A arte da pintora Maria
Auxiliadora da Silva (1935-1974).
FURICO, FILHO DA PUTA – Deuzinara cresceu órfã como Narinha, serviçal
numa casa de família. Ficou por lá até o dia que ganhou o olho da rua: a patroa
flagrou o primogênito totalmente zarolho montado com a língua de fora num enfiado
avexado na sua garupa proeminente. Um escândalo! Com uma mão na frente e outra
atrás, depois de muito encher a rua de perna foi, finalmente, acolhida pelo
padrinho Asmodeu, que reunia outras meninas na sua congregação suspeitável. Paparicada
no recinto, nem se dava conta o protetor lambendo os beiços pra sua banda. E
foi dele que ela emprenhou pela primeira vez: foi estuprada numa manhã de
domingo, na cozinha escura do lupanar. A partir daí, não tinha hora que ele não
a dominasse, fodesse e seviciasse, escrava de fungados e metidas. Ao dar com a
língua nos dentes, ele teve um piripaque e bateu as botas. A assumida então
chefe do convento que era amásia do defunto decretou seu exílio. Sem ter para
onde ir, caiu quase morta e pariu: Esse rebento filho da puta quase me rasgou
toda! -, deixando-a deformada sobre a cama, inchada e quase imobilizada por um
bom tempo, razão pela qual o bruguelo que crescia a olhos vistos ganhar o
apelido de Furico, o treloso Furiquinho – isto nas horas ternas; Ô seu Furico
desgraçado, nas horas das cipoadas pelas arteirices. Como a mãe não tinha
filiação nem documentos, assinava “de Tal”, assim ele: Furico de Tal, a sua
graça completa. Entre furtos e presepadas foi ficando taludo embaixo das
maiores lamboradas, tomando jeito na vida depois de mil e umas utilidades nos
balcões de bodegas, boticas e jogos de azar. Ganhou notoriedade mesmo por conta
da pontaria no tiro ao alvo e na perícia de domar bichos inusitados. Esse cabra
é bom! -, diziam uns mais simpáticos. Mas logo o asco cobria-lhe por conta de um
vício feio: gostava de enfiar o dedo nas ventas e ficar amolegando a catota. Nojento!
No meio de rela bucho, bundacanascas e babaovice ganhou a simpatia do escrivão
seu Rube, empregando-se formalmente como cheleleu, depois recadista, promovido
a copista e sair galgando degraus de quase escrevente ao ser alfabetizado sem
professor: Foi, aprendeu sem se ensinar. Daí prestou concurso público e
tornou-se juramentado, um sujeito dito por todos como de bem, apesar da vida
pregressa. Aí levantou a focinheira e adquiriu prestigio com rei na barriga até
se tornar vereador pela sigla partidária de menor representação local.
Candidatou-se a prefeito, só não logrando êxito por conta da campanha antipática
promovida pelos casacudos da situação, que usaram seu nome para destroná-lo de
qualquer dignidade: Furico, filho da puta! A coisa pegou e ganhou o opróbrio
popular. Não se fez de rogado e com o rabinho escondido entre as pernas não
demorou muito a obrar milagres e salvar gente como a praga, quer dizer,
realmente sua dedicação e presteza salvou muita gente da peste que quase
dizimou a si e a toda gente da face da terra. Não deu outra: entrou na moda
porque apesar de ter um nome abjeto, era um sujeito decente. Preso um tanto de
vezes por atentado ao pudor, quando não por engano, mesmo assim construiu uma trajetória
de injustiças muitas. Levou tanta porta na cara que assumiu o apelido
Furico-não. E isso promoveu o maior disparate eleitoral: o mais votado
reeleito. Não evoluiu na carreira, mas tornou-se o hors-concurs em todo lugarejo e adjacências. Já falou com
Furico-não, ele resolve! É isso de boca em ouvido o tempo todo. Quem não o
conhece é porque não mora pela redondeza, ou vive no mundo da lua. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
DITOS & DESDITOS – Uma
das coisas que de preferência deve atrair a atenção da sociedade, devido à sua
grande importância e necessidade, é a cultura e a educação das mulheres, das
quais dependem a civilização e o progresso dos povos. Cuidar da educação das
mulheres é cuidar da regeneração e progresso da humanidade. O mal social vem da
ignorância e obscurantismo, a salvação está na educação e no trabalho. Você tem
que viver na paisagem interior de nossas almas. O verdadeiro progresso dos
povos está na ética. Eu acho que o futuro nos pertence. Pensamento da
escritora, jornalista e ativista espanhola, Carmen de Burgos e Seguí (1867-1932), que
fez parte da Geração de 98 e assinou alguns de seus escritos com os pseudônimos
de Colômbia, Perico el Palotes, Marianela e Honorine.
ALGUÉM FALOU: Quanto mais diziam que os escritos não eram meus,
mais provas eu dava de que não havia homem que me superasse em coragem moral... Frase da escritora cubana Eva Canel (Agar Eva
Infanzón Canel - 1857-1932), autora da obra Oremus (Impr. La
Tipografía, 1893), numa época em que era de completa desaprovação a abordagem
de certos temas pelas mulheres, a ponto de ser acusada de não ter sido ela a
autora do que escrevera. O romance é repleto de conflitos como adultério,
relações incestuosas, hipocrisia da sociedade e da religião, razão pela qual
ela enfrentou com coragem e audácia, contando a história de uma jovem submissa que foi criada em um
convento, de onde vêm suas fortes convicções religiosas. Quando ela saiu, já
adulta, ela se viu em uma situação impossível de assumir com base em suas
crenças morais, logo percebendo que a realidade não é uma estrutura imóvel que
ela pudesse controlar apenas com suas orações. Questões filosóficas como essas
serão as que colocarão a protagonista em sérios apuros e a colocarão em uma
posição delicada e inacessível para sua piedosa educação.
LAVOURA ARCAICA – [...] sempre
ouvia nos sermões do meu pai que os olhos são a candeia do corpo, e que se eles
eram bons é porque o corpo tinha luz, e seus olhos não eram limpos é que eles
revelavam um corpo tenebroso [...] sabia
que meus olhos eram dois caroços repulsivos [...] eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus
sentimentos [...] rico não é o homem
que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se
estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu,
piedoso e humilde, a conviver com o tempo [...] só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas [...] a vítima ruidosa que aprova seu opressor se
faz duas vezes prisioneira [...] Estranho
é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes [...] dar as costas para o mundo, ou alimentar a
expectativa da destruição de tudo[...]. Trechos extraídos da obra Lavoura arcaica (Companhia das Letras, 1999), do escritor Raduan Nassar.
Veja mais aqui e aqui.
OS NOIVOS - [...] que há muito
de inverossímil que, somente para o Agente ter ocasião de trabalhar muito e ele
Depoente de vender sua poção tenham causado, besuntando as portas, a destruição
e morte de pessoas; por isso diga com que finalidade e por qual motivo ambos
procederam assim, por um interesse tão leviano [...]. Trecho
extraído da obra Os noivos: história
milanesa do século XVII (Nova Alexandria, 2012), do poeta, romancista e
filósofo italiano Alessandro Manzoni
(1785-1873), autor da frase: Dever-se-ia pensar mais em fazer o bem do que em estar bem: e assim também
se acabaria por estar melhor. A vida é o paradigma das palavras.
RINHAS DE GALO - [...] Era nisso que consistia ser uma prostituta: apreciar o
gosto. [...] Eu me formei também, comecei a faculdade, terminei, continuei dizendo
sim para os homens, quebrando como vidro barato contra as paredes de várias
casas. [...] Dizem que Deus
escuta mais os pobres porque ama mais os pobres, então a merda de ser pobre
tinha que servir para alguma coisa [...]A primeira profecia que você cumpriu foi "você é
igual a sua mãe". Eles batem
em você para que você não seja igual à sua mãe enquanto eles gritavam com você,
você é igual à sua mãe [...]. Trechos
extraídos da obra Pelea de gallos (Páginas de Espumas, 2013), da escritora
equatoriana María Fernanda Ampuero é uma escritora e jornalista
feminista equatoriana.
TRÊS POEMAS - SORVETE DE MORANGO - Começo
pelas bordas a sentir teu sabor, \Passeio minha língua em toda a extensão, \ Vou
em busca desse sabor que eu anseio, \ Perdida em sensualidade e luxúria. \ Volto
ao sorvete explorando-o todo, \ Sentindo o paladar do morango que me delicia, \
Devagar, bem devagar e silenciosamente, \Fecho os olhos para curtir teu doce
acre. \ Desço para que possa aproveitar o momento, \ Enfio com carinho todo em
minha boca, \ Deixando que minha língua goze o prazer, \ E que fios de
morango fluam entre meus lábios. \ E depois retiro com carinho ainda
fascinada, \ Pelo passeio que me excita e umedece, \ E deixo que novamente me
penetre e escorra, \ Agora em profundidade e depois se derreta. QUERO BEIJAR-TE - Quero beijar-te,
beijar-te e nunca acabar, \ O delírio que me alucina a todo o momento, \ Nessas
horas entendo tudo que é amar,\ E para ficar a teu lado motivos eu invento. \ Quero
tê-lo em meus braços eternamente, \ Sentir a riqueza do momento que se
reproduz, \ Acariciando cada parte de teu corpo lentamente, \ Absorvendo aquela
loucura que me seduz. \ Quero em teu peito repousar cheia de luxúria, \ Enquanto
tuas mãos me afagam com paixão, \ Entrelaçar nossos corpos em volúpia, \ Beber
na fonte de teu calor com sofreguidão. \ Quero sentir-te transtornado e
enlouquecido, \ Aspirar o lúdico cheiro que me inebria, \ No momento culminante
contigo vivido, \ Lembrando das imagens que antes eu não via. \ Quero usufruir
esse instante de prazer,\ Enquanto a vida lá fora flui normalmente\ Desligando-me
de tudo que é não ser, \ O objeto de desejo intenso e veemente. MOMENTO DE AMOR - Quero nosso momento
de amor, \ Quero encontrar nele a doçura, \ Quero sentir o fascínio do calor \ E
comemorar nossa ventura.\ Quero te sentir pleno e sedutor, \ Em cada movimento
uma loucura,\ Antecipar o magnífico esplendor,\ E curtir o prazer que não se
cura.\ Quero tocar-te e entrar na escuridão,\ Ver as brumas que se condensam, \
Entender todo o significado da emoção \ E sentir que as mágoas não compensam. \
Quero fazer dessas horas o meu mundo, \ Amor sem mistério e tão vibrante, \ Que
sem querer a minha alma circundo, \ Em toda a magnitude daquele instante. \ Quero
louvar com exagero essa paixão, \ Sentir a vida que se abre como pétala de
flor, \ Amanhecer ainda fugidia e sem razão, \ Impressionada com a visão de
tanta cor. \ Quero sentir nesse momento só prazer, \ Nada entender de soluções
e acalentar \ O corpo que de vibração me faz viver \ E jamais nessa hora
discernir ou me orientar. Poemas da escritora Vânia Moreira Diniz. Veja mais aqui.
FONTE:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.