada que me reflita (quero dizer,
que desvende a minha figura). Não encontro a mínima tentativa de separar o
verdadeiro do falso, nem no elogio, nem na reprovação. [...] O excesso de tormentas internas, de
sofrimentos, de crises de dúvida, de revoltas submetidas à força do punho, de
bofetadas do destino me franziu a testa, cavou entre minhas sobrancelhas uma
ruga profunda, entortou essas mesmas sobrancelhas, provocou dobras pesadas nas
minhas pálpebras, amoleceu as minhas já cavadas bochechas, abaixou os cantos da
minha boca, de tal modo que se eu me curvo sobre um espelho baixo, eu vejo
minha máscara se desprender do osso e tomar uma forma informe. Minha barba
nasce branca. Meus cabelos, perdendo a espessura, guardaram sua revolta. Disso
resulta um buquê de mechas que se contradizem e não podem ser penteadas. Se
elas se achatam me dão uma aparência horrível. Se elas se arrepiam, esse
penteado desarrumado parece ser o sinal de uma afetação. [...].
Trechos
da obra A dificuldade de ser (Autêntica, 2015), do escritor, cineasta, dramaturgo, desenhista e ator
surrealista francês, Jean Cocteau
(1889-1963), uma autobiografia – livro-testamento - sobre a dificuldade de
estar no mundo cheio de fronteiras, regras e compartimentos, definindo-se por
uma atividade múltipla que conjugou os
novos e velhos códigos verbais, linguagem de encenação e tecnologias do
modernismo para criação do paradoxo: um avant-garde
clássico, trasnformando tudo em arte, desde a conversa frívola, o sonho, o
riso, a beleza, a juventude, a amizade, os costumes, a responsabilidade, a
leitura, o trabalho, as casas assombradas, a infância e a dor, a vida e a
morte. Veja mais aqui e aqui.
Veja
mais sobre:
Solilóquio
das horas agudas, O mito de Sísifo de Albert Camus, Doença sagrada de Hipócrates, a música de Meg, Neurofilosofia e
Neurociência Cognitiva, a pintura de José Manuel Merello & a arte
de Luciah Lopez aqui.
E mais:
Cantarau Tataritaritatá, Mulher & criança de Candido Portinari, a música de Bach & Wanda
Landowska, O vir-a-ser contínuo de Heráclito de Êfeso, A estrada morta de Mia
Couto, Das casas e homens de Adolfo
Casais Monteiro, Maria Peregrina de Luis Alberto Abreu, Quebra de xangô
de Siloé Soares de Amorim, a
pintura de Vicente do Rego Monteiro, Brincarte do Nitolino, a arte de Vlado Lima & Luciano Tasso aqui.
O sangue de um poeta de Jean
Cocteau, a arte de Elizabteh Lee Miller, a música de Márcia Novo &
Felipe Cerquize aqui.
A varanda na noite do amor aqui.
Proezas do Biritoaldo aqui.
O pós-moderno de Jean-François Lyotard, Decamerão de Giovani Boccaccio,
Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, a música de Ivan Lins, Erica Beatriz & Quasar Cia de Dança,
a fotografia de Michael Helms, a pintura de Julius Schrader, a poesia de Leila Miccolis & Programa Tataritaritatá aqui.
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius de Jorge Luis
Borges aqui.
Brincarte do Nitolino, A lógica
do tomemismo & da história de Roberto DaMatta, a
poesia de Fichte, A estética do teatro
de Redondo Junior, a música de Igor Stravinski, o cinema de Laurent Cantet
& François Bégadeau, a pintura de Aldo Bonadei, a gravura de Maurits Escher
& a xilogravura de MS - Marcelo Alves Soares aqui.
Vamos aprumar a conversa: Desnorteio, A ideologia & a técnica e a ciência de Jürgen Habermas, Arte & condição mulher de Ana de Castro Osório, o cinema de David
Lynch, a escultura de Bartolomeu
Ammanati, Hora aberta de Gilberto
Mendonças Teles, a Carta de amor de Maria
Bethânia, a pintura de Joseph-Marie
Vien, a arte de Arlete Salles & Isabella Rosselini
aqui.
O aperto
que virou vexame trágico, As estratégias
sensíveis de Muniz Sodré, a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, Tecnologias & memória de Maria
Cristina Franco Ferraz, a pintura de William Mulready
& Ângelo Hasse, a fotografia de Alexander Yakovlev, a arte de
Doris Savard, a música
de Asaph Eleutério, Ricardo Loureiro & Estrada 55 aqui.
Quando
ela dança tangará no céu azul do amor, A condição pós-moderna de Jean-François Lyotard, Estética da desaparição de Paul
Virilio, a música de Anna-Sophia Mutter, a pintura de Eloir Junior
& Alex Alemany, a arte de David Peterson, Luciah Lopez,
Isabel Furini & Carlos Zemek aqui.
Elucubrações
das horas corridas, O pensamento
comunicacional de Bernard Miège, O outro por si mesmo de Jean Baudrillard, a coreografia de Doris Uhlich, a gravura de Edilson Viriato, a pintura de David Lynch & Vicente Romero
Redondo, a música de Sarah Brasil, Meu delírio
de Érica Christiê, a arte de Efigênia
Rolim & Sandra Hiromoto aqui.
&
ESCULTURAS
DE TEXEIRA LOPES
A arte do escultor português Texeira
Lopes
(1866-1942).
RÁDIO
TATARITARITATÁ: EGBERTO GISMONTI
Hoje é dia do especial do compositor,
arranjador, cantor & multinstrumentista Egberto
Gismonti, reunindo
seus álbuns Em família (1981), Circense (1980), Trem Caipira (1985), Feixe de
Luz: todo começo é involuntário (1988), Corações Futuristas (1976), e
apresentações ao vivo com a Orquestra Corações Futuristas, com o trio no
Montreal Jazz Festival, com Jane Duboc, Al Di Meola, John McLaughlin, Paco De
Lucia, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos e Hamilton de Holanda. Veja mais aqui,
aqui e aqui.
A ARTE DE GIL TEIXEIRA LOPES
A arte do artista plástico e professor português Gil Teixeira Lopes.