ÚNICO AMOR – A vida
de Honfleur, para quem veio criança órfã de lá de Pont-l’Evêque, criado pelo
tio boêmio que inventava navios inúteis e carros bonitos para ninguém guiar.
Herdou dele a fantasia, afora a imaginação aos voos com as leituras de
Andersen. Aprendeu piano, sem quase saber do pai, de Olga ou Conrad, seus
irmãos. Adolescente em Paris ingressou no conservatório para ser humilhado
pelos professores: um metro e sessenta centímetros de mediocridade e preguiça, sujeito
imprestável sem o menor senso de ridículo. Procurava emprego se apresentando
como Gymnopedista. Enfim, conseguiu
emprego de pianista no Chat Noir, morando em um quarto pequeno de Montmarte.
Depois, no Auberge du Clou, conheceu Claude e, em seguida, Maurice. Para eles
expôs o que havia de insólito, ilógico, ambivalente, enigmático, irreverente,
mordaz místico, todo seu teatro do absurdo no minimalismo musical, repetitivo.
Surgia Gymnopédies ou Três Peças em Forma de Pera, uma obra com título
estranho derivado do antigo festival grego Gymnopaedia,
dedicado ao deus Apollo, no qual jovens nus dançavam ao som da música de flauta
e lira. Na sua loucura hermética fundou sua própria igreja, L'Eglise Métropolitaine d'Art de Jésus
Conducteur: era o único membro e excomungava quem discordasse. Compôs as Trois Gnossiennes, um conjunto de composições para piano. De repente, alguém
chegou à sua vida como a tempestade. Era a vizinha, uma paixão. Ao primeiro
contato com ela, pediu-lhe a mão em casamento. Nem sabia quem era. E ela, uma bela
filha duma lavadeira de pai desconhecido, acrobata desde menina com sequelas da
queda. A enfeitiçante boniteza dela estava exposta como garçonete em cafés e
modelo para pintores como Renoir, Tolouse-Lautrec, Degas, Puvis de Chavannes.
Era a Biqui dele, a musartista, que reluzia como a rainha da boêmia no Société Nationale des Benaux-Arts. Era caprichosa,
extravagante, carregava cenouras e cuidava de gatos e de uma cabra num
escritório. Era levada pela estética de Pont-Aven e a má reputação dos bares. Ele
a amava, o amor e a descoberta: ela pintava e fez o retrato do amado. Idílio
infinito, avassalador. Durou seis meses apenas, o coração partido, a solidão e
mais de trezentas cartas de amor, o único amor dele, Biqui, ah Biqui. Ela
casou-se com outro. Ele então se mudou com sua irreverência e excentricidade para
o subúrbio, caminhando longamente, nove quilômetros todos os dias para tocar em
Montmartre. Escrevia e caricaturava a si e aos outros. Rascunhava e da sua
caligrafia autobiográfica surgiu Mémoires
d'um Amnésique, Escritos em forma de
Grafonola e Cahiers d'un Mammifére,
um livro com poemas, canções e relatos que revelam sua irônica verve. Ficou famoso
por suas estranhezas: possuía doze ternos de cinza de veludo idênticos e
colecionava guarda-chuvas e cachecóis: Embora
sejam falsas as nossas informações, nada podemos garantir. Era maníaco por
comida branca, sempre um prato com ovos, arroz, coco, nabo, peixe, queijo. Detestava
o sol, na solidão e maturidade. Foi, então, que ingressou na Paris Schola
Cantorum e estudou contraponto e orquestração. As suas partituras continham anotações
com instruções na interpretação, todo mundo espantado. Inventou a música
ambiente, usada como mobília, neutralizando os ruídos da rua com seus naturais
e estranhos silêncios e barulhos: a sua musique
d'ameublement. O público atento à performance e ele nervoso: Falem alguma coisa! Mexam-se! Não fiquem aí
parados só escutando! Não era piada e ninguém entendeu. Ele aboliu as
estruturas sofisticadas e complexas, despojando-se em forma simples, o seu
minimalismo: Vexations, trinta e dois
compassos repetidos oitocentas e quarenta vezes. Escreveu a comédia lírica em
um ato A armadilha de Medusa, precursora
do teatro dadaísta e do teatro do absurdo, bem como portadora da verdadeira
música do surrealismo, platitudes e lugares-comuns. E compôs a ópera Geneviève de Brabant. Na
amizade se avalia da de Pablo, grandes amigos, corroborou na revolução cubista.
E Jean. O trio trabalhou no ballet Parade,
pro Ballet Russo de Diaghilev. Ao compor a música inovadora, incorporou sirene,
tiros de pistolas e uma máquina de escrever. Um escândalo por explorar o mundo
dos sonhos e do subconsciente, não menos pelo cenário e vestuário de Pablo, como
pelo argumento escrito por Jean: o surrealismo para Appolinaire. Com o drama
sinfônico para quatro sopranos e pequena orquestra, Socrate, textos platônicos e extrema austeridade: a mudança de
estilo que ganhou desprezo. Para críticos e compositores, sua obra não passava
de miniaturas musicais com harmonias estranhas, escalas pouco convencionais e
ausência de virtuosismo instrumental, justamente por possuir recursos técnicos
insatisfatórios e sua deficiente formação de compositor e pianista. Era
escárnio. Mas ele sabia das suas debilidades. O Gymnopédiste estava enclausurado
por quase quinze anos sem compor, regressou à vida noturna parisiense com sua Música
de Mobiliário. E vieram Sonatina Burocrática, Vestido de Cavalo, A Bela
Excêntrica, Esboço e Provocações de um Gordo Bonachão de Madeira. Vagava incansável: inundado por uma solidão glacial que enche a
cabeça de vazio e o coração de tristeza. Ah, Biqui, a vida entre os
guarda-chuvas, lenços, colarinhos, tiras de papel, desenhos, partituras, dois
pianos desafinados e amarrados por cordas, a pobreza, a cirrose e nada mais, até
se render à morte, enquanto ela navegava pelo céu de Montmartre com outros amores.
Dele apenas anotações em pedaços de papel: O
meu nome é Erik Satie, tal como todas as outras pessoas. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Servia coristas e estudantes, matronas
jovens e alegres, jovens amantes ainda mais alegres, uma senhora que se
divorciara de quatro maridos, outra que havia apunhalado alguém, a noiva mais
ou menos secreta de um nome dos mais distintos e o cérebro de um bando de
contrabandistas de álcool. Via coisas... Viu uma face amarela, onde a tinta
secara. Viu quatro equimoses minúsculas, tais como poderia ter sido deixadas
por dedos sobre um braço. Viu uma rapariga bater em outra, sem ser por
brincadeira. Viu um maço de cartas que um homem preferira não ter escrito,
guardado, escondido, no fundo de uma bolsa de brocado [...].
Trecho
do conto Night Club (Ediouro, 2004),
da escritora estadunidense Katharine
Brush (1902-1952).
A ARTE DE SUZANNE VALADON
Não se pode fazer nada muito bem a não ser com muito amor.
A arte
da pintora francesa pós-impressionista Suzanne Valadon (1865-1938), único amor
do compositor e pianista francês Erik
Satie (1866-1925). Sobre o romance de ambos, o cineasta canadense Tim Southam dirigiu Satie & Suzanne (1994), contando as
memórias agridoces do compositor com a sua amada, num café parisiense, enquanto
as águas do rio Sena transbordavam.
A
pintora foi uma personalidade marcante na cena artística parisiense antes do
cubismo, tendo sido acrobata, garçonete e modelo dos pintores Renoir, Degas e
Toulouse-Lautrec.
Foi a
primeira mulher admitida na Société Nationale des Beaux-Arts. Sobre sua vida foi publicada a obra Suzanne Valadon
(Martins Fontes, 1989), de Jeanne Champion e, também, Suzanne: of love and art (1959), de John Storm com ilustração da
própria artista. Veja mais aqui e aqui.
A MÚSICA DE ERIK SATIE
A música
do compositor e pianista francês Erik Satie (1866-1925) está no cenário
da vanguarda parisiense do início do século XX, sendo ele o precursor dos
movimentos minimalista, do teatro do absurdo, da música repetitiva e do
ragtime, este último um estilo pré-jazz. Ele exerceu influência até tornar-se cult entre os contemporâneos Debussy e
Ravel, mudando o curso da história da música. É autor de obras como Gymnopédies
ou Três Peças em Forma de Pera (1888), Gnossiennes (1890), Sonatina Burocrática, Vestido de Cavalo, A
Bela Excêntrica, Esboço, Provocações de um Gordo Bonachão de Madeira, Canções, Socrate,
Jack in the Box e
da ópera Geneviève de Brabant,
entre outras. É também autor da comédia lírica em um ato A armadilha de Medusa, de 1913, precursora
do teatro dadaísta e do teatro do absurdo, bem como portadora da verdadeira
música do surrealismo, carregadas de platitudes e lugares-comuns. Veja mais
aqui.
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