CERTO, ERRADO? –
Damiãodito andava meio atrapalhado,
quase zoró. Pudera, mão havia dado certo e procurava a todo custo se arrumar na
vida. De tantas tentativas e erros, chegou entre disparates à triste
constatação de que nada se criava mais, só se copiava. E tanto fizeram no reino
dos simulacros, que importaram até a solidão. Pois é, conversava sozinho, um
Robinson Crusoé no meio da multidão de indiferentes apressados. Será que tem
jeito? Pelo menos aprendera a se meter no calor da refrega pra chamar atenção. Um
desastre; incendiário rebelde protestando de tudo. Todo mundo estava errado e
ele sozinho. Não pode ser! Teve que dá um jeito, amenizou na pancada e já se
dava por um bombeiro voluntário: melhor apaziguar que tocar fogo! Quando limpou
a vista percebeu que a situação estava infestada por uma praga de gente, patuléia
de retirantes no reino das espeluncas: tempo de preta fraude! Que coisa! A
ordem era andar na moda, arrotando ar de prosperidade, na verdade, ataque
impulsivo de não se enxergar o holocausto sem precedentes. Vai na onda, meu! Mais
perdido que desencontrado, deu de cara com Hypatya, uma professorinha com ar de
demiurga, incisiva na pontaria de que tudo estava reduzido às falácias, tudo dicto simpliciter, quando não
generalizações apressadas, ao menos post
hoc adoidado, senão premissas contraditórias, invocações ad misericordiam, possíveis falsas analogias
ou hipóteses contrárias ao fato, ou quando muito envvenenando o poço. É com
essa que vou! E foi, de cabeça. Lá pras tantas embolou o meio de campo: ouvia e
não entendia nada, parecia que antes ele é que estava com razão e
certificou-se: não estava. Ué, pronde vou? A professorinha deu sinal de que ele
devia seguir a linha de raciocínio: preste atenção e aprenda a remar. Ligado nas
sapientes palavras dela, não arredava e foi tomando pé da situação: quanto argumento
falacioso! Pra todo lado só via papo áulico, chegava dava náuseas, ah, esses os
cheleléus que aprenderam a pender pros lados conforme a situação: uma tuia de bestuntos
que só conseguiam conversar pra arengas ou humilhações. Como não se tem o que
falar, todos cospem chistes descabidos, ofensas, soberbas, aconselhamentos até.
Não desistia e prestava ele atenção a tudo, encantado com a professorinha. Apaixonou-se
e na primeira investida: sai pra lá, lambaio! Que é que é isso? Tanto aprumou
no bote e, na horagá, o negócio gorava pra sua banda. Investigou e logo sacou a
presença de Valdevinicius – um cara com um nome desse parecia imbatível -, na
simpatia de Hypatya: um bon vivant
metido em coisas escusas, endinheirado e cheio das pregas. Páreo duro. Mas e o
que ela dizia e ensinava não era pra ter com um cara desses, diferente da
inteligência e modo de pensar dela, não combinavam. Insistiu na paixonite e
depois de tantas, viu-se mais sozinho que antes. No mais, cada um padece mesmo
de sua solidão, seu isolamento: muro alto, tevê, redes sociais, celulares, suas
dívidas, decepções, temores, invejas, dissimulações. E ele liso de não ter um
tostão furado no bolso, apaixonado e completamente imobilizado. E agora, meu? O
que valia de mesmo era ter estratagemas para ganhar dinheiro, isso é que fazia
a diferença. Aprendeu no cara ou coroa e se meteu com o que pôde: canivetes,
xaropes, vigarices, prestidigitações. Tentava por zis ardis persuadir e ser
convincente com sua loquacidade. Tanto fez, nada deu certo. De orelha em pé,
cérebro feito um dínamo, medição de balança e precisão de bisturi, o cara encervejou
além da conta, aprumou o juízo trocando as bolas e falando alto como quem
aprendera o beabá todinho e encarou de quase botar os bofes todo pra fora com a
dita sobrecarregada de hostilidades: Professora Hypatya, a senhora quer ou não
quer namorar comigo? Ah, meu preclaro, tenho compromissos com Valdevinicius! Aí
ele caprichou no recado: Ora, professora, mas esse cara é um ré-pra-trás, não há
menor compatibilidade com seus grandiosos conhecimentos, sua pujante inteligência,
sua magnitude de ser, ora, ora! Ah, rapaz, ele tem uma coisa que você não tem! O
quê? Dindim pra me levar pros queimas das lojas todas! Ah, a fala e o certo,
ação no errado. Tá. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
RÁDIO TATARITARITATÁ:
Hoje na Rádio Tataritaritatá especial com com o cantor, compositor, arranjador e
instrumentista Edu Lobo: Camaleão & Limite das águas; da compositora, pianista
e maestrina Chiquinha Gonzaga (1847-1935), interpretada pelos pianistas Leandro Braga
& Clara Sverner; do músico instrumentista e acordeonista Renato
Borghetti; e da cantora e
compositora Zélia Duncan: Pelo sabor do gesto em cena & Tudo esclarecido. Para conferir é só ligar o som e
curtir.
PENSAMENTO DO DIA – A dificuldade
reside não tanto em ter novas ideias, mas em escapar das antigas.
Pensamento do economista britânico John
Keynes (1883-1946). Veja mais aqui e aqui.
JUPI – O município
de Jupi tem essa denominação por conta de um espinho, chamado pelos nativos e yupi, sugnificando espinho agudo. O
povoado pertenceu a Brejo da Madre de Deus, na categoria de distrito, passando
a pertecer posteriormente a São Bento do Una, Canhotinho, Palmeirina e Angelim.
Passou a município por força da Lei 3331, de dezembro de 1958. Registra-se na
história que o português Antonio Vieira de Melo, desterrado de Portigal em
meados do século XVI, instalando-se ao ao sopé de uma serra onde havia abundante
água boa e bastante caça, ao lado da tribo de origem que fizeram uma aldeia nas
proximidades de uma fonte por eles denominada "Olho D'água de Yu-py".
As malocas desta aldeia foram feitas e cobertas com folhas das palmeiras
nativas do local que os índios denominaram de Ouricury. O município encontra-se
inserido no Planalto da Borborema, inserido nos domínios das nacias
hidrográficas dos rio Mundaú e Una, tendo como principais tributários os rios
da Chata e do Retiro e os riachos do Estreito e Volta do Rio. A sua emancipação
política é comemorada em 11 de março. Veja mais aqui.
O ESPAÇO SOCIAL - [...] o espaço
social tende a se retraduzir, de maneira mais ou menos rigorosa, no espaço
físico sob a forma de um determinado arranjo distributivo dos agentes e das
propriedades. Consequentemente, todas as distinções propostas em relação ao
espaço físico residem no espaço social reificado (ou, o que dá no mesmo, no
espaço físico apropriado), que é definido – para falar como Leibniz – pela
correspondência entre uma determinada ordem de coexistência dos agentes e uma
determinada ordem de coexistência das propriedades. [...] A estrutura do espaço social se manifesta
assim, nos mais diversos contextos, sob a forma de oposições espaciais, o
espaço habitado (ou apropriado) funcionando como uma espécie de metáfora
espontânea do espaço social. Em uma sociedade hierarquizada, não existe espaço
que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as diferenças
sociais de um modo deformado (mais ou menos) e, sobretudo, mascarado pelo
efeito de naturalização acarretado pela inscrição durável das realidades
sociais no mundo físico: diferenças produzidas pela lógica social podem, assim,
parecer emergidas da natureza das coisas (basta pensar na ideia de “fronteira
natural”). [...]. Trechos de Meditações pascalianas (Bertrand
Brasil, 2001), do sociólogo francês Pierre
Bourdieu (1930-2002). Veja mais aqui e aqui.
A COLMEIA
- [...] O coração do Café bate com
arritmia, como o deu um cardíaco. a atmosfera vira mais cinzenta, mais espessa. Às vezes, porém, entra um golpe de ar fresco,
ninguém sabe de onde veio. É o vento de uma esperança desesperada que, por uns
poucos instantes abriu uma pequena janela em cada uma dessas almas fechadas.
[...] Trecho de A colméia (Bertrand
Brasil, 1992), do escritor e jornalista espanhol vencedor do Prêmio Nobel de
Literatura, Camilo José Cela (1916-2002), enfocando a vida em Madri, sem
conformismo e outros disfarces, a qual serviu de ponte entre o realismo
pós-guerra e as novas tendências dos anos sessenta. Veja mais aqui.
LAVOURA ARCAICA - Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto;
róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um
mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um
áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os
objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava
deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu
irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura
disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus
dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente;
minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas
ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas
meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o voo fugaz
dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado
de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha
onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não
me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso
torvelinho sem acolhimento; meus olhos depois viram a maçaneta que girava, mas
ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem
vibração, ou um sopro escuro no porão da memória; foram pancadas num momento
que puseram em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto; num
salto leve e silencioso, me pus de pé, me curvando pra pegar a toalha estendida
no chão; apertei os olhos enquanto enxugava a mão, agitei em seguida a cabeça
pra agitar meus olhos, apanhei a camisa jogada na cadeira, escondi na calça meu
sexo roxo e obscuro, dei logo uns passos e abri uma das folhas me recuando
atrás dela: era meu irmão mais velho que estava na porta; assim que ele entrou,
ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados, era um espaço de terra
seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse pó, mas não era uma
descoberta, nem sei o que era, e não nos dizíamos nada, até que ele estendeu os
braços e fechou em silêncio as mãos fortes nos meus ombros e nós nos olhamos e
num momento preciso nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu
vi de repente seus olhos se molharem, e foi então que ele me abraçou, e eu
senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira;
voltamos a nos olhar e eu disse "não te esperava" foi o que eu disse
confuso com o desajeito do que dizia e cheio de receio de me deixar escapar não
importava com o que eu fosse lá dizer, mesmo assim eu repeti "não te
esperava" foi isso o que eu disse mais uma vez e eu senti a força poderosa
da família desabando sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia
"nós te amamos muito, nós te amamos muito" e era tudo o que ele dizia
enquanto me abraçava mais uma vez; ainda confuso, aturdido, mostrei-lhe a
cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço do bolso ele disse
"abotoe a camisa, André". [...].
Trecho da obra Lavoura arcaica (Companhia das
Letras, 1999), do escritor Raduan Nassar.
Veja mais aqui.
NA UMIDADE CIFRADA - Ouço teu
corpo com a avidez saciada e tranqüila / de quem se impregna (de quem / emerge,
/ de quem se estende saturado, / percorrido / de esperma) na umidade / cifrada
(suave oráculo espesso; templo) / nos limos, açudes tíbios, deltas, / de sua
origem; bebo / (tuas raízes abertas e penetráveis; em tuas costas / lascivas —
lodo fervente — landas) / os desígnios musgosos, tuas seivas densas / (rol de
lianas ébrias) Aspiro / em tuas margens profundas, expectantes, as brasas, / em
tuas selvas untuosas, / as vertentes. Ouço (teu sêmen táctil) as fontes, as
larvas; / (abside fértil) Toco / em teus vivos lodaçais, em tuas lamas: os
rastros em tua frágua / envolvente: os indícios / (Abro / tuas coxas ungidas,
ressudantes; escanceadas de luz) Ouço / em teus ásperos barros, a tua borda: os
palpos**, os augúrios / — siglas imersas; blastos —. Em teus átrios: / as
trilhas vítreas, as libações (glebas fecundas), / os fervedouros. Poema
da poeta e tradutora mexicana Coral Bracho, extraído da obra: Jardim de
camaleões: a poesia neobarroca na América Latina, organizada por Claudio
Manoel.
ANTES DO CAFÉ, DE EUGENE O’NEILL
[...] Estou cheia dessa vida. Vontade de voltar para casa, bem que eu tenho, não fosse esse meu orgulho de não querer que eles saibam do fracasso que você é. Você, filho único do milionário Rowland, formado em Harvard, poeta, o melhor partido da cidade ‑ ha! (AMARGA) Hoje ninguém ia invejar a minha conquista. Que que foi o nosso casamento, diz aí? Mesmo antes do “milionário” do seu pai morrer, devendo dinheiro a Deus e ao mundo, você nunca dedicou um minuto do seu tempo à sua mulher. Talvez achasse que eu devia estar muito contente em você ser bastante “honrado” a ponto de se casar comigo, depois de me meter naquela fria. Tinha era vergonha de mim com os seus amigos gra-finos porque o meu pai e só um quitandeiro, isso sim. Pelo menos o meu pai é honesto, coisa que ninguém pode dizer do seu.(COM FIRMEZA, ELA VARRE EM DIREÇÃO À PORTA. APOIA‑SE NA VASSOURA POR UM INSTANTE.) Você esperava que todo mundo fosse achar que se casou obrigado e que todo mundo ia ter pena de você, não foi? Foi logo dizendo que me amava, me fazendo acreditar nas suas mentiras, antes da coisa acontecer, foi ou não foi? Me fez acreditar que não queria que o seu pai me pagasse para eu sumir, como ele tentou fazer. Hoje eu sei. Não foi à toa que eu vivi com você esse tempo todo. (SOMBRIA) Ainda bem que o pobrezinho nasceu morto. Que pai que você seria! (ELA FICA QUIETA E TACITURNA POR UM TEMPO. E CONTINUA, NUMA ESPÉCIE DE ALEGRIA SELVAGEM.) Só que eu não sou a única a te agradecer por ser infeliz, não. Tem pelo menos uma outra e esperança de se casar contigo agora, ela não pode ter. [...].
[...] Estou cheia dessa vida. Vontade de voltar para casa, bem que eu tenho, não fosse esse meu orgulho de não querer que eles saibam do fracasso que você é. Você, filho único do milionário Rowland, formado em Harvard, poeta, o melhor partido da cidade ‑ ha! (AMARGA) Hoje ninguém ia invejar a minha conquista. Que que foi o nosso casamento, diz aí? Mesmo antes do “milionário” do seu pai morrer, devendo dinheiro a Deus e ao mundo, você nunca dedicou um minuto do seu tempo à sua mulher. Talvez achasse que eu devia estar muito contente em você ser bastante “honrado” a ponto de se casar comigo, depois de me meter naquela fria. Tinha era vergonha de mim com os seus amigos gra-finos porque o meu pai e só um quitandeiro, isso sim. Pelo menos o meu pai é honesto, coisa que ninguém pode dizer do seu.(COM FIRMEZA, ELA VARRE EM DIREÇÃO À PORTA. APOIA‑SE NA VASSOURA POR UM INSTANTE.) Você esperava que todo mundo fosse achar que se casou obrigado e que todo mundo ia ter pena de você, não foi? Foi logo dizendo que me amava, me fazendo acreditar nas suas mentiras, antes da coisa acontecer, foi ou não foi? Me fez acreditar que não queria que o seu pai me pagasse para eu sumir, como ele tentou fazer. Hoje eu sei. Não foi à toa que eu vivi com você esse tempo todo. (SOMBRIA) Ainda bem que o pobrezinho nasceu morto. Que pai que você seria! (ELA FICA QUIETA E TACITURNA POR UM TEMPO. E CONTINUA, NUMA ESPÉCIE DE ALEGRIA SELVAGEM.) Só que eu não sou a única a te agradecer por ser infeliz, não. Tem pelo menos uma outra e esperança de se casar contigo agora, ela não pode ter. [...].
Trecho da peça teatral Antes do café (Before breakfast –
Literary Classiscs, 1988), do escritor e dramaturgo estadunidense Eugene
O’Neill (1888-1053), Prêmio Nóbel de 1936, com
tradução de Flávio de Campos. A peça trata sobre a
Senhora Rowland, que, numa manhã, descobre que o marido tem uma amante que está
grávida. Ela expõe sua relação enquanto prepara o desjejum, mas será
surpreendida novamente antes do café esfriar.
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