DITOS
& DESDITOS - Aprendi a estar comigo mesmo em vez de me evitar com hábitos limitantes;
Comecei a ter mais consciência dos meus sentimentos, em vez de entorpecê-los...
Sentimentos ou emoções são a linguagem universal e devem ser honrados. Eles são
a expressão autêntica de quem você é no seu lugar mais profundo...
Pensamento da
escritora australiana Judith Arundell Wright (1915-2000). Veja mais aqui
e aqui.
ALGUÉM
FALOU: E no sono
profundo da árvore e da pedra, / Presa em um sonho, / Está a cidade solitária /
E no seu coração - um muro... Trecho da canção Yerushalayim Shel Zahav, da poeta cantante israelita, Naomi Shemer
(1930-2004). Veja mais aqui.
O PESO – Uma das minhas recordações mais antigas é a
de estar atravessando com meu pai a ponte Golden Gate de carro, ao amanhecer.
Íamos para o antigo estaleiro da Marinha, onde ele trabalhava como encanador,
para a cerimônia de batismo de um navio. Era o outono de 1943, no dia do meu
aniversário. Eu tinha quatro anos. Quando chegamos, o cargueiro coberto de aço
preto, azul e laranja, estava equilibrado num poleiro. Ele era
desproporcionalmente horizontal e, para um menino de quatro anos como eu, tinha
as laterais grandes como um arranha-céu. Eu me lembro de passear ao redor do
casco com meu pai e olhar a enorme hélice de cobre, espiando através dos
suportes. Então, numa lufada repentina de atividade, as estacas, as vigas, as
placas, os postes, as barras, os blocos da quilha, toda a proteção foi
removida; os cabos foram cortados, as correntes foram soltas, as travas foram
abertas. Houve uma total incongruência entre o deslocamento dessa enorme
tonelagem e a velocidade e a agilidade com que a tarefa foi executada. À medida
que a estrutura de apoio foi desfeita, o navio começou a se mover para baixo,
ao longo da calha, na direção do mar. Ouviu-se o som da celebração, os gritos,
as buzinas, os berros, os assobios. Livre de suas amarras, com as toras
rolando, o navio escorregou do berço com um movimento sempre crescente. Foi um
momento de tremenda ansiedade quando o cargueiro chacoalhou, balançou, se
inclinou e bateu de encontro ao mar, meio submerso, para então emergir e se
levantar e encontrar seu equilíbrio. Não apenas o navio havia recobrado o
equilíbrio, mas a multidão de espectadores também. O navio havia passado por
uma transformação: de um enorme peso morto para uma estrutura brilhante, livre,
flutuante e à deriva. O espanto e a admiração que eu senti naquele momento
permaneceram. Toda a matéria-prima de que eu necessitava está contida no
reservatório dessa lembrança, que se tornou um sonho recorrente. O peso é um
valor para mim. Não que ele seja mais expressivo que a leveza; mas simplesmente
eu sei mais sobre o peso do que sobre a leveza, e tenho, portanto, mais a dizer
sobre ele, mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a diminuição do peso, a
adição e a subtração do peso, a concentração do peso, a manipulação do peso, o
suporte do peso, a colocação do peso, o travamento do peso, o efeito
psicológico do peso, a desorientação do peso, o desequilíbrio do peso, a
rotação do peso, o movimento do peso, o direcionamento do peso, a forma do
peso. Eu tenho mais a dizer sobre os ajustes perpétuos e meticulosos do peso,
sobre o prazer que deriva da exatidão das leis da gravidade. Tenho mais a dizer
sobre o processamento do peso do aço, sobre as forjas, as usinas de laminação e
as fornalhas. É difícil empregar objetos do dia a dia para expressar ideias de
peso, pois a tarefa seria infinita. Há uma vastidão imponderável no peso. No
entanto, eu posso registrar a história da arte como uma história da
particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso
do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, ainda que eu admire o que me falta.
Tenho mais a dizer sobre a história da escultura como uma história do peso;
mais a dizer sobre os monumentos à morte, sobre o peso e a densidade e a
concretude de inúmeros sarcófagos, sobre câmaras funerárias; mais a dizer sobre
Michelangelo e Donatello; mais a dizer sobre a arquitetura micênica e inca,
sobre o peso das cabeças olmecas. Nós somos todos restringidos e condenados
pelo peso da gravidade. No entanto, Sísifo empurrando eternamente o peso da sua
rocha montanha acima não me impressiona tanto quanto o trabalho incansável de
Vulcano no fundo da cratera fumegante, martelando a matéria bruta. O processo
construtivo, a concentração e o esforço diários me atraem mais que o leve e o
fantástico, mais que a busca pelo etéreo. Tudo que escolhemos na vida pela sua
leveza logo revela seu insuportável peso. Estamos diante do medo do peso
insuportável: o peso da repressão, o peso da constrição, o peso do governo, o
peso da tolerância, o peso da resolução, o peso da responsabilidade, o peso da
destruição, o peso do suicídio, o peso da história que dissolve o peso e erode
o sentido de uma construção calculada de leveza palpável. O resíduo da
história: a página impressa, a cintilação da imagem, sempre fragmentária,
sempre dizendo algo aquém do peso da experiência. É a distinção entre o peso
pré-fabricado da história e a experiência direta que evoca em mim a necessidade
de fazer coisas que ainda não foram feitas. Eu tento continuamente confrontar
as contradições da memória e fazer tábula rasa, de modo a ter que apelar para
as minhas próprias experiências e os meus próprios materiais, mesmo diante de
uma situação sem chance de realização. Inventar métodos sobre os quais eu não
sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo que ele se torne conhecido
para mim, para então questionar a autoridade daquela experiência e assim
questionar a mim mesmo. Texto extraído da
obra Escritos
e Entrevistas
1967-2013 (IMS, 2013), do escultor
estadunidense Richard Serra.
NUVENS SOBRE A COLINA – [...] Eu gosto
de livros como um alcoólatra gosta de álcool. Não há propósito nisso. É apenas
uma necessidade emocional. [...] No
campo de batalha, o que realmente importava não era o heroísmo de um instante,
mas a constância. [...] 'Macaco vê,
macaco faz', costumavam zombar deles no Ocidente quando falavam sobre o Japão.
Mas a imitação não é exclusividade dos macacos. Em toda a sua variedade
cultural, os europeus tomaram emprestado, copiaram e assimilaram extensivamente.
Visto sob esta luz, não poderia haver macacos mais veneráveis do que os
europeus, mas foram os recém-chegados
que causaram as risadas. [...] Os
historiadores foram forçados a escolher entre os dois extremos, classificando
nações e indivíduos como heróis ou vilões. É um grande defeito da
historiografia moderna analisar os fatos a partir de uma sensibilidade moderna
e a partir daí oferecer argumentos que não se sustentam. Outras ciências não
emitem tais juízos de valor. Ninguém jamais diria que o hidrogênio é um vilão e
o oxigênio um herói. A ciência começa quando os julgamentos desaparecem,
enquanto a historiografia começa precisamente quando divide os atores
históricos em bons e maus. [...] Demasiada
arrogância, demasiada mesquinhez, desconhecimento dos próprios limites que é um
mal que aflige todos aqueles que, como os filhos dos novos ricos, gozam dos
frutos das vitórias alheias alcançadas pelos seus antecessores. [...] Ele costumava dizer que era preguiçoso por
causa de seus filhos. Para ele, se os pais fossem longe na vida, os filhos
nunca encontrariam motivação suficiente para seguir seu próprio caminho. [...]
Depois de muitas tribulações, a
humanidade acabou aceitando a guerra imperialista como um crime. Porém, na
época desses eventos os valores eram bem diferentes. Essas guerras foram vistas
como uma expressão de glória patriótica. [...] Tornar-se um soldado significava educar-se. Não poupou esforços para
alcançar a vitória, mas com toda probabilidade buscou uma forma de não ter que
usar sua espada e mergulhá-la na carne do inimigo. Visto assim, usando uma
espada cerimonial na cintura que era inútil, era um ato de coragem suprema. Uma
coragem não inata, mas fruto de seus anos de treino e treino. [...] E um haicai tinha que criar imediatamente,
em seu primeiro verso, uma imagem clara e bem definida. Uma imagem pictórica e
segundo a concepção de Shiki, outra coisa, um traço de vida. A descoberta desse
conceito estético seminal, o esboço da vida, ocorreu a ele no auge da guerra.
[...]. Trechos extraídos da obra Clouds
Above the Hill (Paperback, 1969), do escritor japonês Ryōtarō Shiba
(1923-1996). Veja mais aqui.
DOIS
POEMAS - MINHA
ILHA - Ainda continuo navegando e navegando, / E procurando uma ilha no mar: / Já
há muito a procuro / Onde os ventos aleatórios navegam livres. / O mar tem
muitas ilhas / E portos expectantes de luz, / Mas não encontro a ilha / que
sonhei na noite ofuscada. / E ainda meu navio continua navegando / Em uma
planície circular ondulante, / E as nuvens acima de mim vão balançando, / E eu
procuro minha ilha em vão. PENSAMENTOS PERTURBADOS EM MOVIMENTO INFINITO - Pensamentos
perturbados em movimento sem fim / Enxame como tráfego em comoção, / Não me dê
descanso nem trégua. / Meu querido amigo era como um irmão, / mais firme do que
qualquer outro: / ele era como meu alter ego. / Mas, infelizmente, ele deixou
os desvios, / Apressou-se pelas extensas rodovias, / Em seu coração os assentos
do poder. / Meu próprio caminho continua sendo a / Trilha estreita através do
pântano e sobre o túmulo / E meu objetivo é uma propriedade à espera. / Pensamentos
perturbados em movimento sem fim / Enxame como tráfego em comoção; / Meu
querido amigo era como um irmão. Poemas do poeta estoniano Gustav Suites (1883-1956).
SINCRETISMO RELIGIOSO - O termo sincretismo é freqüentemente empregado para designar o hibridismo religioso que surge quando ocorre a fusão de duas ou mais crenças religiosas. Esse fenômeno é muito observado no Brasil, notadamente, na fusão das religiões africanas, européias e ameríndias.
O termo sincretismo tem sua origem em Plutarco e caracterizava a união das cidades cretenses, normalmente inimigas, diante de ameaças externas. Desde o renascimento serve a palavra para designar, positiva e negativamente, compilações sintéticas de cunho cultural. Na época do confessionalismo se tornou um conceito antiecumênico, até emergir no século XIX como um instrumento utilizado nas ciências da religião. Aí então foi empregado, com finalidade descritiva ou polêmica, no estudo histórico do cristianismo, já que este, em seu desenvolvimento, absorveu elementos culturais e religiosos de seu contexto. Nesse sentido muitos consideram o catolicismo como um dos maiores exemplos de uma religião sincretista.
Para as ciências da religião o sincretismo é um fenômeno que acontece, sem conotação positiva ou negativa. Ao analisá-lo, contudo, discordam claramente os estudiosos, devido ao diverso instrumental teórico usado para interpretá-lo e aos pressupostos subjetivos, conscientes ou não, por parte dos cientistas Exemplo marcante desta falta de consenso no estudo deste fenômeno vem a ser a rica diversidade de interpretações diante do sincretismo religioso afro-brasileiro. Barretto (1986) define o sincretismo como nome genérico utilizado por vários autores no campo da antropologia no Brasil, para designar o fenômeno religioso resultante do encontro das religiões trazidas inicialmente pelos escravos negros provenientes da África, com o catolicismo oficial e, posteriormente com o espiritismo segundo a codificação de A. Kardec, e ainda das religiões indígenas. Novas formas de cultos nasceram dessa fusão, mesclando elementos dessas diferentes crenças, a partir de diversos pontos de vista como o cerimonial, o estético, o doutrinário, ou mesmo o hagiográfico e o teogônico.
Durante muito tempo se creditou o sincretismo como uma forma de resistência cultural de uma classe oprimida à dominação exercida pela outra. Dessa forma, o sincretismo era tido como o refúgio onde os dominados podiam exercer seu culto de forma dissimulada, fingindo estar adorando os deuses dos dominadores, enquanto, na verdade, veneravam suas próprias entidades. Assim, acreditava-se que associar um orixá a um santo católico era uma estratégia encontrada pelos escravos de manter acesas suas crenças e rituais, ao mesmo tempo que ludibriavam os senhores, fazendo-os acreditar que eram os santos católicos a razão de sua devoção.
Algumas outras correntes de pensamento sugerem que, na verdade, o sincretismo seria um método desenvolvido pelos dominadores para impor sua religião de maneira menos abrupta. Assim, os brancos teriam associado os santos aos orixás como uma forma mais suave de catequizar os negros e fazê-los absorver mais facilmente sua cultura. Essa segunda teoria sobre o sincretismo está apoiada na constatação de que esse artifício doutrinador foi largamente utilizado, por exemplo, pela Igreja Católica para catequizar os pagãos durante os primeiros séculos do cristianismo. Há registros de igrejas edificadas sobre antigos templos de culto pagão, mais como forma de atrair as pessoas à nova religião do que como propósito de destruição dos antigos centros religiosos.
Boff (1982) defende que todas as religiões são sincréticas e, que o sincretismo não ocorre apenas na religião, mas em outros aspectos da cultura. Em nossa sociedade, entretanto, o sincretismo é uma categoria discutida principalmente em relação às religiões afro-brasileiras, campo em que tem sido considerado, por alguns, como mais evidente. Hoje, também, já se estuda o sincretismo no Brasil, em relação às religiões evangélicas e neopentecostais.
Por outro lado, na perspectiva antropológica, há uma síntese da idéia do sincretismo religioso no Brasil, de Nina Rodrigues que vem perseverando aos dias de hoje, historicizando lutas políticas e acadêmicas e repúdios que o conceito tem provocado, exemplificando, na medida do possível, com vivências e comportamentos religiosos, principalmente no campo afro-brasileiro. Como destaca o holandês André Droogers (apud Ferreti, 1995), o termo sincretismo possui duplo sentido. É usado com significado objetivo, neutro e descritivo, de mistura de religiões, e com significado subjetivo, que inclui a avaliação de tal mistura. Por isso, muitos propõem a abolição desse conceito.
O sincretismo parece-nos evidente, no Brasil, pela própria história do país. Nossos colonizadores sempre contaram, em seu território, com a presença de povos de procedências diversas, desde os romanos, na Antigüidade e através de toda a Idade Média, com os chamados povos bárbaros, e, depois, com os árabes e judeus, até a época dos descobrimentos. Fomos formados, depois, com a contribuição das mais diversas culturas, procedentes do continente africano, que se somaram às numerosas nações indígenas encontradas em nosso vasto território. Da Matta (1987), em diversas reflexões sobre a sociedade brasileira, defende o ponto de vista de que devemos dar mais atenção a palavras como ‘misturas’, ‘confusão’, ‘combinação’ e outras mais, que designam aquilo que verdadeiramente é necessário conhecer: os interstícios e as simultaneidades ou, como tenho afirmado no meu trabalho, as ‘relações’ Por isso mesmo, o sincretismo tem sido bastante discutido entre nós. Entretanto, parece curioso que, justamente aqui, haja tanta rejeição a esse conceito.
Como afirmamos anteriormente, sincretismo é palavra considerada maldita que provoca mal estar em muitos ambientes e em muitos autores. Diversos pesquisadores evitam mencioná-la, considerando seu sentido negativo, como sinônimo de mistura confusa de elementos diferentes, ou imposição de evolucionismo e do colonialismo (Ferretti, 1999). Nina Rodrigues (1935), fundador do campo de estudos afro-brasileiros, curiosamente não emprega a categoria do sincretismo, já conhecida em sua época. Discorre sobre o tema, usando, entre outros, expressões/termos como: fusão de crenças, justaposição de exterioridades e idéias, associação, adaptação, equivalência de divindades e, principal e significativamente, ilusão da catequese. De acordo com a perspectiva evolucionista dominante, o médico maranhense acreditava na “incapacidade física das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo”(Rodrigues, 1935:13). Em fins do século XIX, concluiu (id., pp. 168 e ss.) que os negros africanos, então existentes na Bahia, compreendiam mal o culto católico e que, entre seus descendentes crioulos, o “fetichismo” e a mitologia africana iam degenerando. A ilusão da catequese decorria, para ele, da equivalência entre as divindades. Afirma que os negros baianos, sem renunciar aos orixás, tinham profunda devoção pelos santos (id., p. 182). Constata a freqüência da prática dos dois cultos pela mesma pessoa, e que indivíduos de todas as cores, em caso de necessidade, consultavam os negros feiticeiros, mesmo quando, em público, zombavam deles. Considera que, na Bahia, o culto católico, as práticas espíritas e a cartomancia receberam influências do “fetichismo” negro. Condenava, entretanto, preconceitos dos jornalistas e perseguições policiais, pois considerava que o culto jeje-nagô era uma verdadeira religião, merecendo garantias de liberdade constitucional.
Embora aceitando o evolucionismo racista de sua época, Nina Rodrigues demonstrou visão penetrante sobre os fenômenos que estudou. Mesmo evitando usar a palavra e preferindo a expressão ilusão da catequese, foi, de fato, o pioneiro nos estudos sobre o sincretismo afro-brasileiro. Entre 1930 e 1950, destacou-se nesse campo o alagoano Arthur Ramos, antropólogo autodidata e um dos pioneiros nos estudos acadêmicos de Antropologia, no Rio de Janeiro e no Brasil. Especializou-se em trabalhos sobre negros e religiões afro-brasileiras, temas a respeito dos quais publicou várias obras. Como Nina Rodrigues, dedicou-se inicialmente à Medicina Legal e considerava-se continuador dos estudos do mestre. Ramos incluía entre os resultados da aculturação, a aceitação, o sincretismo e a reação. Preferia chamar de sincretismo o que outros chamavam de adaptação. Considerava o sincretismo como um resultado harmonioso de contatos culturais sem conflitos. Nos últimos trabalhos, constata, porém, que nem sempre esse processo é harmonioso e não conflitivo, especialmente quando decorre da colonização e da escravidão. Em vários dos seus livros, Arthur Ramos apresenta quadros e esquemas de sincretismos, como era comum entre autores da época, referindo-se (1942, p. 6) a avalanches de sincretismos: “jeje-nagô-muçulmi-banto-católico-espírita-caboclo”, etc. Hoje, esses esquemas se mostram formais, mecânicos, e são considerados de reduzido valor explicativo, uma vez que apenas exemplificam misturas de raízes dos fenômenos, sem realizar maior análise explicativa sobre os mesmos. Ainda na década de 40, do século passado, os estudos culturalistas sobre sincretismo tiveram como continuadores, no Nordeste, outros médicos. No Recife, os estudos afro-brasileiros, iniciados por dois parentes ilustres, o médico Ulisses Pernambucano de Mello e o humanista, sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, tiveram, com os médicos Gonçalves Fernandes e Valdemar Valente, dois pioneiros na publicação de livros sobre sincretismo religioso afro-brasileiro. Autor de interessantes estudos sobre mudanças nas religiões populares, Fernandes (1941) comenta que, na década de 30, do século XX, “já se faziam macumbas para ganhar jogo de futebol”. Valente (1976), igualmente na perspectiva culturalista, define o sincretismo como “um processo que se propõe a resolver uma situação de conflito cultural”. Distingue-o de aculturação, assimilação e/ou amalgamação, caracterizando o sincretismo como uma intermistura de elementos culturais, uma interfusão, uma simbiose entre componentes de culturas em contato. Como Nina, Valente refere-se, várias vezes, à incapacidade mental do negro e parece aceitar a visão da mentalidade primitiva, apresentada por Levy Bruhl, embora considerasse que já tivesse perdido a razão de ser. Para ele: “[...] nos candomblés de caboclos processa-se um sincretismo complexo, no qual se entrosam elementos de procedência nagô, jeje, banto, mina, malê, tupi, católico e kardecista. Misturados ainda com possíveis vestígios esotéricos, teosóficos e maçônicos. E também com práticas de quiromancia e cartomancia” (Valente, 1976, p. 68).
Após essas publicações, o interesse pelo tema do sincretismo religioso afro-brasileiro não atraiu mais tanta atenção. Autores fundamentais na continuidade dos estudos afro-brasileiros, durante muitos, anos passaram a se desinteressar pelo sincretismo ou dele trataram sem encontrar novas perspectivas. Roger Bastide, (entre as décadas de 1940 a 1960), o grande chefe da “escola Uspiana de estudos afro-brasileiros” e sem dúvida o mais importante autor nesse campo, se ocupou relativamente pouco com a categoria sincretismo. Bastide (1971) se refere ao sincretismo em seus primeiros livros, escritos sobre o Brasil, a partir de 1945. Considerava que não existia uma, porém várias religiões afro-brasileiras e procurou diversas interpretações para esse fenômeno, afastando-se do conceito de aculturação e preferindo a idéia de reinterpretação. Aproximou-se de Durkheim e Mauss (classificações primitivas), de Lévy-Brhul (participações ou representações coletivas) e de M. Griaule (princípio de analogia). Apresentado em etapas, em diversos trabalhos, o princípio de cisão (coupure, ou de ruptura) é uma das idéias-chave da sua tese de doutorado, publicada entre 1958/60. Preocupou-se em entender o contato entre civilizações diferentes, na perspectiva denominada por Gurvitch de sociologia em profundidade. Para ele, a idéia de sincretismo lembrava fusão, mistura ou identificação entre crenças. Bastide considera que “o pensamento negro se move no plano [...] das participações, das analogias, das correspondências” (1973, p. 182). O sincretismo, segundo Bastide, não implicava em misturas ou identificações, mas em semelhanças e equivalências, como num jogo de analogias, e não como fusão. Parece-lhe que o princípio de correspondência, de participação e de cisão exemplifica melhor a cosmologia primitiva. Bastide considerava o negro brasileiro um patriota fervoroso, que estava ligado à sua cultura ancestral, se considerava membro do candomblé e, ao mesmo tempo, era católico. Para ele, as duas coisas não são opostas, mas separadas pelo princípio de cisão, como se o mundo fosse dividido em compartimentos estanques. Exemplo da tendência a não valorizar o sincretismo é o trabalho do etnólogo Nunes Pereira, que, na década de 40 do século XX, redigiu importante trabalho sobre a Casa das Minas Jeje do Maranhão, ponderando que lá não havia sincretismo. Afirma (1979:33) que as filhas-de-santo apreciam os santos católicos, “no entanto a distinção entre os dois cultos mina-jeje e o católico é bem nítida”. Para ele, os negros mantinham oratórios “para despistar os oficiantes - receosos de perseguições e castigos da parte dos senhores de escravos [...] no íntimo apreciavam [...] só os voduns da África”. Parece-nos que Nunes Pereira está preocupado também em destacar que, na Casa das Minas, não são cultuadas entidades caboclas, acentuando os aspectos africanos dessa casa de culto.
Criticando a idéia de uma pureza africana, Marco Aurélio Luz publicou, com Lapassade, um pequeno estudo, favorável à macumba e à quimbanda, nesse sentido, pioneiro, vendo-as como manifestações de contracultura, em oposição à cultura branca dominante. Posteriormente, entretanto, Luz (1983) defende idéias opostas, valorizando a ortodoxia do candomblé nagô. Afirma que, por trás da aparência do sincretismo, o negro manteve e dinamizou sua religião, considerando que inexiste fusão ou sincretismo ao nível da cosmogonia (Luz,1983). Marco Aurélio Luz (1993:178/179) destaca a contribuição de Juana Elbein dos Santos e de Mãe Stella de Oxóssi no “movimento de desmascaramento da ideologia do ‘sincretismo’ [...] como parte da política do branqueamento que caracteriza o racismo no Brasil [...] que procura falsear a aproximação do negro ao catolicismo”. Na Bahia, onde as religiões afro-brasileiras são muito atuantes, têm havido diversos debates sobre a problemática do sincretismo entre essas religiões e o catolicismo popular. O chamado “mito da pureza africana”, que mencionamos antes, tem sido defendido principalmente por estudiosos e praticantes do candomblé ketu, difundido no Brasil a partir da Bahia, como comentou o antropólogo Peter Fry em diversos trabalhos. Em texto a respeito da II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, ocorrida em Salvador, em 1983, o autor comenta documento, assinado pela Yalorixá Mãe Stella de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá, uma das mais importantes mães-de-santo baianas que lideraram movimento contra o sincretismo, segundo o qual, se o catolicismo foi útil aos escravos, hoje os praticantes da religião dos orixás, que têm liturgia e doutrina próprias, não necessitam mais desse disfarce. Para Peter Fry (1984:40), a polêmica demonstra que “o conceito de ‘pureza’ e o seu oposto, a ‘mistura’ ou o ‘sincretismo’ são sempre construções essencialmente sociais e tendem a aparecer em ocasião de disputa de poder e hegemonia”. O autor conclui que o sincretismo religioso remete a uma discussão mais ampla sobre o pensamento brasileiro em relação ao negro e à sua cultura. O sociólogo Clovis Moura também considera insuficientes os conceitos de sincretismo, aculturação e outros, correlatos, numa sociedade poliétnica e dividida em classes. Pondera que esses conceitos são ideológicos e tendem a justificar o colonialismo e o neocolonialismo. Entre outros, o comunicólogo Muniz Sodré (1988:58) considera que não há verdadeiramente sincretismo entre o catolicismo brasileiro e os cultos negros, que vê como sistemas simbolicamente incompatíveis. Argumenta que os negros, ao associarem os orixás com santos católicos, não estavam sincretizando, mas “respeitavam (como procediam com relação aos deuses de diversas etnias) e reduziam as diferenças graças à analogia de símbolos e funções.”
Mais recentemente, o antropólogo baiano Ordep Serra, em trabalho polêmico, discute longamente a problemática do sincretismo, analisando sobretudo a situação na Bahia. Não concorda que sincretismo seja apenas mistura e confusão. Propõe "[...] que se chame de ‘sincretismo’, em sentido estrito, a todo processo de estruturação de um campo simbólico-religioso ‘interculturalmente’ constituído, correlacionando modelos míticos e litúrgicos ou gerando novos paradigmas dessa ordem que assinalem expressamente outros [...] de maneira a ordenar novo espaço intercultural" (1995:197/198). Ordep retoma e debate vários aspectos do conceito, mostrando a existência de semelhanças entre o catolicismo e a religião dos orixás. Discute também o mito da pureza africana, oposto à pretensa mistura do sincretismo. A Professora Josildete Consorte (1999:78/79), por exemplo, registra que o debate sobre o sincretismo se popularizou nas décadas de 30 e 40 do século XX, quando interessava apenas aos meios acadêmicos e à Igreja. A grande novidade foi que, na década de 1980, começa a envolver a comunidade do candomblé na Bahia e a ser divulgado nos meios de comunicação de massa. Para a autora, o sincretismo está ligado “ao processo de inserção do negro na sociedade brasileira e, conseqüentemente ao da (re)construção da sua identidade”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VALENTE, Waldemar. Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro, São Paulo, Nacional, 1976
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