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segunda-feira, maio 19, 2025

JAMAICA KINCAID, JEWEL KILCHER, ELIANE BRUM & MARCOS NANINI

 

Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som dos álbuns Villa-Lobos Piano Music (8 Vols. Naxos, 1999/2008), da pianista Sonia Rubinsky.

 

Um dia e outro, qual amanhã...Dá licença, faça um favor! Chegue mais perto, sim? Dê-me sua mão nessa rua... E vamos pela manhã: o dia não espera por nós. Vamos pela tarde, a vida é uma lembrança perdida nos olhos. Vamos pela noite: há tempo de sobra para ainda ouvir a canção porque em nossas mãos o mundo é nosso. Vamos. Uns dias às carreiras da correnteza, noutros a chatura do vagar das coisas mansas quase paradas. É a vida e não só isso. A vida não é só isso não. Para onde ir, pra que lado pender, pelo menos um copo d’água gelada, por gentileza. Quem sabe minhas chagas sejam a sua dor e as dores dos outros, doutras mais fundas que há milênios nos fazem doer e chorar. Melhor acender o Fogão e frever no passo, né não? Dias pendurados na memória, dias esquecidos redivivos... Tudo passa. De longe as luzes dos postes são vagalumes em fila parados no ar. Os faróis são relâmpagos nas paredes. Os motores são trovões poluentes sufocando e ouço quem assobiava uma modinha tarde da noite, não sei, porque ouvi pisadas, um disparo, parece: alguém foi desta para melhor. Dias que ficaram dos idos sem fim... Reapareceram os que levam o nariz no umbigo e tudo de novo: quem mandou mexer com quem tá quieto? Se servir de consolo: vá se foder! Vamos vivendo pelos sonhos espiralados com imagens desbotadas de séculos reiterados do genocídio. A rua agora é uma serpente dançante reluzindo nuvens explosivas, meu chão é todo mundo e o mundo todo. De canto a recanto e tudo tem uns dias de chuva, outros de sol. A gente tem de mudar de preferências, de condução, avalie. Fui aprendendo com o tempo a ficar só, a me virar comigo mesmo e do jeito que der. Hoje os meus estão todos no cemitério, os que sobraram estão por aí e quase não sei, passaram os últimos... O que restou das matas, dos canaviais, das queimadas, repinicado dos violeiros, motes e glosas dos repentistas. Hoje é tudo muito brega com suas devoções cegas, com suas orações exaltadas e o que há para comer de enlatados e pré-cozidos, outros sonhos comprados nos supermercados, farofada na praia domingueira, bater perna pelo asfalto abrasado, olhares que seguem os automóveis e as fotos nas redes sociais. Os posudos endinheirados ninguém sabe como enriqueceram de uma hora pra outra, da noite pro dia. São só os queimas de estoques nas promoções do comércio e na zoada dos carros de som, a última moda, está tudo caro e custando os olhos da cara nas prestações intermináveis. E as recepcionistas vistosas para portabilidades infindas de amigo, de bancos, de telefônicas, de afetos e até de cara e cabelo, do que quiser e mudar de casa, de bairro, de condomínio, tudo muda, é só ligar a tevê, esquentar no micro-ondas, matar a barata, besouros infernais, jatos de inseticida, onde a pressa escondida atravessa a ponte, quem sabe, sobe ladeirão, desce pelo calçadão, aproveita o sinal aberto, pé na bunda... Desde criança que falo sozinho, as árvores, os bichos e outros eus com as paredes, coisas, sonhos de olhos abertos, acordados farrapos pelas noites roucas e resistem ao amanhecer, inevitáveis acordes de um redemoinho irisado, dramáticos arrependimentos de auroras nubladas. Estamos todos desorientados, doidos varridos, tontos aloprados. Quantos não lubrificaram seus cumbucos na dor de cotovelo de suas xués paixões, hem? Tá. Urdi invenções de desejos preteridos na palavra arredia, indomável, fugidia da semeadura dos meus pais e escapuli pro esvaziamento dos simulacros. Removi dos olhos as montanhas amedrontadas e desliguei os pavorosos motores para que a vida ecoasse Sol na alma e eu me sentisse livre da fuga humana, a sorrir da fortuna dos meus infortúnios. Só queria caraminholar ao léu como um cabrito solto no berro lá, bezerro mugindo sol, sapo coaxando si, deformado pelo dó, inconformado com o ré, desconforme de mi, a loucura vigente sou, cão desgovernado por sustenidos e bemóis desentoados. Meu coração pulsa aventureiro do escambau no oco do mundo como se fosse o núcleo da Terra prestes a explodir se estendendo por raízes e rizomas nos talos e todos os troncos pelos galhos de todas as folhas e flores, dos frutos que saltam no abissal instante dos ventos nos bicos dos pássaros, o polém que os zangões semeiam do grão de tudo, inutescência de nada. Rabiscado de catataus na barba maluca sou o cafuzo das mamelucas na minha pele de macuco. O que voga: o muro é só pro exercício do pulo com a visita da saúde e a hostilidade correndo frouxa à revelia preu pegar o beco, porque machucava os inutensílios, a música papulá e o que não vale um xis. E futucava caloteiros porque sempre só comigo mesmo, qualquer hesitação podia ser letal. O caduco aos agradinhos engabeladores pela pinoia, xingado, praguejado, tanto um como outro, tudo passa e a arte fica nua. E a poesia um arroz no prato com feijão e quitutes comestíveis feitos pela vó, cada casa é uma sombra de paiol arruinado. E se perdeu a condução, vai na outra, a fila do caixa, os preços subiram de novo, putzgrilla! Nunca mais viu-se o sol da manhã, faz tempo que não se aprecia o fim de tarde, só a moda da atriz, o galã da vez, o último sucesso das paradas, cair nas quebradas, dar um rolê, o que importa é estar empregada, sindicato pra quê, votar mesmo pra quê, tanta coisa pra quê? O padre falou o que o pastor disse, valha-me, Jesus! A urgência do instante, agora ou já! Não há pra depois! E não abrir mão de insinuar: se Deus quiser, dará! Vou de primeira, de segunda, de terceira e o que mais der na cabeça num zunzunzum, no corpo um chamego bom que ninguém de ferro. Preste atenção! Prestenção! Acode, cruz-credo! E como curar as chagas da fé? Um comprimido, cápsula, drágea, tem na farmácia e farmácia tem em tudo quanto é lugar, em todo canto. Estamos mesmo doentes demais, doentes de doer. Tem de cuidar da vista, de ir ao dentista, à manicure, fazer o cabelo, os mesmos, as mesmas semanas, os meses, os mesmos últimos anos, um barulho ensurdecedor e é só dobrar a esquina ou trocar de roupa a saborear tudo datado, não o prato frio, pra uns está sempre quente como se fosse a primeira vez, o impacto da primeira vez. Também tenho tudo e o que não quero, muito inventei. O que vi e o que li está no Tataritaritatá. Salve terra boa, mãe de todo vivente (de coisas que parecem até estarem vivas, de gente que só quer trempe e geme por manha e até por não ter o que fazer, nem preste para tal). Nasci na beira do rio e nele aprendi o que nem se ensinou: pra descer, vento e correnteza; pra subir, tem de nadar. Inventei outras tantas coisas, muito além do céu por limite, subterrâneo da maior fundura. Coisas que vi e amei, doutras nem sei o que é que diga - do raso nunca quis, todos os lados. Do alto pra baixo, do fundo pra cima, viscerais sucatas, cascatas viris e vitais. Tenho de ir embora, não importa o que vivo agora. Só tenho este instante, pouco importa o que passou ou virá. Meu nome é nada e tudo perece a cada momento a morrer. A vida é o meu circo, a poesia o meu pão. Até mais ver.

 

Mary di Michele: O inverno é longo demais para o meu gosto. Prefiro as estações intermediárias, as temperadas. Adoro maio, quando tudo floresce ao mesmo tempo aqui, incluindo os bordos com suas flores verde-ácidas; as florezinhas cobrem as calçadas... Veja mais aqui.

Rebecca Goldstein: Se você não se esforça, ou se seus esforços não valem de muita coisa, então é como se você nem tivesse se dado ao trabalho de aparecer para a sua existência... Veja mais aqui, aqui & aqui.

Jenny Odell: Estou sugerindo que protejamos nossos espaços e nosso tempo para atividades e pensamentos não instrumentais e não comerciais, para manutenção, para cuidado, para convívio. E estou sugerindo que protejamos ferozmente nossa animalidade humana contra todas as tecnologias que ignoram e desprezam ativamente o corpo, os corpos de outros seres e o corpo da paisagem que habitamos... Veja mais aqui.

 

TRÊS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

EU NÃO ESTOU AQUI - Eu não sou daqui \ Meu cabelo cheira o vento \ e está cheio de constelações, \ E eu me movo sobre este mundo \ com uma descrença saudável. \ E eu me aproximo dos meus dias e do meu trabalho \ Com a consequência vaporosa \ Um toque que é translúcido, \ Mas pode violar a pedra.

PAIXÃO - A paixão é um estranho \ - Uma coisa. \ Uma criatura óssea fina com a alimentação de si mesma. \ É viciado não em seu assunto, mas em sua própria fome vã. \ E precisa apenas de um rosto bonito para alimentar sua imaginação desenfreada. \ É sofá húmido e palmas suas. \ São tapetes carnudos em chamas com conquista. \ Mas quando a conquista é completa, \ O sangue deixa seus membros e fica desencantado. \ Decepcionado até mesmo ao ponto de nojo \ com seu sujeito, que se senta então, como um tronco oco, \ Esvaziado da sua preciosa carga \ e deixado para desaparecer como navios de guerra derrotados. \ Uma semente aliviada de sua casca transparente, \ para se dissolver finalmente em uma língua áspera e impaciente.

AO ENTRAR NA MINHA VAN - Alegria, pura alegria, eu sou \ O que eu sempre quis \ Para crescer e ser \ As coisas estão se tornando \ Mais de um sonho com \ A cada dia de vigília... \ As sobrancelhas pesadas da vida diária \ Estão a ficar incrustados \ com brilho e o dedo agitramador \ A consequência é \ Começando a rir \ Homens velhos mal-humorados \ Tenha as asas \ Queimaduras esportes Halos \ e embotamento do dia-a-dia \ Já começou a respirar \ Como eu me lembro do \ Incrível leveza \ de viver.

Poemas da poeta, cantora, compositora e atriz estadunidense Jewel Kilcher, autora da obras livros A Night Without Armor (1998), Chasing Down The Dawn (2000), Chasing Down The Dawn PV (2001), Angel Standing By (1998), Heart Song (1998), Pieces Of Dream (1999) e Never Broken (2015), entre tantos outros.

 

AUTOBIOGRAFIA - A raça não é muito interessante para mim. O poder é. Quem tem poder e quem não tem. A escravidão me interessa porque é uma violação incrível que não parou. É preciso falar sobre isso. A raça é uma diversão... Eu realmente não entendia o racismo porque cresci em uma sociedade totalmente negra, então eu não vi como era possível não gostar de mim!... Estou tão acostumada a ser mal interpretada... Uma das coisas que a leitura faz, torna sua solidão administrável se você é uma pessoa essencialmente solitária... Pensamento da escritora de Antíqua e Barbuda, Jamaica Kincaid, autora da obra The Autobiography of My Mother (Farrar Straus Giroux, 2013), no qual expressa: […] Não importa o quão feliz eu tenha sido no passado, não sinto saudades. O presente é sempre o momento que eu amo. [...] O passado é uma sala cheia de bagagem e lixo e, às vezes, coisas que são úteis, mas se são realmente úteis, eu as guardei. […]. Já no livro Generations of Women: In Their Own Words (Chronicle Books Llc, 1998), assinalando que: […] O que eu não escrevo é tão importante quanto o que eu escrevo [...]. Ela também é autora das obras The Best American Essays (1995), Lucy (1990), A Small Place (1988), At the Bottom of the River (1983), entre outros.

 

BANZEIRO ÒKÒTÓ - [...] uma das experiências de alegria mais importantes que vivi. Alegria da partilha, alegria por ser liberada de precisar explicar o tempo todo por que não podemos destruir a única casa que temos, alegria por encontrar um lugar no sem lugar do mundo. Alegria por pertencer, eu que vivo despertencida [...] Não aconteceu de repente. Foi acontecendo. Ainda acontece. Nunca mais vai parar de acontecer, acho. A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta. Já não sabemos que eus são aqueles. As pessoas seguem nos chamando por nossos nomes, atendemos, aparentemente estamos com nossas identidades intactas — mas o que somos, já não sabemos. O que nos tornamos não tem nome [...]. Trechos extraídos da obra Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras, 2021), da escritora e jornalista Eliane Brum, que no livro Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o Brasil, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago Editoria, 2019), ela expressou: […] Podemos concluir que, no senso comum, a infância não foi inventada para todas as crianças [...] E assim, com os males reais sendo invisibilizados e apagados, tudo continua como está. E aqueles que gritam seguem cimentados na mesma posição na pirâmide social. [...] Mesmo que isso não seja óbvio para todos, é a arte que expande a nossa consciência mais do que qualquer outra experiência, justamente por deslocar o lugar do real. Ao fazer isso, ela amplia a nossa capacidade de enxergar além do óbvio. [...]. No livro Meus Desacontecimentos: A História da Minha Vida Com as Palavras (Arquipélago, 2017), ela expressa que: [...] É este afinal o sentido da literatura da vida real. Ou pelo menos um deles. Tentar amalgamar pela linguagem o que foi separado pela carne. Mas a palavra é desde sempre insuficiente para abarcar a vida e aquele que escreve se condena ao fracasso. [...] Escolhi viver sem fronteiras definidas, nações não me interessam, limites só me importam os da ética. Tenho um coração andarilho, um corpo mutante, uma mente transgênera. [...]. Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

A ARTE DE MARCOS NANINI

[...] Sou do Recife, com orgulho e com saudade, como dizia o Frevo nº 3, e gosto muito de pitombas! Essa é minha característica... [...] Teatro é minha vida! Porque logo que me entendi como pessoa, eu quis fazer teatro. Quando tinha teatro na escola, achava aquilo muito interessante! Ali não tinha profissionais da área, mas adorava aquela situação de fazer uma peça. Eu quis muito fazer isso dali por diante e é o que eu tenho feito até hoje. Eu já vivi muitas vidas graças ao teatro [...] O teatro tem um ponto. É uma referência grande para mim, pois ali começou tudo. Os outros eu tive que me adaptar. Porque quando fui fazer televisão, era tudo diferente. Aí fui observar, entender, compreender aquilo tudo. Só então, fiquei mais à vontade. A mesma coisa aconteceu com o cinema, porém gosto dos três. Até porque não gosto quando me falta um deles para fazer [...].

Trechos da entrevista Nanini, com orgulho e com saudade (Viver – Diário de Pernambuco, 2024), concedida ao jornalista Robson Gomes, pelo ator, autor, produtor teatral e dramaturgo Marcos Nanini (Marco Antônio Barroso Nanini), que teve sua biografia O avesso do bordado: Uma biografia de Marco Nanini (Companhia das Letras, 2023), publicada pela premiada jornalista, roteirista e professora universitária Mariana Filgueiras. Veja mais aqui, aqui & aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.

& mais:

Dareladas – a arte de Darel Valença Lins aqui.

Livros Infantis Brincarte do Nitolino aqui.

Diário TTTTT aqui.

Literatura Indígena: Cosmovisões & Pela Paz aqui & aqui.

Poemagens aqui.

Cantarau Tataritaritatá aqui.

Teatro Infantil: O lobisomem Zonzo aqui.

Faça seu TCC sem traumas – consultas e curso aqui.

VALUNA – Vale do Rio Una aqui.

&

Crônica de amor por ela aqui.

 


terça-feira, novembro 01, 2022

ALDA MERINI, ELIANE BRUM, ILONA GUITAR & ATELIÊ VIRTUAL

 

 Ao som do Prelude nº 1, de Heitor Villa-Lobos, na interpretação da violonista polonesa Ilona Guitar.

 

TRÍPTICO DQP: - Quando o Sol e os escombros... - Ufa! Uma e outra vez flui o rio pro mar. Já era tempo ouvia Primo Levi: A intolerância tende a censurar, e a censura promove a ignorância dos argumentos dos outros e, portanto, a própria intolerância: um círculo vicioso e rígido que é difícil de quebrar... E isso doía na quebrada dos últimos anos, como aquele verso do Georg Trakl: A neve negra que escorre dos telhados; / Um dedo vermelho mergulha em sua testa / Flocos azuis afundam no quarto vazio, / Estes são os espelhos mortos dos amantes... Impossivel ignorar que antes foi o golpe e depois emergiu a caquistocracia: os sobressaltos tudo outra vez e batiam cabeça como se o perigo não passasse nem tão cedo– o que esperar de Fabos-cabeças-de-fósforos se eles são irredutíveis no Fecamepa? E com eles a pandemia: estúpidos por conta própria com as suas ucronias pelos alto-falantes, tão inquietante quanto claustrofóbicos, do desagradável ao intolerável - qual calibre da guilhotina e as reprises de pólvora, a bofetada sem revide. E conseguem manter com suas baforadas o ar fétido do mundo a franzir o cenho à careta do que desagradavam porque odeiam aflato e vagido, quando pararão de se debater, ninguém sabe – e entre eles, desde que não fizessem às claras e nem assustassem as crianças. Ora, ora. Nem todo mundo é carrasco, nem todo mundo é só do contra porque verdugo e antipático são quase senão os mesmos. Só conseguia ouvir ao meu lado a Eliane Brum: Há realidades que só a ficção suporta... Não adiem os começos, porque o fim já está dado... Era como se só restasse pedir demissão da humanidade, chovendo por dentro entre o sombrio e a existência, os corpos e a morte. A torcida era para que aparecesse um vaqueiro bom pra botar essa boiada espalhada no seu devido curral. Entretons e eutopias, eu me dizia: a vida é necessária como toda arte é política. Graças! Agora parece podermos respirar um pouco mais aliviado porque esta cidade não pertence a ninguém, nem a bandeira é só para energúmenos. Caminho longo pela frente, ainda bem que a estrela brilhou com teor de remissão e alumiando a estrada. Lavei a alma. Prossigamos, enquanto o Sol e os escombros...

 


Ateliê Virtual – A ideia foi do Rubens Cunha Lima, sugestão logo acatada por todos, até pra encampar bloco carnavalesco num desfile geral – troça essa que faria questão de compor mais um frevo! Vambora. Logo a Cibele Carneiro tomou as rédeas das providências e foi arrumando tudinho enquanto sapecava artes. Não demorou muito e lá estávamos todos prontos para trocar ideias. De chapa o Ricardo Aidar trouxe a arte do centenário Pierre Soulages e desafiou a gente pruma pesquisa aprofundada a respeito - – afora mostrar dois quadros de sua autoria que me trouxeram de volta a Intromissão do verbo. A Solange Pinheiro não ficou de fora e me sugeriu logo o Vik Muniz, enquanto a inquieta Márcia Gebara arrumava uma Feira de Livros duma escola. E todas as quintas desde as instruções dos adoráveis professores Renata Sant'Anna de Godoy Pereira, Evandro Nicolau & Maria Angela Serri Francoio. Daí deu-se a organização do nosso ateliê. E eu que não passava dum caçula desenhador, logo me vi parceiro na empreitada. Simbora com aquela sensação do Paul Celan entre o complexo e o complicado: A poesia é uma espécie de regresso a casa... Havia terra dentro deles, e eles cavaram... Eles me curaram em pedaços. E o que de bom vai adiante, rumbora!

 


Hic et Nunc... - Curiosamente ocorrera comigo o que foi narrado um dia por Middleton: Alguém se aproximou para me entregar um folheto e uma recomendação: não é pra qualquer um. Sim? Reiterou: Só para pessoas especiais. Intrigado, abri o comunicado. Atento, descobri: lá estava inscrita oferta de serviços funerários. Hem? Ao levantar as vistas para indagar a respeito, não havia ninguém: será a trama do xadrez dele? Fiquei só com o distante eco dos antepassados revividos que emergiam no meio das ruas. Era como se me chamassem pelo nome e eu sabia: a tragédia na geral. Mas a mim que haviam tumultuado. Sei que tudo é para ser experimentado: diferentes cotidianos, o aqui dentro e o lá fora. O bom foi a surpresa de Alda Merini: Estamos com fome de ternura, em um mundo onde tudo é abundante que somos pobres desse sentimento que é como uma carícia para o nosso coração que precisamos desses pequenos gestos. Faça-nos sentir boa ternura é um amor desinteressado e generoso, que não pede mais nada para ser entendido e apreciado... O que me deu agora ou depois, respirar fundo o pó da estrada: sempre o inesperado, como se eu dissesse noutro tempo verbal: não há nada melhor, nem há outra escolha. Amanhã já é outro, feliz de quem vive e possa morrer em paz. Não é de hoje, só agora vale mais. Até mais ver.


 

Outro dia mexendo em uma livraria, estarrecido encontrei a cartilha Caminho Suave, a mesma em que fui alfabetizado quarenta e tantos anos atrás. Alguma coisa está errada. As crianças mudaram muito nesses anos, enquanto a educação deu pequenos passos adiante. Pequenos passos mais voltados para a estatística, que para o conteúdo. O futuro será péssimo, pois daqui a 10 anos entre essas crianças que chegam a 5ª série sem saber ler e escrever, estarão os futuros educadores...

Trecho extraído da apresentação da obra Domínio público – literatura em quadrinhos (Funcultura, 2006), do arquiteto, editor e presidente do Instituto do Memorial de Artes Gráficas do Brasil (IMAG), Gualberto Costa. Veja mais Educação & Livroterapia aqui & aqui.




 


domingo, março 20, 2022

MICHAEL MCCLURE, SERGE PEY, NATALI ZABLOTSKAYA & CORBINIANO LINS

 

 

TRÍPTICO DQP: Uma & outra ou nenhuma das duas entroutras... – Ao som dos álbuns Piano Music - The Piano Music of Heitor Villa-Lobos (Naxos, 2007 – 8 vols), da pianista Sonia Rubinsky. - Minhalma & muitas coisas refletem repletas donde não sei, sobrevivo à excentricidade: coloquei a vida na ponta do lápis e ouvi o eco de Martin Amis: Escrever é um ato de liberdade. Transbordam fronteiras monumentais: overtures faiscantes da terra do nunca, violinos gritam sobre o gelo antártico, flautas e obóes escusos pelo superlativo e exacerbado das tempestuosas paixões e soam incólumes ao dobrar o Cabo da Boa Esperança, decibéis de loucuras por descobrir ou inventar na banda atlântica do planeta, além de sonhar decisivamente vital por toda imensidão cósmica. Era para saber de Jodorowsky: Entre o que eu penso, o que quero dizer, o que digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo. A pessoa se torna sábia apenas na medida, enquanto atravessa sua própria loucura. Umoutra e tantoutras enfileiradas, quase irreconhecíveis de esquecidas entroutras, o violão e a voz para cantar, revanche da vida.

 


Elas, Opuntia & peyotl... Imagem: a arte de Corbiniano Lins (1924-2018) – Quatro mulheres muito belas me ofereciam água nas xicales. Era tudo muito onírico, senão surreal. Mesmo assim tomei, agradeci. E me mostraram um magnifico cacto que mergulhava suas raízes na água e sobre a sua folha mais alta se fechava a garra de aço da águia majestosa - alter ego do Deus-Sol - com uma imperial serpente ao bico. Uma delas achegou-se e disse apontando para a cena: Opuntia. Sim, a mesma da Oda al cactos de la costa de La Sebastiana da Valparaiso de Neruda: Pequeña masa pura de espinas estreladas. Era ali Tenochtitlan, disseram-me: o Umbigo da Lua. Presa no bico da águia, Quetzalcoatl – A Serpente de Penas – cantava: Não te apavores, meu coração, / Lá adiante, sobre o campo de batalha / quero morrer, anseio por morrer / sob a faca obsidiana. / O que querem nossos corações / é a morte na guerra. / Ó vós, que estais em combate! / Eu quero a morte sob a faca obsidiana. / O que querem nossos corações é a morte na guerra. Assisti a tudo e elas me levaram para a deusa huaxteque Tlazolteolt que apareceu acompanhada de uma mulher de largas nádegas dos Nonoalcas e me disse: Toma é tua! Todas, então, desnudas, dançaram ao meu redor. A escolhida colocou-me na cacunda e seguiu para a feiticeira Malinalxochitl que me entregou a bela Chalchiuhnenetzin, filha de Montezuma: É tua, toma! As duas me encheram de regalos e contaram muitas histórias por noites e dias infindos de coisas nunca vista nem dita. Fomos interrompidos com a chegada de Mixcoati, o chefe dos Toltecas, vestido com a pele sangrenta da filha e a se empanturrar com carne das cobras-cascavéis. Olhou-me firme e me apontou para a grande beleza de Chimalma, justo na hora que Atecpanecatl o matou assaltando o poder para tornar-se o soberano. Chimalma que havia engolido descuidada um pedaço de jade azulesverdeado estava grávida e louca de dor fugiu para a casa dos seus pais para dar à luz o seu Topilzin. Surpreso com aquilo, mais me assustei: arrancaram o coração de Chalchiuhnenetzin e lançaram aos cães – restou-me dela os seus seios fartos e aduncos, os lábios molhados de margens de rio e os quadris da montanha mágica. Ela chorosa aproximou-se e me contou que havia já quatro fins do mundo e o naul ollin predizia grande movimento e tremores: nosso Sol terminará seu curso no poente, num despedaçamento de toda a Terra. Soube delas que estrangeiros ali chegaram, os invasores eram galegos famintos que comiam a Carne de Deus e declaravam festivos ali se apossarem da América. Opuntia, alguém disse, e mais comiam. Opuntia! Não, não era, era teonanacatl, era peyotl - que também é mescal pros nativos, num trecho de um poema do dramaturgo compositor estadunidense Michael McClure (1932-2020), sim, o mesmo que era Pat McLear do Big Sur de Kerouac e da Mercedes-Benz de Janis Joplin: ... Eu ouço / a música de mim mesmo e escrevo / para ninguém ler. Transmito fantasias enquanto / cantam para mim com Vozes de Circe. Eu visito / entre os povos de mim mesmo e sei tudo o / que preciso saber... Depois dele os versos xamânicos da memória-coração do poeta francês Serge Pey, no Festival de Tambores, fazendo nós com ervas na rocha da montanha: ... Ensina-me / aqueles que golpeiam a terra / e a balança que sustenta / meu pé descalço / Eu sou o norte do cérebro / eu sou o sul da perna / sou o centro / da mão e da língua / sou o leste-oeste / da árvore iminente / que brota na / morta / sou a direção / quinta da voz / Vamos ao país / do nosso bisavô / nas montanhas / onde moram... Lá onde o peiote é / uma rosa / no topo do Leunar / chupando a formiga vertical... Foi então que a dos belos glúteos enxotou a todos, acendeu o poquietl e a espessa fumaça de virtudes tomou conta do lugar. A dos seios aduncos deu-me octli e nos deitamos sobre a Pedra dos Ciclos. E me trouxeram outras belas para viverem no meu sonho Corbiniano.

 


Néstogas outras... – Imagens: da artista ucraniana Natali Zablotskaya. – Havia um sorriso no fundo do vulcão. E a milágrima era larva e lavava o dia que vi de ontem mais que amanhã. Fez-se estrela e não dizia nada, brilhava no horizonte dos meus olhos, como versos do Man'yōshū – letras soltas que caiam feito flores de um raio na tarde anoitecida e rompeu a saia ao vento da moça bonita que saltou das telas para me falar daquele maio dos meus vinte e seis anos. E dela surgiam OVNIS no plantão do céu no Brasil, porque já era oito da noite no oitavo dia do maio oficial das aparições e pairavam extáticos e cintilantes pelas bordas de suas curvas. Se eu soubesse já tinha buscado a botija no pé do arco-íris e que ela guardava no ventre nu para me dar. Não seria viagem perdida, era ilusão corporificada na mulher que eu vi passar soltando versos aos requebros para dizer de Néstogas e o que foi feito e nunca existiu. Graças! Até mais ver.

 

O conhecimento serve para encantar as pessoas, não para humilhá-las.

Pensamento do filósofo e escritor Mario Sérgio Cortella. Veja mais aqui e aqui.

 



sexta-feira, março 05, 2021

BYUNG-CHUL HAN, MARK DANIELEWSKI, LACEY LEWIS, SIMON BISLEY & CÍCERO DIAS

 

 

TRÍPTICO DQC: Janelavai... – Ao som do álbum Études, preludes, choros (RRMR, 1986), de Heitor Villa-Lobos, na interpretação do violonista Turíbio Santos. Da janela a hora e já vou: a indiferença grassa, o morticínio tornou-se insuportável e a mordaça da negação ousa coibir a gritaria dos que sucumbiram e dos que escaparam aflitos. Recolho todos os meus mortos: os da convivência, os que se foram das mais longínquas plagas e todas as vítimas do irresponsável Genocídio do Fecamepa, que Mario Sergio Cortella flagra na tragédia: ... tem levado a população a uma situação de agonia cada vez mais forte. Na educação, na saúde, na cultura e na economia, a gestão federal tem sido desastrosa. E vem levando algumas instituições, como as Forças Armadas, à total desmoralização. Sensação das cinzas, dói demais e quem culatreia ou acuado na condução persecutória, salve-se quem puder ao deus dará. É o que se pode fazer pregados olhos no artigo O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, do filósofo Byung-Chul Han: Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos nós, pessoas dotadas de razão, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta. É o que nos resta depois de uma espiada aguda na sua obra Sociedade do cansaço (Vozes, 2015), na qual assevera: A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos. Enfim, observa ele: O homem não nasceu para o trabalho. Quem trabalha não é livre. Respiro fundo e voo: a minha liberdade é inegociável, sou ave Patativa de Assaré: Onde a verdade aparece a mentira é destruída. E se eu tivesse que morrer hoje ou agora mesmo, tudo já teria valido a pena. Para onde vou será sempre dia; e o anoitecer, descanso. Por isso levo todos e quem quiser comigo bem dentro do coração: já nela vou lá.

 


DOIS: Escrita das imagens dos pedaços – Imagens: As heroínas do quadrinista e artista visual britânico Simon Bisley, ao som da Cello Sonata in C-Major, op. 119 (1949), de Sergey Prokifiev, na interpretação da pianista Sol Gabetta e da cellista Polina Leschenko (2016). – E vai a vida e gira e voo estrada afora sem contar as pedras dos caminhos, já foram tantas rolando ribanceira abaixo e nunca tive medo de me perder, quantos labirintos desatei das tocaias da legião de minotauros e sicários em série, desencantados nas rebarbas escatológicas do ermo real, fabricados pelas cloacas desiguais. Havia de me salvar não sei das quantas e sempre ela assomava do inopinado no valhacouto das circunstâncias, a me dizer Rosa Luxemburgo: Não estamos perdidos. Ao contrário, venceremos se não tivermos desaprendido a aprender. Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos... Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem. A Liberdade é quase sempre, exclusivamente a liberdade de quem pensa diferente de nós. E era o pão de cada dia, fome saciada com migalhas agarradas pela mão. Lá estão estradas erradias e uma esperança indelével recolhida dos olhos do coração dela.

 


TRÊS: Olhar a alma de todos os sobreviventes - Imagem: a arte da artista visual estadunidense Lacey Lewis, ao som do álbum Satie: Complete Piano Works Vols. 1 e 2 (Brilliant Classics, 2010), de Erik Satie, na interpretação da pianista italiana Christina Ariagno. – Solidária solidão, não tinha mais onde ficar sequer para onde ir. Quando ela desaparecia, errava às cabeçadas muros e paredões, até ver-me sacudido pelas aversivas condições, a tê-la ao lado, arrimo de todas as horas, recitando Anna Akhmátova: Eu, como um rio, / Fui desviada por estes duros tempos. / Deram-me uma vida interina. / E ela pôs-se a fluir num curso diferente, passando pela minha outra vida, e eu já não reconhecia minhas próprias margens. O que se perde não ganha, mas o achado quando menos se espera. Quando não, no meio da tarde ela me dizia um trecho do House of Leaves (Pantheon, 2000), do escritor estadunidense Mark Danielewski: Paixão tem pouco a ver com euforia e tudo a ver com paciência. Não se trata de se sentir bem. É uma questão de resistência. Assim como a paciência, a paixão vem da mesma raiz latina: pati. Não significa fluir com exuberância. Significa sofrer. E para quem sofreu além da conta e ainda achava pouco, nunca demais, o cansaço e ela, era o que tinha mais haver, não mais. Ela ausente sequer imagina viver em mim, mesmo que nem me dê conta por onde anda ou vai, vive inteira e real em mim. É hora de prosseguir, mesmo que as tardes sejam madrugadoras ou as manhãs anoitecidas, ziguezague e vice-versa, eu voo: não passei do ponto, a hora é esta. Até mais ver.

 

A ARTE DE CÍCERO DIAS



Num clarão estranho, rompendo tudo, num ruído metálico de suas grandes asas, os poderosos arcanjos vão paliando pelas costas do Nordeste os corais. Corais e mais corais. Belos, rosas, vermelhos. Sabiam da luz das estrelas. Estrelas cadentes, bem vivas, a mostrar o caminho da vida eterna. E, ao abrigo de uma esfera celeste, colorida de um azul de anil, as formas e as cores se ajustavam.

A arte do artista plástico do Modernismo brasileiro Cícero Dias (1907-2003). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.


 


terça-feira, março 02, 2021

LEONORA CARRINGTON, MULTATULI, THEODOR SEUSS, FASSBINDER, RIEFENSTAHL BERTINO FERNANDES

 

 

TRÍPTICO DQC: Amanhece e é maravilhoso viver - Ao som da Quinta Sinfonia Rückert (1901-1902), de Gustav Mahler, com a Chicago Symphony Orchestra, conducted by Sir Georg Solti Recorded live at Bunka Kaikan, Tokyo (1986) – Meu olhar insone paira na despedida da noite, os primeiros raios de Sol trazem a esperança perdida anteontem. O dia amanhece como se fosse para sempre e contemplo lá longe a relva, na qual uma sombra se projeta por trás dos galhos imprecisos. Insisto na contemplação e é ela que surge estranha escultora, pintora e escritora surrealista Leonora Carrington (1917-2011) e entrega: Esta é uma carta de amor para um pesadelo. Devemos ter cuidado com aquilo que levamos quando partimos para sempre. A razão deve conhecer as razões do coração e todas as outras razões. Eu estou tão triste, tão triste que o meu corpo se tornou transparente, de tanto que eu chorei. Será possível alguém se dissolver em água sem deixar nenhum rastro? Nós descemos para o jardim do silêncio. A madrugada é o tempo em que nada respira, a hora do silêncio. Tudo está paralisado, apenas a luz se move. Mesmo assim, recepciono amável a sua hospedagem na minha solidão, a dizer uma e outra coisa jogada no tempo. O dia passa como uma verdadeira festa e ao anoitecer, ela se faz forasteira e dorme nua encolhida: braços cruzados e largados sobre o corpo nu. Ao despertar fulgurante modelo desnuda da minha arte, recito: Essa luz não se pode forjar. Precisa se aproveitar. Aqui fora tudo se move. Até a luz se move. Vê essas folhas? Há milhões delas e todas são singulares. Poderia viver cento e cinquenta vidas e mal teria tempo para vislumbrá-las. Por isso que você precisa de um conceito. Precisa encontrar um conceito. Se não encontrar, tudo será uma perda de tempo. Ao vê-la ali, renasce em mim a arte adormecida, reinaugurando a contemplação do espetáculo e ouso ao tato transitar hesitante tocando suas formas, curvas, contornos e volumes que concretizam a ideia de Rembrandt: A velhice é um obstáculo à criatividade, mas não pode esmagar o meu espírito jovem. Escolha apenas um mestre - a Natureza. Tente colocar em prática o que você já sabe e fazendo isso, você descobrirá, com o tempo, as coisas escondidas sobre as quais agora você se questiona. Pratique o que você sabe e isso ajudará a tornar claro o que agora você não sabe. Quanto mais perigoso, mais belo! O olhar na ideia de seu fugitivo corpo nu e minhas mãos passeiam errantes na força do afeto o percurso da sua pele. E ela invade meus dedos e me afogueia a epiderme, os ossos, músculos e vísceras, rouba de mim o que sou e nela me faço Deus na gênese de toda criação. É nela que brota de mim a Eva que desfruto no azeite e a engravido para me dá o seu filho Adão e semeio toda humanidade. Depois do amor, ela se vai como se me dissesse do escritor e cartunista estadunidense Theodor Seuss Geisel (1904-1991): Não chore porque acabou. Sorria porque aconteceu. Uma pessoa é sempre uma pessoa, não importa o quão pequena ela seja. Eu gosto de coisas que não fazem sentido: isso acorda as células do cérebro. Fantasia é um ingrediente necessário em nossas vidas, é um modo de olhar a vida pelo lado errado do telescópio. Isso é o que eu faço, e isso permite que você ria das realidades da vida. Experimente, experimente, e você pode! Experimente e você pode, eu digo. Avante por muitos riachos assustadores, embora seus braços fiquem doloridos e seus tênis possam vazar. Oh! Os lugares que você irá!  Você pode ter ajuda de professores, mas você vai precisar aprender muita coisa sozinho. Quanto mais você ler, mais você vai aprender. Quanto mais você aprender, mais lugares diferentes você vai visitar. Sim, realmente ela se foi para nunca mais. Em mim amanheceu e é maravilhoso viver. (Leitura livre inspirada no filme O artista e a modelo (2012), do cineasta Fernando Trueba, contando a história sobre a obsessão de um escultor diante da modelo num momento da crise de criação, destaque para atuação da lindatriz espanhola Aida Folch).

 


DOIS: Um ano a mais das treze luas - Imagem: a arte da atriz espanhola Aida Folch, ao som do Piccolo Divertimento op. 111 (1978), do compositor e pianista José Carlos Amaral Vieira, com o Quinteto Lorenzo Fernandez (2015). - No meio da manhã dou conta do meu pesadelo Fassbinder: Atiro em todas as direções. Posso dormir quando estiver morto. E ela passa como se fosse Hanna Schygulla n’O casamento de Maria Braun (Die Ehe Der Maria Braun, 1978). Passa e não mais a vejo, retornando como a selvagem adolescente Effi Briest (1974), no balanço do jardim de seu espírito aéreo dos amores das páginas literárias. Faz um gesto qualquer para mim e se ocupa em seus estudos como se fosse a Anna do The Merchant of Four Seasons (1972), e me olha como se Karin Thimm no Die bitteren Tränen der Petra von Kant (1972) e se levanta como se fosse Susanne Gast em The Third Generation (1972) e acena como se fosse a Joanna Reiher em Gods of the Plague (1970) e vai-se embora como se fosse a amiga da Sra. R. no Warum läuft Herr R. Amok? (1971). No meio da tarde ela retorna intrusa Barbara Sukowa, uma atriz polonesa que se mostra cantoramante Lola (1981), quando eu só conhecia Marie-Louise e jamais saberia quem era quem na minha paixão e eu absorto com seus encantos. Depois de me seduzir ardilosamente, desaparece para só ressurgir ao crepúsculo na pele de Margit Carstensen como se fosse a paranoica bibliotecária Martha (1974), que me mostra um volume com versos do poeta russo Ievgueni Baratýnski (1800-1844): O futuro da humanidade industrializada e mecanizada será brilhante e glorioso no futuro próximo, mas a felicidade e a paz universais serão compradas à custa da perda de todos os valores mais altos da poesia... E, inevitavelmente, após uma era de refinamento intelectual, a humanidade perde sua seiva vital e morre de impotência sexual. Então a terra será restaurada à sua majestade primordial. Ouvi tudo e ela não mais, a noite é longa e os versos me perseguem pela madrugada.

 


TRÊS: As cinco vidas dela – Ao som da Tristorosa, de Heitor Villa-Lobos, na interpretação da violonista bielorrussa Tatyana Ryzhkova. - Novamente a madrugada se vai e a manhã chega com o seu bailado além da nudez do corpo: sou pulsante em cada passo. Ela percebe meu alvoroço e se entrega como atriz de todos os textos e cenas: o gozo inevitável. E mergulha extasiada como se eu fosse o oceano de sua redenção. E depois de satisfeita, faz poses para flagrar meus gestos em suas fotos. E logo me leva por tramas épicas cinematográficas em que ela, personificando Leni Riefenstahl (1902-2003) me diz: Sou fascinada pelo que é belo, forte, saudável, o que é viver. Eu procuro harmonia. Há pessoas para quem sou uma lenda e que querem me ver e tocar para saber se de fato estou viva ou se sou um múmia. E sorri com uma frase de Georg Simmel: O homem é algo que deve ser superado. E me encara como se nada mais, a me dizer do escritor neerlandês Multatuli (1820-1887): Talvez nada seja totalmente verdade e talvez nem mesmo isto. Duas semi-verdades não fazem uma verdade. Todas as virtudes têm irmãs ilegítimas que desonram a família. O desgosto e a alegria dependem mais do que somos do que daquilo que nos acontece. Quem nunca caiu não tem bem a noção do esforço que é preciso para se manter de pé. Nós não ficamos a querer menos a quem conhece os nossos defeitos do que a nós próprios por sofremos deles. Muitas vezes é preciso mais coragem para enfrentar as futilidades do que para lutar contra abusos graves. Disse o que tinha a dizer, olhou-me apaixonante, beijou-me a face, afastou-se comedida e a vi sair se dissolvendo como miragem no ar. Até mais ver.

 

CINEMA PERNAMBUCANO



[...] O idealismo e a força de vontade muito concorreram para que a indústria cinematográfica em Pernambuco, atingisse os seus objetos, colhendo seguidas vitórias, como aconteceu noutras cidades brasileiras. Como é do conhecimento dos cineastas, a produção é a alma da indústria, sendo importante e necessário para mantê-la próspera e em atividade, de elevados recursos financeiros para a preparação e rodagem das películas, como a escolha do diretor, roteiro, realizador, operadores de som, decoradores, argumentistas, figurinistas, desenhistas, contrato de astros, estrelas e coadjuvantes. [...].

Trecho extraído da obra No mundo fantástico do cinema (Massangana/Fundaj, 2005), do advogado, memorialista, historiador, jornalista e compositor musical, Bertino Fernandes Silva, tratando sobre as origens da sétima arte, o nascimento de Hollywood, do cinema silencioso ao cinema falado, e o cinema em Pernambuco. Veja mais aqui e aqui.

 



YŌKO TAWADA, BRENÉ BROWN, ALEYDA QUEVEDO ROJAS & JESSICA MARTINS

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som da obra multimovimento Sarojini (2022), da compositora, etnomusicóloga e vocalista estadunidense Shruth...