PIANO MUDO - Davilanice nascia para realização dos sonhos de sua mãe. Quatro
anos de espera, de menstruações atrasadas, alarmes falsos, festejos e
decepções, tapas e beijos. Agora não mais, dona Suedalina logo disse: É a minha
vez, traste! Fim das frustrações, não mais adiamentos para quem queria ser
pianista, bailarina, malabarista. Era ela e mais nenhuma desculpa, nem apertos,
nem misérias. O casal médico superava estranhices, quase separações,
incompatibilidade de gênios. Se ele quisesse, agora podia se danar pelo oco do
mundo, ela se resolveria com sua filha, educação esmerada, dedicação integral,
pelo menos. Ela seria a melhor entre todas as garotas, todas as balizas de
bandas, todas as rainhas do milho, todas as debutantes na valsa. O pai ausente
e diuturnamente embriagado, ainda emplacou mais dois filhos nela, antes de
envultar de vez no meio da bebedeira. A menina crescia solitária e aos
caprichos maternos. Queria empinar pipas, despetalar rosas, caçar borboletas,
pular muro, soltar traques, avoar passarinhos e a mãe: Ao piano! No seu
isolamento punitivo, dedilhava risadinhas sensuais na clave de sol pela
urgência de tudo, tenebrosas emanações na clave de fá, e ouvia seus silêncios,
os pés doíam na caminhada inclemente, dedos decepados pela angustia, mãos
odiadas pelos suspiros de bemóis ao relento, pulso negado por arrebatados
sustenidos e a charada da existência, brincadeiras dolorosas entre fusas,
colcheias, mínimas, semibreves. Os descuidos temporários da genitora e ela
podia tagarela por escalas diatônicas, folgazã por cromáticas, rabiscos no
pentagrama: O que é isso? Melecas. Logo a sisudez pelo Concerto em lá menor de
Grieg, ou peças dos preferidos Chopin, Rachmaninoff e a tocadora eremita, reprimida criação
aos beliscões, puxavanques nos cabelos, aos murros e as dores, mão fechada aos
seios, cotovelada no olho: Isso é porcaria, não se meta besta! Só clássicos,
ouviu? Aprendeu? Virtuose coagida, implacável, inexoravelmente. Sonhava entre
pesadelos atonais, visagens dodecafônicas e o espelho refletia sua tristeza:
tão bela e sem vida. Adolescia sem esperança. Um festival na distante Brasilia,
dezenove anos sem festas, sequer convívio com os irmãos quase desconhecidos.
Sua clausura, dez partituras de famosos e mais uma escondida entre elas, com
seus lamentos e sofreguidões. Justo por esta inédita, foi incluída na
programação. Os pais não poderiam acompanha-la dessa vez, compromissos
inadiáveis. Nem sabiam de sua astúcia. Malas e recomendações repetidas:
Entendeu direito? Sim, sim. Lá, a música autoral escondida, aplausos e
festejos. A sua apoteose: a libertação desacordada na mesa de bilhar de uma
cidade satélite qualquer. O estupro e a maldição. Como pode tudo isso acontecer,
não sabia, não entendia mais nada, nunca compreendeu nada. O retorno e a
maldição, tratamento interminável. Um surto na descida da escadaria, o
escorregão no meio do nada e pelo corrimão, o corpo estendido, os olhos abertos
no primeiro degrau e a vida nunca mais. © Luiz Alberto Machado. Direitos
reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] responde olhando para trás no momento em que
outro carro quase nos atinge. Cuidado! Grito, e ele ri com seus dentes
reluzentes. Está tudo bem, não se preocupe, aqui é assim. Fugazes passam os
olhos das crianças amazônicas que pedem um sol. Apenas um sol para deixarem
manusear sua carne morna à pedofilia turista. Apenas um sol para deixarem manusear
suas pequenas coxas raquíticas raquíticas enquanto oferecem lembrancinhas com
as pupilas úmidas. [...] Quando saio
do hotel, está me esperando, pisa no acelerador e saímos na selva da noite pela
ribeira da avenida por onde desfilam as meninas de minissaia e saltos altos
para seus franzinos corpinhos morenos. Por um sol entregam a estrela negra e
reluzente que guardam entre as pernas. Por um sol, os gringos gordurentos as
lambuzam com sua baba sob as luzes da praça [...].
Morrer de amor no Amazonas,
extraído da obra Háblame de amores
(Planeta, 2012), do ensaísta, cronista e romancista chileno Pedro Lemebel (1952-2915).
A ARTE
DE KARINA FREITAS
A arte da artista visual, designer e ilustradora Karina Freitas, que também atua como
diagramadora e criadora dos delírios gráficos que são colagens como uma
linguagem que permitem sua comunicação visual de forma instintiva. Veja mais
aqui.
A MÚSICA DE CYRO PEREIRA
Estou muito feliz com a
minha profissão: ela me deu tudo o que eu queria. O que eu gosto mesmo é de
reger e compor. Só vivi de música, e a música me ensinou tudo na vida.
A música do premiadíssimo maestro, compositor, arranjador e
pianista Cyro Pereira (1929-2011), que
foi professor na Unicamp e maestro da Orquestra Jazz Sinfônica. Seu trabalho
mereceu registro com a publicação da biografia Cyro Pereira Maestro (DBA Dorea,
2005), escrito por Irineu Franco Perpétuo e a gravação do cd Cyro Pereira – 50 anos
de música (Pau Brasil, 1997), pela Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo,
dirigida por Mário Valério Zaccaro, reunindo seis obras autorais Poema para
Jobim, O Fino do Choro, Solito, Cuidado com o degrau, Rapsódia Latina, Fantasia
para piano e orquestra sobre temas de Ernesto Nazareth, entre outras, com a
releitura de Carinhoso, de Pixinguinha. Veja mais aqui.
&
A obra do poeta alemão Novalis (Georg Philipp
Friedrich von Hardenberg – 1772-1801) aqui, aqui & aqui.