Sou cantador e carrego no canto minha vida...
Imagem: xilogravura de Edilson Oliveira de Goiana - PE.
PASSOU O MOCOTÓ
NÃO BOTA NO MATO - Francisquito
Zeturino, aquele que muitos chamavam de Priquitinho e outros por qualquer
alcunha parecida lá com as partes pudendas, não tinha nada: era só uma mão na
frente e outra atrás. Sem pai nem mãe, muito menos um que fosse parentalha pra
remédio. Nada. Ah, tinha sim, lembrei-me: os restos mortais dumas catrevagens
que sugeria talvez uma bicicleta e mais trepeças do que sobrou dum velocípede e
que ele achou de ganhado num dia de sorte passeando pelo lixão. Aí ocupou-se profissionalmente
como calunga, recadista e alcoviteiro de chifres alheios, amealhou uns trocadinhos
e contou mais com o auxílio luxuoso da caridade alheia, pronto, conseguiu
montar aquilo que passou a chamar de Boba Torreiro, uma espécie estranha de
velobice ou bicevelo, tanto faz, qualquer coisa duma estrovenga que ele
conseguisse montar, se ajeitar às pedaladas e seguir pro raio que o parta. Com
uns bicos aqui e acolá juntou moedas para alimentar um sonho de infância:
tornar-se um respeitável vaqueiro. Porque desde bruguelo ainda com a catinga do
mijo ele guardava a lembrança de um suposto tio que nem era, passava-se quase
por padrinho e o levava a passear aboiando pelas rodagens, cercados e currais.
Todo sábado até ficar taludão era isso. Ficou nele pele, coração e vísceras,
até o dia em que o benfeitor nunca mais deu as caras. Daí viveu, sabe-se lá
como, com aquilo no juízo e resolveu tornar-se de fato um aboiador cagado e
cuspido. Mas logo deu por falta da indumentária característica. Peraí! Quebrou
o mealheiro e comprou um chapéu do tipo com barbicacho preso no queixo em três ou
quatro prestações e já se via trajado tangerino todo encourado. Depois, a maior
valsa pra ter um gibão e não menores parcelas para quase dois anos depois
juntar tudo: gibão e guarda-peito decorado com pespontos, perneiras da virilha
aos pés e atadas por correias, joelheiras de sola, chinelos com esporas de
prateleira, guante e chicote às mãos, o cinto com uma faca de brinquedos e um cachimbo
lascado no meio, a sele forrada com uma manta vermelha de pele de bode, bruacas
a tiracolo e lá ia ele aos brados naquele traste em plena marcha galopando pelos
campos de pastagens. Outro detalhe: não podia se amostrar pela redondeza, era
cobrador demais no seu calcanhar. Tomou o rumo das ventas e depois de muito
zanzar à toa deu por falta de outra coisa: um cavalo de verdade. Não desistiu e
fincou pé para adquirir um e não foi possível: muito caro pro seu bolso. Um potro,
também não; talvez um jumento, nada. Valeu-se do jegue de Paul que não tinha
dono, mas tinha um problema sério: era arisco como o danado. Deu trabalho
convencer: Esse burro é tinhoso! Enquanto ele ajeitava o muar aos mimos e agrados,
o bicho só queria saber das mocinhas passantes: partia atrás delas já com a
coisa toda armada. Era a maior correria pra cima e pra baixo, pense numa faina
sisífica para quem só sabia de estrume e o pé na merda, enquanto coisa e tal! Parecia
mais que nunca teria fim, afora enganchar-se em matas burras na fuga de touros
bravos! Insistiu muito de quase perder a paciência e botar tudo a perder. Foi
tirinete pra botar sela e arreios. Foi rebordosa demais chegar às vésperas do
dia 20 de julho e seguirem pra Missa do Vaqueiro em Serrita. No meio do caminho
o jerico estranhou, deu-lhe um tombo de jogá-lo longe, e ficou lambendo os
beiços pra ele: Vôte, tá querendo me comer... Olhou pra baixo dos quartos do burrico
e ele estava armado e aprontava pras suas bandas, ah, não deu outra: passou
sebo nas canelas e pé na bunda, o asno tarado atrás dele. Chegou onde sem nem
esperar e o melhor: são e salvo – é que o perseguidor achou uma égua baixia no
meio do caminho e mudou os planos. Graças! Quase botou todos os bofes pela boca
e se acabando por versos de pés quebrados. Pense num besuntão! Distância vencida,
pelo menos estava onde queria, ouvindo as pabulagens do Vaqueiro Misterioso, do
Boi Espácio, da Vaca Malhada, do Boi Barroso, da Vaca do Burel, do Pintadinho
ou a solfa do Boi Surubim, o romance do Boi da Mão de Pau ou do Rabicho da
Geralda, do Pavão Misterioso, Boi Prata, as éguas, as onças, os veados, os
bodes, vencedores dos saltos dos serrotes e das galopadas no lombo das serras, os
campos indivisos, a gadaria esparsa, rangido pela ribeira, serras e tabuleiros,
ou das coisas das sete ciências e do Lunário Perpétuo, afora comemorar como se
tivesse na Missa do Vaqueiro aboiando: Alegria de vaqueiro/ É ouvir ronco de trovão, / Ver o céu ficar nublado /
E a chuva cair no chão, / Botar a sela no cavalo/ E ir à casa do patrão. / Ê,
ê, ê… Lá estava
estufando o peito chega impava incontido com as improvisadas soltas na brisa
vespertina, no meio do folguedo de puxar o gado marcado na anca e sinal recortado
na orelha, a letra da ribeira, bicho reconhecido e tome vacas, bezerros, bois,
touros, novilhos, tudo corrido pra hora da apartação. Apesar do liseu não se
acanhou e passou a virar o copo da genebra e goelada de pinga com mel de
abelha. Hora das façanhas e derrotas, cantadores dedilhando a viola, arranhando
a rabeca, balanço na embolada do coco, e se divertia na função com outros desafios
pela madrugada, sol já quase raiando com Raiumundo Jacó ali do lado vivinho da
Silva, mais Fabião das Queimadas recitando, Gonzagão puxando o fole, o João
Câncio arrumando tudo pro repente de Pedro Bandeira, dele se encher com o apelo
pungente da hora adento ou afora, já se achava aboiando bonito, olho aberto de
sonheiro na vaquejada, acompanhado de um esteira que mantivesse aprumado o
bicho, ele pronto, arfante com destreza, obstinado na sua montaria, pegando a
cauda, envolvendo a bassora na mão e puxavanque forte, brusco, a mocica, a
queda do rabo: o touro desequilibrado cai, rebola de pernas pro ar, entre
poeira e aclamações. Se o mocotó passou, aplausos efusivos. Êêêêê! E correu-se
outro bicho. Foi aí que acordou: botou o mato! Só caiu na real por causa da
vaia comendo no centro. Malogrou. Ih, estava no fim do mundo e agora como
voltar... © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui, aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS - Procuro o que une e não o que cinde. Todos temos uma parte misteriosa e
há quem pretenda resolver os seus mistérios na psicanálise. Eu prefiro dar-lhes
voz na Poesia. O meu sonho de felicidade seria não haver necessidade de poesia
como género literário por ela se achar já realizada na vida. A poesia está
celularmente vinculada à língua mãe e na melhor das hipóteses as melhores
traduções são meras recriações. Pensamento da escritora portuguesa Natalia Correia (1923-1993). Veja mais
aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU - Independentemente
de como você se sente dentro, sempre tente parecer um vencedor. Mesmo se você
estiver por trás, uma aparência sustentada de controle e confiança pode lhe dar
uma borda mental que resulta em vitória. Uma coisa que me
impressionou cedo é que você não coloca em uma fotografia o que vai sair. Ou, vice-versa, o que sai não é o que você coloca.
Cada diferença é uma semelhança também... Pensamento da fotógrafa e escritora estadunidense Diane Arbus
(1923-1971). Veja mais aqui, aqui e aqui.
DESCRIÇÃO DE UM
MUNDO NOVO - [...] Os homens-aranha vieram
primeiro e presentearam Sua Majestade com uma mesa cheia de pontos matemáticos,
linhas e figuras de todos os tipos de quadrados, círculos, triângulos e
semelhantes; o que a imperatriz, apesar de ter uma inteligência muito
pronta e uma apreensão rápida, não conseguiu entender; mas quanto mais ela se esforçava para aprender, mais ela
ficava confusa [...]. Trecho extraído da obra Description of a New World, Called The Blazing World (Createspace, 2013), da filósofa, poeta, romancista e dramaturga
britância Margaret Cavendish (1623-1673), que em The weight of Atomes', in The Atomic Poems of Margaret (Kindle,
2008), expressou: […] Se
os átomos são tão pequenos quanto podem ser as abelhas, eles devem concordar em
quantidade de matéria [...]. Veja mais aqui e aqui.
DOIS POEMAS - ÀS ORDENS DO
VENTO - Teria
gostado de ser discípula de Ícaro. \ Como seria lindo ter festejado as bodas de
Calisto e Melibea. \ Teria gostado de ser \ um hitita diante da Rainha
Nefertari\ o jovem Werther no Rio de Janeiro \ a deslumbrante dama sevilhana \ por
quem Don José repudiou Carmen. \ Quisera ter sido o horto do poeta \ com a sua
verde árvore e o seu poço branco \ o inspetor fiscal \com quem Maiakovski
conversava \ Teria gostado de te amar. Juro-te. \ Só que muitas vezes a vontade
não basta. ENTÃO BEIJASTE-ME - No celebrar do
corpo, tão feito de presente, \ estirando as sua margens e unindo-as ao circulo
infinito da seiva,\ procuramos em tacteio nossos contornos \ para fundir a pele
desabitada com o rumor sagrado da vida. \ Olhas-me pleno de tudo quanto o
prazer forja \ espargindo o meu sangue até à origem Z assumindo minhas pulsões
até ao fundo. \ Não existe conjunção mais veraz \ nem maior clarão na
substância que nos cria. \ Esta bendita fusão feita de entranhas, \ a artéria
permanente da estirpe. \ Só quem beijou conhece a imortalidade. Poemas da poeta e tradutora espanhola Raquel Lanseros.
FONTE BIBLIOGRÁFICA
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Recife: Universitária, 1975.