O VELÓRIO DO
ARRUADO - Salustério o que tinha de firme, tinha de certo e certeiro. Dito
dele ninguém apagava: tudo no tanto, nos conformes. Tinha duas paixões: jogar e
fazer filhos. Jogava de tudo e se gabava de nunca usar da trapaça. Isso era.
Fosse de taco, palitos, cartas, pedras, até pulhas: ninguém tinha fôlego para
superá-lo, sua peta a mais cabeluda. Até do estrangeiro aparecia desaforados. E
todos desbancados por sua perícia na volta da empáfia. Tudo com ele era no
apostado. E foi assim que amealhou na vida uma bodega sortida de construir um
arruado só dele, de casinhas uniformes, só pra ele e os seus. Tudo que ganhou e
possuía foi oriundo do jogo. Já os filhos, quatro com a primeira, cinco com a
segunda, dois com a terceira, três com a quarta e quatro com a quinta. Tudo
criado no tanto e no justo: criação, comida, estudo, pé de meia e casa pro
casório. Quando os três últimos caçulas nasceram, os quatro mais velhos já
estavam casados e logo criados no amontoado duns e doutros. Tudo de seu, na
volta da munheca, no bafo do fiapo de bigode. As esposas foram trocadas quando
não mais lhe serviam, nem davam mais no caldo ou demoradas de emprenhar. Todas
substituídas por mais novas, evidentemente. Apesar de bastante austero nunca
foi sovina: vendia no preço e peso certo, nada de fiados. Tinha uma freguesia
certa que ele fazia exceção em valsas semanais, quinzenais ou mensais. Quando
dava por falta de um desses prediletos, logo visitava o sumido e, se tivesse em
situação de dificuldade, dispunha de feira e necessários até que o enfermo
saísse do aperto. Mas se tivesse se escondendo, era catabi no pau da venta
cobrando vergonha na cara. Apesar de estibado aos equilíbrios, guardava um
desgosto: os filhos cresciam e passavam a não se dar. O mais velho casou-se e,
por artes do destino, intrigou-se do irmão encostado e, assim, se sucedeu a um
por um dos seus descendentes com as devidas esponsais. Até o dia que chamou
todos na grande pelo aperreio, teve um troço e bateu as botas. Só a viúva
resistiu embuchada do décimo nono de sua prole, devota fiel à toda prova, como
todas as outras abandonadas que, mesmo depois de descartadas, jamais convolaram
novas núpcias. Na hora do velório foram chegando vizinhos e achegados, filhos e
simpatizados. A viúva sozinha amargava no canto. As outras viúvas deram as
caras, cada qual paparicada pelos de seu no maior pé de briga, não respeitaram
nem o falecido. Pra piorar uma chuva torrencial despencava para contê-los todo
na sala. Ia se apaziguando como podia até o estouro da boiada de um instante
pro outro e a coisa se descabelou: bastou um dos filhos debulhar queixume que o
escarcéu tomou conta, com deixa disso e puxa-encolhe. A chuvarada mais
engrossou o pandemônio e nem notaram as águas do rio subindo, invadindo a
ruela, daí a pouco sala adentro e cada um procurava o lugar mais alto, sem dar
mão a torcer na arenga. Calúnias e impropérios soavam enquanto tudo ia sendo
alagado. No calor dos desaforos foi que deram fé que a enchente levara o caixão
e todos timbungaram para salvar o defunto que descia correnteza afora e nunca
mais deram sinal de vida. Pronto, parecia um santo remédio pra discórdia. ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui, aqui e aqui.
DITOS &
DESDITOS - Que céu pode ser mais real do que reter o mundo espiritual da
infância? Graças a Deus nunca fui mandado para a escola; teria apagado um pouco
da originalidade. Com
oportunidades o mundo é muito interessante. Graças a Deus
tenho o olho que vê, ou seja, enquanto estou deitado na cama posso andar passo
a passo pelas colinas e terrenos acidentados vendo cada pedra e flor e pedaço
de pântano e algodão passar onde minhas velhas pernas nunca chegarão eu de
novo. Não posso descansar, tenho que empatar, por pior que seja o resultado, e
quando passo por um mau momento, o desejo é mais forte do que nunca. Quanto
mais curto e claro, melhor. Eu odeio terminar livros. Eu gostaria de continuar
com eles por anos. Pensamento escritora e ilustradora Beatrix
Potter (1866-1943). Veja mais aqui, aqui e aqui.
ALGUÉM FALOU: Como a
vida seria curta se certos momentos desagradáveis não a fizessem
parecer interminável! Superficialmente, não há distinção entre as
nossas experiências – algumas são vívidas, outras opacas; alguns são
agradáveis, outros causam agonia ao relembrar – mas não há como saber quais são
sonhos e quais são realidade. Ele te ama como se
você me pertencesse, sem registrar que ninguém é de ninguém, que possuir algo,
qualquer coisa, é um sofrimento vão. Pensamento da escritora
argentina Silvina Ocampo (1903-1994). Veja mais aqui e aqui.
DE AUSÊNCIA
& OUTRAS COISAS - [...] É a ausência
de fatos que assusta as pessoas: a brecha que você abre, na qual elas despejam
seus medos, fantasias, desejos. [...] Algumas
dessas coisas são verdadeiras e algumas delas mentiras. Mas são todas boas histórias [...] É muito bom planejar o que você fará em seis meses, o que fará em
um ano, mas não adianta nada se você não tiver um plano para amanhã [...] Fortaleza...
Significa firmeza de propósito. Significa resistência. É ter força para conviver com o que te constrange [...]. Trechos
extraídos da obra Wolf Hall (Picador, 2010), da escritora e crítica literária britânica Hilary
Mantel (1952-2022).
TRÊS POEMAS - [MEU
TRABALHO É CONSTRUIR] - Meu trabalho é construir, ligar os motores, \ partir e
não voltar atrás.\ A miséria despediu-se de mim\ agitando o lenço ao vento\ e
compreendi então que o meu destino era triunfar.\ Foi segurar esperanças
amarradas ao cinto,\ remar em busca da sua margem,\ semear o poema e deixá-lo
brotar. [À TARDE ANDÁVAMOS NOS TELHADOS] - À tarde ficávamos nos
telhados para ouvir o cóclea de galinhas atacadas pelo puma, ou as queixas de
uma ovelha perdida. Superado pela selvageria desta terra que se perpetuou além do que Nossos
esforços nunca seriam suficientes. saboreando o show da lua redonda e doce, aquela panqueca como o seio de uma
mãe, como um gole de cerveja, como a perna de uma boa mulher, cantamos bêbados
e exausto, discutindo as notícias que vieram de a pátria. [AS TERRAS DE
LLAFENKO] As terras de Llafenko nunca foram um Éden como eram ele nos contou. As pegadas estavam cobertas de espinhos; chuvas e os ventos eram devastadores,
caprichosos e a charneca Ele fechou suas entranhas para semear. Frutas silvestres e ovelhas pastando nos
prados recusaram-se a deixar seus cativeiro; A floresta não se deixou derrubar e os
rios Eles abriram caminho com mais fúria. As terras Llafenko foram um labirinto de segredos, um enxame de perguntas
sem respostas. Poemas da premiada
escritora chilena Gloria
Dünkler.
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