AS PEGADAS DA
CURUPIRA – Passeava nas proximidades da mata e ouvi silvos agudos. Lembrei dos
tempos de menino: saiam de bocas e ouvidos por ali haver a entidade das matas, um
dos demônios dos Brasis que eriçam a pele e arrepiam os cabelos. Ninguém nunca
viu, mas contam amedrontados. Segui o apito cada vez mais perto e, realmente, muitas
pegadas na trilha. Sabia dos sinais falsos como se algo me perseguisse,
movimentando as touceiras ao redor, estalidos, pisadas ignotas, algo estranho
acontecia e já esperava dar de cara com um menino montado num Caititu, com seu
cabelo de fogo e corpo coberto de pústulas, sarnas e verrugas, com os pés para
trás, ou mesmo o terrível Pai da Mata como tratavam os daqui, sei lá, coisa que
o valha. Sei, pelo que diziam, que era só para assustar ou levar à loucura. Eu,
realmente notei que havia perdido a noção de rumo. Divisei oferendas de pinga e
fumo deixadas pelos crédulos, coisa mais inusitada: nunca tinha visto aquilo. E
mais adentrei curioso porque, já que errava torto na vida, nada demais tirar a
prova dos nove. E ouvi algo ameaçador: Pronde cê vai, menino, parece um rio sem
leito! Era uma voz que pressupus ser de uma caquética desdentada. Girei o corpo
buscando vê-la, o lugar mais limpo: só matagal, vento brando, zumbidos de
insetos e os característicos sons da mata. Segui adiante e, de repetente,
apareceu-me uma bela e sensual mulher. Sou Kuru’pir, o demônio da floresta. Esbugalhei
os olhos, não era nada daquilo que ouvia desde menino. Fitou-me compenetrada e
seus olhos e cabelos ruivos acenderam realmente. Era fogo. E sua voz rondava
meus ouvidos: sinta o chão e as pegadas dos tantos que antes de você trilharam
essas errâncias. Todos estão aí esperando seus passos para seguirem e guiarem você
para o seu melhor caminho. São muitas direções e é pra isso mesmo a vida:
seguir todos os caminhos, voltar, refazer, reencontrar, se perder, e até mesmo
parar para começar a rodopiar como se fosse um brincado, sabe, que cada um tem
que dançar. Vai, dança, seu menino! A vida é isso: pra dançar mesmo e se
envolver com os que se foram para saber como será com os que virão. Dance e
sinta no chão que pisa o vento que traz a brisa e sopra todas as coisas e tudo
que respira. E mais traz olores, desde da lonjura pra chegar aqui perto e levar
pros redemoinhos daqui, dali e dacolá, porque tudo dança no universo e faz o
chão girar e a gente rodando com tudo. No vento as vozes dos que falaram, dos
que colocam para nos ouvir e ouvir a todos contarem suas próprias hestórias,
cada um a sua vez, os que ficaram, os que passaram, agora é com você, cada tem
sua vez. O vento nos leva a todos os cantos para nos ensinar o Grande Espírito
que está dentro de cada um de nós que somos todos juntos Ele em comunhão, com os
que vieram e que vão, e os que ainda pisarão onde todos já pisaram e você está
pisando. E nos leva para as águas e todos os alagados até a imensidão do mar
que também somos e vamos pela vida que se vive com os que voam, com os que se
arrastam, com os paralisados e os que brotam da terra e dão folhas e frutos, e
nos servem de sombreiro e de alimento para saciar a fome e matar a sede pelo de
cima, de baixo, dos lados ou pra lá no crepúsculo quando entardece e a boquinha
traz a escuridão. Tenha medo não, seu menino, o escuro também faz parte, mesmo
que a gente não veja nada, está tudo escondido, dormindo e sonhando para
acender o fogo do novo dia que virá ao amanhecer, como o Sol que ilumina e
queima dentro da gente para a vida de tudo e todas as coisas. E nos ensina a treva
onde tudo se esconde para renascer, porque será sempre reviver e sonhar deste
muito antes deste chão existir e o tempo era qualquer coisa como o barulho das águas
que nos purifica, o canto dos pássaros, o ronco dos bichos, as folhas que caem e
os rios que nos levam sempre para algum lugar. Era tudo muito mágico e me legou
ao ponto de partida, depois de trilhar ásperas brenhas e chegar ao cume da mais
alta montanha, para lançar os seus açoites a tudo no universo. Foi ali que ela
me disse: sou a guardiã das matas! E desde esse dia meu coração foi envolvido
por sua magia e com ela fui morar. Veja mais aqui, aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS - Em um sonho você viu uma maneira de sobreviver e ficou
cheio de alegria. É do seu interesse encontrar uma maneira de ser muito terno. Torne-se
suave e adorável sempre que tiver oportunidade. Destrua a superabundância. Deixe a carne passar fome, raspe o
cabelo, clareie a mente, defina a vontade, restrinja os sentidos, deixe a
família, fuja da igreja, mate os vermes, vomite o coração, esqueça os mortos. Limite o tempo, renuncie à diversão,
negue a natureza, rejeite conhecidos, descarte objetos, esqueça verdades,
disseque mitos, pare o movimento, bloqueie o impulso, sufoque soluços, engula
tagarelice. Despreze a alegria, despreze o toque, despreze a tragédia, despreze a
liberdade, despreze a constância, despreze a esperança, despreze a exaltação,
despreze a reprodução, despreze a variedade, despreze o embelezamento, despreze
a liberação, despreze o descanso, despreze a doçura, despreze a luz. É uma questão de forma tanto quanto de
função. É uma questão de repulsa. Você é vítima das regras pelas quais vive... Pensamento da artista neo-conceitual estadunidense Jenny
Holzer, que no livro Jenny Holzer: Truisms And Essays (Barbara Gladstone Gallery, 1995), expressou: [...] Se você se comportasse bem, os comunistas não existiriam. [...]. Veja mais aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: No meu começo está o meu fim.
Sucessivamente casas sobem e desmoronam, desmoronam, são ampliadas, são
removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar. Está um campo aberto, ou
uma fábrica, ou um desvio. Pedra velha
para construção nova, madeira velha para fogos novos, fogos velhos para cinzas
e cinzas para a terra que já é carne, pêlo e fezes. Osso de homem e animal,
talo de milho e folha. As casas vivem e morrem: há tempo de construir e tempo
de viver e de gerar. E tempo de o vento quebrar a vidraça solta. E de sacudir o
lambril onde trota o rato do campo e de sacudir as cortinas esfarrapadas
tecidas com lema silencioso.
Expressão da artista alemã-georgiana Thea Djordjadze, autora de obra como MA SA I A LY E A SE – DE (2015), Thea Djordjadze (2014), November
(2013), our full (2012), Lost Promise in a Room (2011), Thea
Djordjadze – His vanity requires no response (2011), Thea Djordjadze.
endless enclosure (2009), Explain away - ე.ი (2009), Un soir, j'ai assis la beauté sur mes
genoux. And I found her bitter and i hurt her (2008), Possibility,
Nansen (2007), History of an Encounter (2007), Fröhliche
Wissenschaft (2003), The Sight of the Conductor (2001), entre
outras.
O CAOS – [...] A
palavra “caos” é das mais pronunciadas na atualidade. Tema cult de congressos,
livros de divulgação científica, artigos de jornal e até programas de TV, fala-se
de caos em todos os campos da cultura. Com certeza, não se trata de um mero
modismo, mas de uma exigência que a realidade contemporânea vem nos colocando:
enfrentar o caos, repensá-lo, reposicionar-se diante dele - mesmo que muitas
vezes a insistente evocação dessa palavra vise, pelo contrário, evitar tal enfrentamento
e conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanças se estariam
operando nas subjetividades, hoje, para levá-las a revisar seu conceito de caos
e de ordem, assim como da relação entre ambos? Primeiro, duas palavras acerca
da noção de subjetividade. Todo ambiente sóciocultural é feito de um conjunto
dinâmico de universos. Tais universos afetam as subjetividades, traduzindo-se
como sensações que mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus de
intensidade. Relações se estabelecem entre as várias sensações que vibram na
subjetividade a cada momento, formando constelações de forças cambiantes. O
contorno de uma subjetividade delineia-se a partir de uma composição singular
de forças, um certo mapa de sensações. A cada novo universo que se incorpora,
novas sensações entram em cena e um novo mapa de relações se estabelece, sem
que mude necessariamente a figura através da qual a subjetividade se reconhece.
Contudo, à medida em que mudanças deste tipo acumulam-se, pode tornar-se
excessiva a tensão entre as duas faces da subjetividade - a sensível e a formal.
Neste caso, a figura em vigor perde sentido, desestabiliza-se: um limiar de suportabilidade
é ultrapassado. A subjetividade tende então a ser tomada por uma inquietude que
a impele a tornar-se outra, de modo a dar consistência existencial para sua
nova realidade sensível. [...] o caos, hoje, circula de boca em boca, e
que essa insistência em evocá-lo responderia a uma solicitação que a realidade
atual vem nos colocando. De fato, o caos nunca esteve tão presente. Mas se,
neste final de milênio, estamos confrontadas ao caráter precário e incerto da
subjetividade, estamos certamente também - e mais do que nunca - diante de seu
caráter criador. [...]. Trechos do estudo Novas figuras do caos mutações
da subjetividade contemporânea (Face e Fapesp, 1999), da filósofa, escritora,
psicanalista e professora Suely
Rolnik.
PODER, CULTURA
& APARÊNCIAS - [...] Não tenho queixas,
exceto do mundo. [...] Seu
conforto é meu silêncio. [...] Garota \ Não seja burra \ Não seja tímida
\ Não se sinta intimidada \ Não pense que isso não pode acontecer com você \
Faça sexo seguro porque a AIDS mata \ Não morra por amor [...]. Trechos
extraídos da obra Remote Control: Power, Cultures, and the World of
Appearances (Mit
Pr, 1994), da artista
conceitual estadunidense Barbara Kruger, autora de frases como: Se eu trago à tona poder político, poder pessoal, parece que são meus
termos, e não são. Ver não é mais acreditar. A própria noção de verdade foi colocada
em crise. Em um mundo
inchado de imagens, estamos finalmente aprendendo que as fotografias realmente
mentem. Veja mais aqui e aqui.
DO POVO BUSCAMOS A FORÇA - Não basta que seja pura e justa\ a nossa
causa\ É necessário que a pureza e a justiça\ existam dentro de nós.\ Dos que
vieram\ e conosco se aliaram\ muitos traziam sobras no olhar\ intenções
estranhas.\ Para alguns deles a razão da luta\ era só ódio: um ódio antigo\ centrado
e surdo\ como uma lança.\ Para alguns outros era uma bolsa\ bolsa vazia
(queriam enchê-la)\ queriam enchê-la com coisas sujas\ inconfessáveis.\ Outros
viemos.\ Lutar pra nós é ver aquilo\ que o Povo quer\realizado.\ É ter a terra
onde nascemos.\ É sermos livres pra trabalhar.\ É ter pra nós o que criamos\ Lutar
pra nós é um destino -\ é uma ponte entre a descrença\ e a certeza do mundo
novo.\ Na mesma barca nos encontramos.\ Todos concordam - vamos lutar.\ Lutar
pra quê?\ Pra dar vazão ao ódio antigo?\ ou pra ganharmos a liberdade\ e ter
pra nós o que criamos?\ Na mesma barca nos encontramos\ Quem há-de ser o
timoneiro?\ Ah as tramas que eles teceram!\ Ah as lutas que aí travamos!\ Mantivemo-nos
firmes: no povo\ buscáramos a força\ e a razão\ Inexoravelmente\ como uma onda
que ninguém trava\ vencemos.\ O Povo tomou a direção da barca.\ Mas a lição lá
está, foi aprendida:\ Não basta que seja pura e justa\ a nossa causa\ É
necessário que a pureza e a justiça\ existam dentro de nós. Poema extraído do livro Poemas de
Angola (Codecri, 1979), do médico e escritor angolano Agostinho Neto (1922-1979). Veja mais aqui e aqui.
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