REVENDO FATOS & COISAS – UMA – AINDA ONTEM: ME AME POR FAVOR! – Aos 25 anos de idade, a jornalista
e ativista libertária russa Anastasia
Baburova (1983-2009), foi abatida à bala ao lado do advogado dos direitos
humanos Stanislav Markelov. Ela havia estudado russo e ucraniano nativos,
falava inglês e francês fluentemente, estava aprendendo chinês ao ingressar no
Instituto de Relações Internacionais de Moscou preparando-se para a vida
diplomática, mas daí abdicou para seguir a carreira de jornalista, na
Universidade Estadual de Moscou. Era poeta, premiada jogadora de xadrez e
praticava artes marciais. Era integrante da organização Autônomous Action e atuava como free-lancer na Novaya Gazeta, na qual investigava as atividades de grupos
neonazistas relacionados ao governo russo. A sua última carta aos pais estava
intitulada: Me ame, por favor. Era a
despedida e não sabiam. DUAS: DAS AGRESSÕES & RUDEZAS – Já presenciei e
tomei conhecimento de muito desatino e descabimento. Quantos assassinatos e atentados
violentos, coisa de causar muita indignação. Lembrei-me de uma frase da Cindy Sherman: Comportamento imprudente e rude me deixa louca. E acho que a grosseria
imprudente da inépcia social certamente alimenta meu trabalho. (Veja mais
dela aqui).
Coisas de doer no coração. TRÊS: DAS RESISTÊNCIAS – Atitudes de resistência a
essa degradação humana são exemplares e sou solidário. Ações como a da pintora
e conservacionistas austro-queniana Joy
Adamson (1910-1980) são meritórias de aplausos, assim como destacar suas
palavras: A vida selvagem é algo que o
homem não pode construir. Uma vez que se foi, se foi para sempre. O homem pode
reconstruir uma pirâmide, mas não pode reconstruir a ecologia ou uma girafa...
O que se perdeu jamais terá volta. Vamos aprumar a conversa, gente!
DITOS E DESDITOS - Aqueles jovens, sobretudo,
me interessavam como pessoas, como seres humanos jovens e gentis; corajoso ou
menos corajoso, pensativo ou louco; como caras ousados que vivem um pouco de
suas próprias vidas e são assombrados por seu país, a realidade que os cerca; que não sabem o
que fariam e como fariam, mas sabem que o que estão vivendo agora não pode ser
tudo; que sentem alguma necessidade interior de um gesto grande e até estúpido;
que têm coragem em pânico e cujas mãos tremem e lágrimas correm ao pensar em
assassinato; e que ainda estão prontos para morrer. Interessei-me por aqueles
jovens - e algumas prostitutas - nos quais me via...
Pensamento da dramaturga e professora sérvia Biljana Srbljanović.
ALGUÉM FALOU: Se houver conhecimento
ético objetivo, a natureza humana é sua fonte... Pensamento do filósofo e professor britânico Kieran Setiya, autor dos livros Knowing
Right From Wrong (Oxford
University Press, 2012) e Reasons without Rationalism (Princeton University Press, 2007).
A MÃO - Adormecera recostado no ombro da jovem
esposa, que suportava orgulhosamente o peso daquela cabeça de homem, loura,
sanguínea, de olhos cerrados. O longo braço deslizara sob o torso frágil sob os
rins adolescentes, e a mão forte repousava espalmada sobre o lençol, ao lado do
cotovelo direito da mulher. Ela sorriu vendo essa mão masculina que surgia ali,
sozinha, afastada de seu dono. Depois, deixou errar os olhos pelo quarto
semi-obscurecido. De uma lâmpada velada caía sobre o leito uma luz cor de
pervinca. — “Minha felicidade não me deixa dormir” — pensou. Estava muito
comovida, e de vez em quando se espantava de sua nova condição. Fazia quinze
dias, apenas, que levava a escandalosa vida das recém-casadas, que desfrutam o
prazer de habitar com um desconhecido por quem se apaixonaram. Encontrar um
belo rapaz louro, jovem viúvo, dado ao tênis e ao remo, desposá-lo um mês
depois: sua aventura conjugal tinha muito de um arrebatamento. Sentia-se ainda
presa desse enlevo, quando velava ao pé do marido, como naquela noite, a fechar
demoradamente os olhos e a reabri-los depois para apreciar, entre surpreendida
e extática, a cor azul das tapeçarias inteiramente novas, em lugar do róseo adamascado
que filtrava a luz do sol nascente em seu quarto de solteira. A seu lado, o corpo
adormecido agitou-se, num leve estremecimento. Então ela, com a encantadora
autoridade dos seres fracos, cingiu com o braço esquerdo o pescoço do marido,
que não despertou. — “Como ele tem as pestanas compridas!” — disse consigo
mesma. Elogiou também, de si para si, a boca, a um tempo grosseira e graciosa,
a tez de um róseo atijolado, e até a fronte, nem nobre nem vasta, mas ainda nua
de rugas. Entretanto a mão direita do esposo estremecia, e ela sentiu viver,
sob a curva dos seus rins, o braço direito, sobre o qual pesava com todo o
corpo. — “Eu peso muito... Gostaria de soerguer-me e apagar esta luz. Mas ele
dorme tão bem...”. Outra vez o braço torceu-se, fracamente, e ela arqueou o
dorso para fazer-se mais leve. — “É como se eu estivesse deitada em cima de um
animal.” Virou a cabeça um pouco sobre o travesseiro, fitou a mão pousada junto
a si. — “Como é grande! É certo que eu não vou além do seu ombro...” A luz, deslizando
sob as extremidades de um lustre de cristal azulado, feria em cheio aquela mão,
tornando sensíveis os menores relevos da pele; exagerava os vigorosos nós das falanges,
e as veias, que a compressão do braço ingurgitava. Alguns pelos ruivos, na base
dos dedos, curvavam-se todos na mesma direção, como espigas ao sopro do vento,
e as unhas chatas, a que o brunidor não desfazia as arestas, brilhavam,
impregnadas de esmalte róseo. — “Hei de pedir-lhe que não use esmalte nas
unhas” — pensou a mulher. — “O esmalte, o carmim não ficam bem em semelhante
mão... em mão tão..." Um estremecimento elétrico atravessou aquela mão,
dispensando a mulher de procurar um qualificativo. O polegar estirou-se,
horrivelmente longo, espatulado, e uniu-se estreitamente ao indicador. Assim, a
mão adquiriu, de súbito, uma expressão simiesca e crapulosa. — “Oh!” — exclamou
baixinho a jovem, como diante de uma inconveniência. O buzinar de um automóvel
feriu o silêncio com um clamor que parecia luminoso, de tão agudo. O adormecido
não despertou, mas a mão, ofendida, ergueu-se, crispou-se em forma de caranguejo,
e esperou, pronta para o combate. O som dilacerante foi morrendo, e a mão, que pouco
a pouco afrouxara, deixou cair as garras, tornou-se um animal mole, dobrada ao
meio, agitada de vagos sobressaltos que recordavam uma agonia. A unha chata e
cruel do polegar muito longo brilhava. Um desvio daquele dedo, em que a mulher
nunca reparara, surgiu então, e a mão rebolcada mostrou, como um ventre
avermelhado, a palma carnuda. — “E eu beijei semelhante mão... Que horror! É
possível que eu nunca a tivesse olhado?” A mão, que um mau sonho agitou,
pareceu responder a esse sobressalto, a esse nojo. Reuniu todas as forças,
abriu-se em toda a extensão, ostentou os tendões, os nós e o pelame ruivo, como
um troféu de guerra. Depois, dobrando-se outra vez, devagar, agarrou o lençol, cravou-lhe
os dedos recurvados, apertou, apertou com um prazer metódico de
estranguladora... — Ah! — gritou a jovem. A mão desapareceu; o longo braço,
livre de sua carga, fez-se num instante cinta protetora, cálido amparo contra
todos os terrores noturnos. Porém na manhã do dia seguinte, à hora da bandeja
na cama, do chocolate musgoso e das torradas, ela tornou a ver a mão, ruiva e
vermelha, e o polegar abominável, firmado no cabo de uma faca. — Quer esta
fatia, querida? Preparei-a para você. Ela assustou-se; sentiu arrepiar-se-lhe a
carne no alto dos braços e ao longo dos dedos. — Oh! não... não... Depois, sufocou o medo, dominou-se valentemente e,
começando uma ida de duplicidade, de resignação, de diplomacia vil e delicada,
inclinou-se, e beijou com humildade a mão monstruosa. Conto da
escritora francesa Sidonie Gabrielle Colette
(1873-1954). Veja mais aqui,
A MULHER NO
ESPELHO – [...] Nada continuava o mesmo em dois segundos juntos...
[...]
ninguém deveria deixar espelho pendurados em
casa [...] seu modo
mais profundo de ser é que se queria captar e converter em palavras, o modo que
para o espírito é o que é a respiração para o corpo, o que se chama felicidade
ou infelicidade [...] Aqui estava
mulher em si. […] E não havia nada.
Isabella estava perfeitamente vazia. [...]. Trechos extraídos da obra A
Dama no Espelho: Reflexo e Reflexão (CosacNaify, 2005), da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Veja mais aqui e aqui.
MULHER DO ESPELHO - Hoje que
seja esta ou aquela, \ pouco me importa. \ Quero apenas parecer bela, \ pois,
seja qual for, estou morta. \ Já fui loura, já fui morena, \ já fui Margarida e
Beatriz. \ Já fui Maria e Madalena. \ Só não pude ser como quis. \ Que mal faz,
esta cor fingida \ do meu cabelo, e do meu rosto, \ se tudo é tinta: o mundo, a
vida, \ o contentamento, o desgosto? \ Por fora, serei como queira \ a moda,
que me vai matando. \ Que me levem pele e caveira \ ao nada, não me importa
quando. \ Mas quem viu, tão dilacerados, \ olhos, braços e sonhos seu \ se
morreu pelos seus pecados, \ falará com Deus. \ Falará, coberta de luzes, \ do
alto penteado ao rubro artelho. \ Porque uns expiram sobre cruzes, \outros,
buscando-se no espelho. Poema da
escritora, pintora, professora e jornalista Cecília Meireles (1901-1964).
Veja mais aqui e aqui.