segunda-feira, janeiro 26, 2015

SUELY ROLNIK, BARBARA KRUGER, JENNY HOLZER, THEA DJORDJADZE, AGOSTINHO NETO & CURUPIRA

 


AS PEGADAS DA CURUPIRA – Passeava nas proximidades da mata e ouvi silvos agudos. Lembrei dos tempos de menino: saiam de bocas e ouvidos por ali haver a entidade das matas, um dos demônios dos Brasis que eriçam a pele e arrepiam os cabelos. Ninguém nunca viu, mas contam amedrontados. Segui o apito cada vez mais perto e, realmente, muitas pegadas na trilha. Sabia dos sinais falsos como se algo me perseguisse, movimentando as touceiras ao redor, estalidos, pisadas ignotas, algo estranho acontecia e já esperava dar de cara com um menino montado num Caititu, com seu cabelo de fogo e corpo coberto de pústulas, sarnas e verrugas, com os pés para trás, ou mesmo o terrível Pai da Mata como tratavam os daqui, sei lá, coisa que o valha. Sei, pelo que diziam, que era só para assustar ou levar à loucura. Eu, realmente notei que havia perdido a noção de rumo. Divisei oferendas de pinga e fumo deixadas pelos crédulos, coisa mais inusitada: nunca tinha visto aquilo. E mais adentrei curioso porque, já que errava torto na vida, nada demais tirar a prova dos nove. E ouvi algo ameaçador: Pronde cê vai, menino, parece um rio sem leito! Era uma voz que pressupus ser de uma caquética desdentada. Girei o corpo buscando vê-la, o lugar mais limpo: só matagal, vento brando, zumbidos de insetos e os característicos sons da mata. Segui adiante e, de repetente, apareceu-me uma bela e sensual mulher. Sou Kuru’pir, o demônio da floresta. Esbugalhei os olhos, não era nada daquilo que ouvia desde menino. Fitou-me compenetrada e seus olhos e cabelos ruivos acenderam realmente. Era fogo. E sua voz rondava meus ouvidos: sinta o chão e as pegadas dos tantos que antes de você trilharam essas errâncias. Todos estão aí esperando seus passos para seguirem e guiarem você para o seu melhor caminho. São muitas direções e é pra isso mesmo a vida: seguir todos os caminhos, voltar, refazer, reencontrar, se perder, e até mesmo parar para começar a rodopiar como se fosse um brincado, sabe, que cada um tem que dançar. Vai, dança, seu menino! A vida é isso: pra dançar mesmo e se envolver com os que se foram para saber como será com os que virão. Dance e sinta no chão que pisa o vento que traz a brisa e sopra todas as coisas e tudo que respira. E mais traz olores, desde da lonjura pra chegar aqui perto e levar pros redemoinhos daqui, dali e dacolá, porque tudo dança no universo e faz o chão girar e a gente rodando com tudo. No vento as vozes dos que falaram, dos que colocam para nos ouvir e ouvir a todos contarem suas próprias hestórias, cada um a sua vez, os que ficaram, os que passaram, agora é com você, cada tem sua vez. O vento nos leva a todos os cantos para nos ensinar o Grande Espírito que está dentro de cada um de nós que somos todos juntos Ele em comunhão, com os que vieram e que vão, e os que ainda pisarão onde todos já pisaram e você está pisando. E nos leva para as águas e todos os alagados até a imensidão do mar que também somos e vamos pela vida que se vive com os que voam, com os que se arrastam, com os paralisados e os que brotam da terra e dão folhas e frutos, e nos servem de sombreiro e de alimento para saciar a fome e matar a sede pelo de cima, de baixo, dos lados ou pra lá no crepúsculo quando entardece e a boquinha traz a escuridão. Tenha medo não, seu menino, o escuro também faz parte, mesmo que a gente não veja nada, está tudo escondido, dormindo e sonhando para acender o fogo do novo dia que virá ao amanhecer, como o Sol que ilumina e queima dentro da gente para a vida de tudo e todas as coisas. E nos ensina a treva onde tudo se esconde para renascer, porque será sempre reviver e sonhar deste muito antes deste chão existir e o tempo era qualquer coisa como o barulho das águas que nos purifica, o canto dos pássaros, o ronco dos bichos, as folhas que caem e os rios que nos levam sempre para algum lugar. Era tudo muito mágico e me legou ao ponto de partida, depois de trilhar ásperas brenhas e chegar ao cume da mais alta montanha, para lançar os seus açoites a tudo no universo. Foi ali que ela me disse: sou a guardiã das matas! E desde esse dia meu coração foi envolvido por sua magia e com ela fui morar. Veja mais aqui, aqui e aqui.

 


DITOS & DESDITOS - Em um sonho você viu uma maneira de sobreviver e ficou cheio de alegria. É do seu interesse encontrar uma maneira de ser muito terno. Torne-se suave e adorável sempre que tiver oportunidade. Destrua a superabundância. Deixe a carne passar fome, raspe o cabelo, clareie a mente, defina a vontade, restrinja os sentidos, deixe a família, fuja da igreja, mate os vermes, vomite o coração, esqueça os mortos. Limite o tempo, renuncie à diversão, negue a natureza, rejeite conhecidos, descarte objetos, esqueça verdades, disseque mitos, pare o movimento, bloqueie o impulso, sufoque soluços, engula tagarelice. Despreze a alegria, despreze o toque, despreze a tragédia, despreze a liberdade, despreze a constância, despreze a esperança, despreze a exaltação, despreze a reprodução, despreze a variedade, despreze o embelezamento, despreze a liberação, despreze o descanso, despreze a doçura, despreze a luz. É uma questão de forma tanto quanto de função. É uma questão de repulsa. Você é vítima das regras pelas quais vive... Pensamento da artista neo-conceitual estadunidense Jenny Holzer, que no livro Jenny Holzer: Truisms And Essays (Barbara Gladstone Gallery, 1995), expressou: [...] Se você se comportasse bem, os comunistas não existiriam. [...]. Veja mais aqui e aqui.

 

ALGUÉM FALOU: No meu começo está o meu fim. Sucessivamente casas sobem e desmoronam, desmoronam, são ampliadas, são removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar. Está um campo aberto, ou uma fábrica, ou um desvio.  Pedra velha para construção nova, madeira velha para fogos novos, fogos velhos para cinzas e cinzas para a terra que já é carne, pêlo e fezes. Osso de homem e animal, talo de milho e folha. As casas vivem e morrem: há tempo de construir e tempo de viver e de gerar. E tempo de o vento quebrar a vidraça solta. E de sacudir o lambril onde trota o rato do campo e de sacudir as cortinas esfarrapadas tecidas com lema silencioso. Expressão da artista alemã-georgiana Thea Djordjadze, autora de obra como MA SA I A LY E A SE – DE (2015), Thea Djordjadze (2014), November (2013), our full (2012), Lost Promise in a Room (2011), Thea Djordjadze – His vanity requires no response (2011), Thea Djordjadze. endless enclosure (2009), Explain away - . (2009), Un soir, j'ai assis la beauté sur mes genoux. And I found her bitter and i hurt her (2008), Possibility, Nansen (2007), History of an Encounter (2007), Fröhliche Wissenschaft (2003), The Sight of the Conductor (2001), entre outras.

 

O CAOS – [...] A palavra “caos” é das mais pronunciadas na atualidade. Tema cult de congressos, livros de divulgação científica, artigos de jornal e até programas de TV, fala-se de caos em todos os campos da cultura. Com certeza, não se trata de um mero modismo, mas de uma exigência que a realidade contemporânea vem nos colocando: enfrentar o caos, repensá-lo, reposicionar-se diante dele - mesmo que muitas vezes a insistente evocação dessa palavra vise, pelo contrário, evitar tal enfrentamento e conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanças se estariam operando nas subjetividades, hoje, para levá-las a revisar seu conceito de caos e de ordem, assim como da relação entre ambos? Primeiro, duas palavras acerca da noção de subjetividade. Todo ambiente sóciocultural é feito de um conjunto dinâmico de universos. Tais universos afetam as subjetividades, traduzindo-se como sensações que mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus de intensidade. Relações se estabelecem entre as várias sensações que vibram na subjetividade a cada momento, formando constelações de forças cambiantes. O contorno de uma subjetividade delineia-se a partir de uma composição singular de forças, um certo mapa de sensações. A cada novo universo que se incorpora, novas sensações entram em cena e um novo mapa de relações se estabelece, sem que mude necessariamente a figura através da qual a subjetividade se reconhece. Contudo, à medida em que mudanças deste tipo acumulam-se, pode tornar-se excessiva a tensão entre as duas faces da subjetividade - a sensível e a formal. Neste caso, a figura em vigor perde sentido, desestabiliza-se: um limiar de suportabilidade é ultrapassado. A subjetividade tende então a ser tomada por uma inquietude que a impele a tornar-se outra, de modo a dar consistência existencial para sua nova realidade sensível. [...] o caos, hoje, circula de boca em boca, e que essa insistência em evocá-lo responderia a uma solicitação que a realidade atual vem nos colocando. De fato, o caos nunca esteve tão presente. Mas se, neste final de milênio, estamos confrontadas ao caráter precário e incerto da subjetividade, estamos certamente também - e mais do que nunca - diante de seu caráter criador. [...]. Trechos do estudo Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea (Face e Fapesp, 1999), da filósofa, escritora, psicanalista e professora Suely Rolnik.

 

PODER, CULTURA & APARÊNCIAS - [...] Não tenho queixas, exceto do mundo. [...] Seu conforto é meu silêncio. [...] Garota \ Não seja burra \ Não seja tímida \ Não se sinta intimidada \ Não pense que isso não pode acontecer com você \ Faça sexo seguro porque a AIDS mata \ Não morra por amor [...]. Trechos extraídos da obra Remote Control: Power, Cultures, and the World of Appearances (Mit Pr, 1994), da artista conceitual estadunidense Barbara Kruger, autora de frases como: Se eu trago à tona poder político, poder pessoal, parece que são meus termos, e não são. Ver não é mais acreditar. A própria noção de verdade foi colocada em crise. Em um mundo inchado de imagens, estamos finalmente aprendendo que as fotografias realmente mentem. Veja mais aqui e aqui.

 

DO POVO BUSCAMOS A FORÇA - Não basta que seja pura e justa\ a nossa causa\ É necessário que a pureza e a justiça\ existam dentro de nós.\ Dos que vieram\ e conosco se aliaram\ muitos traziam sobras no olhar\ intenções estranhas.\ Para alguns deles a razão da luta\ era só ódio: um ódio antigo\ centrado e surdo\ como uma lança.\ Para alguns outros era uma bolsa\ bolsa vazia (queriam enchê-la)\ queriam enchê-la com coisas sujas\ inconfessáveis.\ Outros viemos.\ Lutar pra nós é ver aquilo\ que o Povo quer\realizado.\ É ter a terra onde nascemos.\ É sermos livres pra trabalhar.\ É ter pra nós o que criamos\ Lutar pra nós é um destino -\ é uma ponte entre a descrença\ e a certeza do mundo novo.\ Na mesma barca nos encontramos.\ Todos concordam - vamos lutar.\ Lutar pra quê?\ Pra dar vazão ao ódio antigo?\ ou pra ganharmos a liberdade\ e ter pra nós o que criamos?\ Na mesma barca nos encontramos\ Quem há-de ser o timoneiro?\ Ah as tramas que eles teceram!\ Ah as lutas que aí travamos!\ Mantivemo-nos firmes: no povo\ buscáramos a força\ e a razão\ Inexoravelmente\ como uma onda que ninguém trava\ vencemos.\ O Povo tomou a direção da barca.\ Mas a lição lá está, foi aprendida:\ Não basta que seja pura e justa\ a nossa causa\ É necessário que a pureza e a justiça\ existam dentro de nós. Poema extraído do livro Poemas de Angola (Codecri, 1979), do médico e escritor angolano Agostinho Neto (1922-1979). Veja mais aqui e aqui.

 

SACADOUTRAS

 

QUARUP – Uma das obras mais impressionantes da literatura brasileira é o romance Quarup (Civilização Brasileira, 1967), do jornalista e escritor Antonio Callado (1917-1997). Conta a história de um padre de Pernambuco, Nando, que tem o sonho de construir na Amazônia a sua terra prometida, enquanto se envolve num amor platônico por Francisca que o faz abandonar a causa e a batina. Uma história vibrante e uma narrativa riquíssima de engenhosidade literária. Confira um fragmento: [...] Na vida de Nando e Francisca a zona do Jarina e da cachoeira de Von Martius se transformou em mero divisor de águas. O dia em que se adotou a resolução de fazer a marcha ficou entregue à fantasia de cada um. Nando tomou a pequena ubá que vinha no barco de carga e saiu remando, ali onde o Jarina entre no Xingu. A foz, abaixo da cachoeira de Von Martius, fica meio oculta por uma ilha. Dando a volta à ilha para melhor pensar em Francisca, Nando a viu pela primeira vez transferida para o mundo. Desde os tempos de Olinda, que certas paisagens para Nando a própria Francisca transposta para outro meio de expressão: oitão de igreja batido de sol com cajueiro, coqueiro, perto de rede de pescar estendida na areia. Às vezes Nando sentia mesmo um certo temor de perder Francisca, de disciplinar sua invocação untariatária. Mas aquele dia na foz do Jarina foi diferente. Remava Nando perdido em sonho de Francisca, a capacidade de visão tomada pela imagem muito viva daquela com quem acabava de estar, quando a viu realmente transferida para o mundo. É que por trás da ilha entrara quase insensivelmente por um mfuro estreito e alastrado de orquídeas dos dois lados. Mata fendida pelo fio d´água tornado lilás pela contemplação de tantas orquídeas. Nando remou de volta ao acampamento, encostou a ubá para chamar Francisca [...] Nando e Francisca não falaram. Apenas se voltaram um para o outro, braços abertos, e o breve instante em que se separaram foi para deixarem cair no chão as roupas sobre as quais se deitaram debaixo de orquídeas pálidas, separados do rio por um cortinado de orquídeas coloridas. Quando veio o prazer Francisca o fechou em lábios e pétalas quentes sem nenhuma palavra e Nando descobriu o gozo que é profundo e continuo como mel e seiva que se elaboram no interior das plantas... Veja mais aqui, aqui, aquiaqui.

Imagem: Venus playing the Harp (1630), do pintor do Barroco italiano, Giovanni Lanfranco I(1582-1647).

Ouvindo: Rua ramalhete e outros sucessos do Tavito. Veja mais aqui.

ELA PANTERA NEGRA - A professora e filósofa socialista estadunidense, Angela Yvonne Davis, integrante dos Panteras Negras, do movimento Black Power e militante de organizações políticas dos direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial. Por suas atividades, na década de 1979 passou a ser procurada pelo FBI com prisão decretada por ser acusada de conspiração, sequestro e homicídio. Ao ser presa, o seu julgamento durou 18 meses e uma manifestação pública mobilizou o país pela sua libertação. Nos debates do tribunal, a condição negra passou a ser a discussão, sendo, finalmente, inocentada. Ela recebeu homenagens de John Lennon com a música Angela, e dos Rolling Stones que gravaram em sua homenagem Sweet Black Angel. No final da década de 1970, ela foi ganhadora do Prêmio Lêniz da Paz e mantém até hoje suas atividades com discursos e palestras sobre as causas dos negros, latinos e mulheres, concentrando suas atenções para o abolicionista prisional no sistema carcerário dos Estados Unidos. Veja mais aquiaqui.

A HEROÍNA BARBARELLA – Tudo começou com os quadrinhos criados pelo escritor e ilustrador francês Jean-Claude Forest (1930-19989). Mas o bom mesmo foi depois, quando em 1968, o diretor Roger Vadim (1928-2000) lança o filme com a heroína Barbarella, protagonizada pela Jane Fonda, tornando-se a maior sensação do universo masculino. Eu mesmo não perdia de rever o filme, sonhando um dia ter uma heroína dessa pra mim. Coisas de infância que se mantiveram na adolescência, quando passou a residir na memória dos sonhos. Veja mais aqui.


Veja mais sobre:
O reino das águas aqui.

E mais:
Eu nasci entre um rio e um riso de mulher aqui e aqui.
Cantando às margens do Una aqui.
A correnteza do rio me ensinou a nadar aqui.
Penedo, às margens do São Francisco aqui.
Sou deste chão como a terra, o fogo, a água e o ar, André Gide, Brian Smith, Friedrich Hundertwasser & Carol Andrade aqui.
O que era Mata Atlântica quando asfalto que mata, António Salvado, João Parahyba, Don Dixon & Nini Theiladetheilade aqui.
Existe gente pra tudo, Os Apinajé, Harriet Hosmer, Josefina de Vasconcelos, Anelis Assumpção & Banksy aqui.
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CRÔNICA DE AMOR POR ELA
Art by Ísis Nefelibata
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CANTARAU: VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital Musical Tataritaritatá - Fanpage.
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