quarta-feira, junho 09, 2021

LEWIS CARROLL, MARY LOU WILLIAMS, VIRGINIA LEAL & ESPELHO DANÇA.

 

 

TRIPTICO DQP – Do nada e outras... - Ao som do performático show de cabaré da lendária compositora, pianista e arranjadora estadunidense de jazz Mary Lou Williams (1910-1981), no Les Mouches em Nova York, 1978. - Ao deparar com o espelho: nem eu nem nada. Pelo menos, não tive que passar pela experiência de ter que dar de cara com um general obtuso, nem um ladrão sorrateiro, muito menos a morte inexorável. Graças! Ainda me pergunto como é que tudo isso foi acontecer justo comigo, logo comigo! Uma coisa estava certa: ou havia me tornado invisível de vez, ou seria um vampiro das costelas ocas. Só sendo. Essa a constatação. Até brinquei cantarolando: Espelho, espelho meu, afinal de contas, o que serei eu? Um delírio ou uma assombração, hehehehe. Vamos nessa. E ao chegar à sala, esta não era a minha: três vultos sentados num sofá que não era o meu. Fui ver quem. Ah, qual não foi a minha surpresa! O primeiro a se virar para mim foi Machado de Assis que logo me falou: A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito. Hem? O outro logo interveio, era Guimarães Rosa: Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Mal ele terminou de me dizer, logo apareceu Sacha Guitry que foi contando a história de um senhor que, ao sair às compras, virou-se da porta e perguntou à esposa o que ela queria que trouxesse: um pente. Este o pedido. No mercado, ele não se lembrava do pedido dela e adquiriu um espelho. Como ela nunca tinha visto aquilo, ao abri-lo, teve uma surpresa: pensou consigo que o marido havia comprado outra mulher. Com esta constatação, levou o objeto para mãe que também nunca tinha visto um troço daquele. Vôte! E ao fitá-lo, olhou, olhou, olhou, virou de ponta à cabeça, fez careta e... como mãe é mãe (né?): é sábia. Coisa mais sem pé nem juízo, ora. Como é? Bem, diante do trio fiquei sem saber o que fazer. O que sei é que aquela não era a minha sala de estar; era, soube por eles depois, a do deão do Christ Church College, que possuía um grande espelho sobre uma enorme chaminé. Teria eu, conforme as instruções que me foram dadas pelos visitantes, que subir o console da lareira, livrando-me dos vasos de flores secas protegidos por redomas vitorianas, e ao alcançá-lo, consequentemente, ultrapassá-lo para saber onde é que ia dar. Como é que pode uma coisa desta, hem? A minha longa jornada pelo espelho.

 


Dois sustos no imprevisível... - Ao atravessar o espelho, ele se dissolveu como uma bruma prateada. Estava diante de mim, ninguém mais nem menos que Lewis Carroll que, por recepção, foi logo me saudando amável e enigmaticamente: A única forma de chegar ao impossível, é acreditar que é possível. Nem deu para notar direito a ponta de sarcasmo que havia no seu jeito e fui imediatamente acompanhado de uma admoestação para que eu não me espantasse, explicando que ali era a entrada para o país do Espelho (!?!), o qual, quando visto, torna-se impossível descrever o cenário com precisão. Hum? Sim, realmente, impossível ter qualquer noção em um lugar em que foram abolidos tanto o movimento no espaço como a passagem do tempo: a prova tangível da refutação do espaço de Zenão. Eita! Além do mais, ali o tempo de cada um é diferente do tempo de todos: o tempo tanto corre para frente, como para trás. Vôte! Endoidou tudo! Assim, eu podia parar o meu tempo à vontade, independente do tempo do outro e nenhum prejuízo para ninguém. Então o que eu vi e senti não deu para contar, apenas vi e senti sim, nada mais. Coisa de doido, né? Pois é.

 


Três solfejos e nenhuma canção... - Já tive oportunidade de aqui publicar poemas de Virginia Leal: a cada leitura de seus cometimentos poéticos, um prazer indescritível, uma emoção inenarrável: e isso muito me apetece. Tanto é que virei assíduo apreciador de suas postagens e, a cada uma delas, lá estou eu como devotado admirador. Prova disso é que aqui já publiquei de sua autoria o Lascivus – da série Nauta Libidinosos –, afora outros dos seus poemas. Até comecei a musicar um deles e, mal começava a descobrir canções em seus versos, logo outro aparecia e lá ia eu solfejando melodias intermináveis. Cheguei a selecionar uns dez ou doze poemas dela, já definindo a linha melódica para cada um deles e procurando superar minhas limitações musicais para alcançar a grandeza do que expressavam. Fiz, refiz, me enganchei, desenganchando e recomeçando, quem sabe, de repente, eu consiga fazer uma música à altura dos seus poemas, espero, vamos ver. Mas o que quero falar aqui não é a respeito dessas minhas tentativas recorrentes e sim de um conto dela que foi responsável pela potencialização da admiração: o A bailarina, a atriz e a canção, extraído da antologia Contos de oficina – Oficina de Criação Literária (Bagaço, 2004), organizada por Raimundo Carrero, do qual pinço o trecho: [...] O artista esculpiu a sensibilidade da menina, antes enredada pela teia do drama que a fez ameaça, ovelha negra, problema. A menina-atriz ressurgida resgatou as histórias perdidas. Agora, havia interessados em suas verdades. Descobriu que é possível fazer do trabalho diversão. Sentiu-se de volta aos brinquedos infantis, enquanto seu corpo febril descobria outros prazeres. O tempo a lapidar cumplicidade, compreensão. [...]. Pois bem, mesmo que minha teimosia em musicar seus poemas não vingue por minha completa incompetência de alcançar a grandeza de sua arte, pelo menos, vou tentando e mais me deliciando com sua maravilhosa expressão. Até mais ver.

 

Veja mais aqui e aqui.

 


terça-feira, junho 08, 2021

BERGMAN, WILLIAM ZADIG, NOBUKO IMAI, TRILUSSA & RECIFE


  

TRIPTICO DQP – Uma: a morte no espelho... - Ao som da Harold in Italy - Symphony in Four Parts with Viola Obbligato (1834), op. 16, H. 68, do compositor francês Hector Berlioz (1803 - 8 de março de 1869), na interpretação da violista japonesa Nobuko Imai & London Symphony Orchestra, regência de Kazuki Yamada. – Que coisa! Anteontem foi um general, ontem um ladrão e hoje, imagine: a morte. Pode? Agora deu. Logo me vi naquela antológica cena do Sétimo selo - Det sjunde inseglet, do Bergman: era nada mais que Bengt Ekerot, disfarçado de monge da morte: presente por todo lado no cadáver do pastor e na dança macabra do afresco da igreja numas imagens que flutuavam por trás dele. Tinha outro espelho para invadir não? E logo me tratou como se eu fosse o quixote Block, na verdade, um ladrão de joias dos mortos, sem a presença do fiel escudeiro Jons, e que havia encabeçado a procissão dos flagelados, convencido por um decadente de que devia partir para a cruzada, agora retornando para dar de cara com o quadro desolador da sindemia: a violência nas ruas, a ira dos religiosos imprimindo medo e cura, a fumegante tortura e o desespero dos flagelados, o hecatombe com todos os malefícios da humanidade: todos matam e enriquecem em nome de um deus que nunca reconheci. Por trás dele vi o voo da águia e, logo em seguida, o som das guerras, bombas, discórdias, genocidas do agronegócio, o holocausto. Deus está longe, mas o diabo está por todo lado – foi o que ele sussurrou. O meu interlocutor sorria e diante das suas sombrias predições, propus um jogo de xadrez. Depôs o tabuleiro na hora, enquanto imaginava a minha antipatia com a escatologia cristã porque alguém - sabe-se lá quem - desatou os seus sete selos apocalípticos: a morte está caçando os vivos e algo me diz que o mundo será dizimado gradualmente pela peste. Ouvia lá longe não sei quem, nem onde e muito menos pra quê, alguém se manifestava pregando a punição em nome do sagrado. Ora, bolas! O que há de moribundo e desespero: o agouro implacável. Enquanto jogávamos falou-me do sentido da vida e da morte, como se eu fosse o cavaleiro que voltou da cruzada da fé e havia encontrado o sétimo selo e o medo: um visitante inesperado com a personificação mortal para vencê-la. Foi na vida, a experiência para enfrentá-la. Encarou, então, meu destemor como um escárnio e me expôs a imagem daquela escultura de um túmulo do Poblenou, em Barcelona: El Beso de La Muerte (1930), atribuída a Jaume Barba ou Joan Fontbernat, com um epitáfio de Jacint Verdaguer: E seu jovem coração não pode ajudar; / Em suas veias o sangue para e congela / E o encorajamento perdido a fé abraça / Cai sensível aos braços da morte. Ao recitá-lo a música me envolveu com a imagem e senti que alguém se aproximava. Era Berlioz: Na vida de um artista, às vezes um trovão segue-se rapidamente a outro... Eu acabara de receber as sucessivas revelações de Shakespeare e Weber. Agora, noutro ponto no horizonte, vi surgir a forma gigantesca de Beethoven. O choque foi quase tão grande quanto o de Shakespeare. Beethoven abriu diante de mim um mundo novo da música, tal como Shakespeare revelara um novo universo de poesia. Hem? Virei-me para vê-lo e era Bergman com um meio sorriso: Quando eu era jovem, eu tinha muito medo de morrer, mas agora penso que é muito, muito sábio se preparar. É como uma luz que se extingue. É preciso aprender a viver. Eu treino todos os dias. Todos precisam aprender a viver. A cada dia, me esforço um pouquinho. A dificuldade principal está em saber quem eu sou e onde estou. É como procurar na escuridão. Se alguém me amasse como sou, talvez, finalmente, me pudesse encontrar. Era como se toda cena fosse ao final, no qual só o casal de atores da trupe mambembe escapava, tudo o mais estava perdido: apenas o Sol brilhava no horizonte abrindo caminho para a vida. Sei não.

 


Dois beijos na princesa do escultor de Trilussa - Imagem: a polêmica escultura O idílio ou Beijo eterno (1922), do escultor sueco William Zadig (1884-1952), recolhida em 1936; instalada depois em 1956, no Largo do Cambuci e, depois, reinstalada na entrada do túnel 9 de Julho, e, finalmente, em 1966, no Largo de São Francisco, em frente à Faculdade de Direito, em São Paulo, representando um francês e uma índia, em referência à obra de Olavo Bilac. – Sardenilza é uma daquelas moças que nasceu com a bunda pra lua e para admiração de todos. Desde a hora que nasceu, seus familiares apelidaram logo de priquituda, devido descomunal desenvolvimento do seu capô de fusca: Essa menina é só boceta, gente! Mas com o tempo, ela foi tomando jeito e, na adolescência, as suas proporções corporais foram distribuídas, removendo de vez o apelido de infância. Com o tempo passou a ser a gostosuda da cidade, ganhando a simpatia dos marmanjos e se ajeitando na vida com a sua própria beleza. Muitos pretendentes gastaram fortunas para serem contemplados com o seu sim num casório, enquanto ela permanecia solteiríssima e cobiçada. Um dia lá, desfilava no seu conversível, quando perdeu o controle e achou de esfregar a face num poste. Ficou desfigurada. Era uma vez uma beldade: tornou-se a coisa mais feia do mundo. E agora? Sai pra lá, jaburu! Um admirador, o Jadonaldo, que não tinha nem onde cair morto, foi a salvação: cedeu seus glúteos para reembelezá-la numa cirurgia de horas. Em compensação, o desbundado foi contratado como seu motorista particular. Ao reaparecer, filas e alvoroços para a banda dela. Sem saber o que acontecia, procurei saber do primeiro que encontrei: Hehehehe! É fila dos machos que querem beijar a boazuda. Não havia entendido a risada dele, só com relato que coincide com a história contada pelo Trilussa – na verdade, o escritor satírico italiano Carlos Alberto Salustri (1871-1950) -, no seu conto O beijo do escultor: Fui submetido a uma operação delicada e dolorosa. Devo dizer que sofri tudo de boa vontade, para agora ter a compensação de haver retribuído pessoalmente com a conservação da beleza do rosto da minha senhora. Pois é, é do sofrimento de um que aparece a felicidade de outro e finda tudo empatado. Vá entender.

 


Três sustos nos semáforos do Recife... – Imagem de Heraldo Cunha ao som de Luiz Bandeira: Voltei, Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço... - Sempre transitei pela Pracinha do Diário, era meu caminho ao largar do trabalho no Cais do Apolo, rumo à Livro 7. Isso até os anos 1990, mais ou menos, quando arribei estrada mundo afora. Não sabia eu que 30 anos depois, a coisa mudara, e muito. A cada passada pela faixa de pedestres nos semáforos, refazendo o itinerário, eu tinha um susto. Certas abordagens não chegaram a ser de fato, mas bem que passaram para premiar outro transeunte, cuidava para estar pronto na minha hora. Hoje não tem mais a livraria predileta, nem condição de se andar certas horas pelo itinerário que eu costumava fazer todos os dias do final dos anos 1970 até quando fui embora. Para minha sorte nunca fui assaltado. Consegui chegar ileso no nono andar do Pernambuco, aboletando-me no sofá e pegando o primeiro livro que estava ao alcance: era o volume Trabalho precário no meio urbano: semáforos do Recife (Fundaj/Massangana, 2007), coordenado por Tarcísio Patrício de Araújo, flagrando esta parte do texto: [...] uma ideia das condições de vida das pessoas que trabalham nos semáforos de Recife, um contingente que tem crescido [...] uma alternativa à impossibilidade de inserção no mercado formal [...] consequência direta da insuficiência de absorção de mão-de-obra pelo mercado de trabalho formal. [...]. Fui até a janela, olhei pros lados, todos os prédios antes reconhecidos de grande movimento, todos abandonados. Bem, a Guararapes não é mais a mesma, nem a Boa Vista. Outros tempos, até mais ver.

 

Veja mais aqui, aqui e aqui.

 


domingo, junho 06, 2021

COMTE-SPONVILLE, ELENI KARAINDROU, VASCO PRATOLINI, KIM KASHKASHIAN, CLÓVIS PEREIRA, TINA MARIA ELENA & RECIFE


  

TRIPTICO DQP – Um ladrão no espelho... - Ao som performático da violista e professora estadunidense Kim Kashkashian. - De novo, nada refletido. Acho mesmo que não mais existo, falta alguém me avisar, parece. Já saindo: Ei! Quem é você? Sou um ladrão. Pronto, essa é boa! Aí encarei: Por acaso você é Ahmed da Corporação dos Ladrões de Marrakesh saído dos insólitos de Raymond Bernard ou do racxasa do Panchatantra? Não. Então o que está fazendo no meu espelho, hem? E começou uma história bonita, cheia de subterfúgios contando a respeito dum caso lá d’O cocheiro, a mulher e o amante. Muita conversa para boi dormir, imagine. Fiz de ouvinte e lembro haver mencionado que vivia numa região de Klondike, perto do Estreito de Bering, era muito rico, possuía de tudo e que, se eu quisesse ir para lá, era só afanar, requestar, trapacear ou coisa que valha, submeter-se ao monsenhor Dassy de Tharn, e poderia desfrutar do que é controle total e o melhor da vida. Ora, ora. Conheço essa história, mas logo pra cima de mim? Sempre tive naquela do velho Machado de Assis: A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito; e ouvia no pé do ouvido desde menino, meu pai citar Catão: Os ladrões de bens particulares passam a vida na prisão e acorrentados; aqueles de bens públicos, nas riquezas e nas honrarias. E, vigente até hoje principalmente no Brasil, o que dizia Lao-Tsé: Quanto maior o número de leis, tanto maior o número de ladrões; e o impagável Marquês de Maricá sacramentando na boa: O roubo de milhões enobrece os ladrões. Afora a experiência de adolescente presenciar a prisão de um amigo de infância, Roberto Ladrão, hoje trabalhador numa casa lotérica e, ao que dizem, completamente regenerado, queria mais o quê? Pelo visto, nenhuma chance. Calma lá! Nenhum diálogo, pode cair fora do meu espelho. Eu vou roubar sua alma! Vôte! Tenho tudo, mas não tenho vida, preciso da sua alma para poder desfrutar de tudo que acumulei! Agora, deu! E veio pra cima de mim com o papo d’A arte de furtar e saiu sapecando O sermão do bom ladrão e tetei, borogodó, cacacá, pra lá e pra cá. Peraí, meu, vá arrumar uma boa lavagem de roupa que eu tenho mais o que fazer, viu? Não adianta, só vou quando conseguir. Então, fique aí ou vá ver se eu estou lá na esquina, que é melhor, tá? Tichausis. É cada uma que me aparece!

 


Dois baques e nenhuma saída, Terezinha... - Ao som do Concert in Istanbul (2012), da compositora grega Eleni Karaindrou, imagens da artista franco-dinamarquesa Tina Maria Elena Da primeira vez, éramos estudantes do primário, ela na outra sala, qualquer fresta eu pregava o olhar nela e ao se dar conta da minha fixação ou virava de lado ou olhava pro céu. Assim foram os quatro anos naquela escola infantil, de lá saí pro ginásio de nunca mais vê-la. Da segunda vez, na esquina da faculdade, ela viúva de um amigo meu e eu sequer sabia, que coisa! Rolou um papo longo e, depois, um clima que se prolongou da sexta por todo final de semana. Parecia que ela queria se redimir da rejeição infantil, não sei. E foi só, desaparecera de sequer saber seu paradeiro depois de um tanto de buscas. Conversamos de tudo de nossas vivências, mas como sou desligado, não peguei seu telefone, nem sei onde trabalhava ou estudava, perdi. Estava naquela do André Comte-Sponville: Esperar um pouco menos, amar um pouco mais. É, quem sabe. Da terceira vez... Não houve, apenas uma carta como a d’Aquela moça do Vasco Pratolini, quase. Lembrei dela e levei flores, no coração o que foi de nós e nosso.

 


Três boatos e uma verdade: o Recife isolado do mundo. - Ao som de Três Peças Nordestinas, do compositor, arranjador, pianista e regente Clóvis Pereira, com a Orquestra da ULBRA, regência Tiago Flores. – A carta dela veio acompanhada de dois livros, três boatos e só uma verdade. O primeiro boato dava conta de que o mar ia engolir o Recife, maior torada de aço. Pense num papo chato, esse. O segundo era também de longas datas e de deixar os cabelos em pé: que a barragem de Tapacurá estava para se romper. Não tinha quem não dissesse: Vai ser um estrago da porra! Abri o livro e lá estava: Tapacurá: viagem ao planeta dos boatos (CEPE, 2015), do escritor e jornalista Homero Fonseca. Aí, o terceiro, foi verdade. E tanto que consta das páginas do Memorial da redação (FCCR/SJPEP, 1989), do jornalista Fernando Menezes, O dia em que o Recife ficou isolado do mundo: No começo dos anos 1960 [...] Um DC-7 da Panair, que regressava de Lisboa, o chamado “Voo da Amizade” cairia um pouco antes da pista. As primeiras notícias davam conta de mais de 60 mortos (na verdade foram 67), havia sobreviventes feridos em vários hospitais, sobretudo no Hospital da Aeronáutica [...] Assim foi naquele 1º de novembro de 1961, uma lição viva e aprendida, um episódio que o tempo apagou. Nele se confirmou uma regra clássica e a competência de dois grandes profissionais [...]. Folheei ambos os volumes e, cá comigo, passava na minha cabeça qual seria o meu delírio comunista e, confesso, meio embatucado com a papa que virou o exército brasileiro, se bem que desde menino nunca fui muito achegado às fardas policiais – passei a infância e a adolescência toda na repressão do golpe de 1964 -, sempre olhei de soslaio e com um bocado de antipatia. Isso só foi um tanto debelado das minhas chaturas, ao conhecer de perto alguns oficiais graduados nas faculdades, que me deram até lição de humanidade. Mas depois do golpe lavajatista e da jogada pro Coisonário, nossa, meu país virou uma bandeira rasgada no meio de um genocídio da pior melecagem, infelizmente. Até mais ver.

 

Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 


sexta-feira, junho 04, 2021

LORCA, TERRA, THOMAS MANN, NAZARÉ PACHECO, DAVID SOLÍS & JAMES CANTARELLI

 

 

TRIPTICO DQP – Uma: Longa jornada do espelho... - Lá vou eu e qual não foi minha surpresa: não apareci. Ué, ou virei vampiro ou fiquei invisível. Podia ser pior: dar de cara com o Dorian Gray do Oscar Wilde, ou com O retrato profético de Giovanni Papini. Tá. Sei que entre os muitos e tantos eus, a maioria é uma patetada inconsequente que, vez em quando, bato uma real. Ou algumas sábias mulheres, na verdade, filhas da dor. Dessa vez não, nem Narciso nem outro duplo qualquer. Fiquei com meus botões. E já ia saindo, vôte! Apareceu um mandão estúpido cheio de ordem: Venha cá, seu comunistinha safado! Hem? Sou candidato a presidente e muito macho, quer você vote em mim ou não, seu porra! Pronto, agora deu! Não basta o tresloucado Coisonário, agora mais este! E arriou o maior blábláblá de homofobia, intolerância e logística. Danou-se! E quanto mais ele exacerbava na macheza, mais desmunhecava: Sai do armário, ou melhor, sai do meu espelho, infeliz das costas ocas. Não adiantou, horas alugando minha paciência, deixei falando sozinho. Cada uma que me aparece. Mas, fui pesquisar: era o General Babu, filho de militar, alistou-se no exército, atravessou as patentes e logrou êxito, casou-se e teve uma única filha: Estou fraco! Pegou jeito copiando as manias da repressão golpista de 1964 e isso mais de 20 anos depois da redemocratização. Vivia caçando esquerdista onde lhe desse na telha, haja neurose. Certa feita ele foi convocado pra caçar uns guerrilheiros rebeldes (hum!?!) que haviam furado o cerco e badernavam na maior desmoralização, isso em pleno século 21, pode? Como não conseguia dar cabo dos infratores, rapou fogo e a fuzilada cantou de deixar tudo mais furado que tabuleiro de pirulito. Foi lá conferir: entre os metralhados, Deus do céu, estava sua filha, estudante de Medicina, 19 anos de idade. Vai ver.

 


Duas: As paixões e o segredo de viver... – Arte da artista visual Nazaré Pacheco – A cena: ela debutou há dois anos, só queria amar, ser mãe, sair do jugo do pai e viver feliz livre. Ele, magrelo de vintanos, cheio de amor para dar, jurava a paixão pra vida eterna. Beijos e arrochados sarros até as vias de fato, dela emprenhar três meses depois: Vou ser mão, estou grávida, u-hu! Ele passou sebo nas canelas, deu uma pinotada de nunca mais dar o ar da graça. Depois de umas mãozadas e outras tantas cinturãozadas, foi botada de casa pra fora por ter perdido a virgindade. Pronto, desgraça feita. Ir pra onde? Deu pra esconder o bucho por um bom tempo, depois não teve mais jeito: pariu entre indigentes. Quase morria ela e a filha de inanição. Ficou meio lá, meio cá. Nem sabia em que parte do mundo estava. Foi recolhida, parece, por uma beneficência dessa religiosa, na maior corda bamba. Quando tomou pé na vida, estava sem a filha e desacordada num matagal. Gosto de sangue na boca, calombo sangrando na cabeça, estropiada pela violência, as pernas bambas, o corp0 moído do abuso, o que fazer na vida? Seguiu pela estrada atrás da filha.

 


Três: A vida é sagrada... – Ao som de Earth, instrumental do pianista mexicano David Solís - Estava com a boca cheia d’água de tão maravilhado com A diva de Juliana Notari, quando ouvi o escarcéu dos que não leram Plantas da nossa terra: um olhar sobre a flora pernambucana (Autor, 2010), do engenheiro agrônomo e mestre em Botânica, James Cantarelli, de logo ficar estarrecido. Um bando de falocratas pervertidos que professam a sua fé enquanto tocam fogo nas matas e cultuam o deus açucarocrata, hipócritas que envenenaram tudo com o seu autoenvenenamento. Sou da Terra Alma Caeté e não sei onde vamos parar com a fúria consumista. O que sei é que não perdi a esperança, porque sei reiteradamente de Lorca: O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida. Mas também sei que Thomas Mann me avisou: Uma das situações da vida mais cheia de esperanças é aquela em que estamos tão mal que já não poderíamos estar pior. Enfim, sou da Terra e a ela me dou. Até mais ver.

 


Veja mais aqui, aqui e aqui.

 

 


quinta-feira, junho 03, 2021

JEAN GENET, MAFFESOLI. PETER BROOK & EDWARD STEICHEN

 

 

TRÍPTICO DQP – Uma: contar uma história... - Ao som do álbum Sequenza (Avi, 2019), da violinista alemã Franziska Hölscher, interpretando Heinrich Ignaz Franz von Biber, Luciano Berio e Salvatore Sciarrino. – Estou pronto, voo pro teatro da vida: a cada esquina um novo cenário. Percorro calçadas, atravesso ruas e minutos, encruzilhadas e horas, semáforos e dias que mais parecem décadas que passaram e não vi. A plateia parece indiferente, sempre. Basta pisar em falso, um tombo e a topada, um escorregão, logo o mundo desmorona com todos os olhos holofotes de soslaio e o meu calafrio, trejeitos de dor, saliva amarga, o talho sangrando, o inferno queimando por dentro. Morreu? Está bêbado, só sendo! Epilepsia? Caninos escarnecem ou abanam a cabeça negativamente, arrastam suas suspeitas com suas encaradas atrevidas, a descurar do enfermiço estrangulado pelo vexame, estropiado pela cama-de-gato da ocasião, abatido pela surpresa do vexame. Não menos doutos julgadores de plantão, emitem suas odiosas conjeturas nas feições perturbadoras de espíritos empobrecidos, como se eu fosse culpado de infringir toda etiqueta da moral e bons costumes. Falsos moralistas, hipócritas! E eu nem havia caído e Oliver Goldsmith foi logo me dizendo de cara: A nossa maior glória não reside no fato de nunca cairmos, mas sim em levantarmo-nos sempre depois de cada queda. Mais irônico Schopenhauer salientou: Não nos deixar cair em tentação é o mesmo que dizer: não nos deixar ver quem realmente somos. Sorri. Não havia ninguém e o sol declinava na minha emaciada máscara em apuros. Tomara morresse repentinamente, pronto, tudo acabado e fim de papo. Mas não, há quem montado em certo apuro ouse verter aquilo tudo em discurseira de barata solidariedade. Tudo isso tem um não sei quê de desagradável, eu só queria era salvar a minha liberdade, nada mais que isso.

 


Duas: Na pele do escuro - Ao som de Introduzione All'Oscuro for 12 instruments (Ricordi, 1981), do compositor italiano Salvatore Sciarrino. – Salvei a minha liberdade e segui adiante mais perdido que nunca. Logo me vi na pele de Jean Genet: ele só tinha a mãe que era para muitos e sumira sem sequer nunca saber do pai, arrastado para a vida de um casal de Morvan, na Borgonha, e deles fugir para ser visitante assíduo de reformatórios e acolhimento prisional. No meio de seu labirinto eu me vi ao seu lado desonrando instituições e sendo caçado, enquanto compunha O Balcão – um bordel sob a ameaça de um levante revolucionário nas ruas, ou As criadas e as duas irmãs que planejavam matar a patroa. Lá estava eu cena e cenário, para me deparar com a estupefação n’O Ateliê de Giacometti, a sua fisionomia artística e logo o desejo de ser retratado e rascunhar suas impressões. Muito se passou e o encontrei na delinquência poética indultado de suas condenações, para me dizer com desleixo: Estou perdido, mas ai vem o desespero que é sempre de grande ajuda. Pude mergulhar nas muitas páginas de sua obra, até suas memórias de aventuras e andanças no Diário de um Ladrão (Europa-América, 1986). Depois que saí de todas as suas cenas, ele sussurrou apressado: Todas as minhas peças são, apesar de tudo, um pouco políticas, no sentido de abordarem obliquamente a política. Não são politicamente neutras. Relevei, afinal, ao meu lado estava Peter Brook que logo asseverou: O teatro deve ser o espelho da vida. O teatro deve acrescentar uma força revitalizadora... Mais me valesse viver, uma viagem no escuro.

 

Três: - A vida é um milagre... - Ao som do álbum New ressonances (EMA, 2018), da flautista italiana Sara Minelli. - As faces do escuro eram sombras de vozes indisfarçáveis, gemidos de dores. No meio de tantos soluços e gritos ouço Michel Maffesoli: Chora-se, ri-se, participa-se a vontade e sente-se assim em comunhão com a totalidade do corpo social. Lembrei o seu A transfiguração do político: a tribalização do mundo (Sulina, 2005), e tudo se parece medonho e indisfarçável. É como se me soasse em uníssono as tantas e muitas vozes de Colleen McCullough: Uma canção superlativa, a existência o preço. Mas o mundo inteiro ainda quer ouvir, e Deus em Seu céu sorri. Pois o melhor só é comprado às custas de uma grande dor… Ou assim diz a lenda. Imagens reproduziam as fotos dela de Edward Steichen que passou de quase nem vê-lo e me chamar a atenção: A fotografia é uma força importante para explicar um homem a outro. Eu sei, a vida é um milagre! Tudo o mais são delações e apostas, ilusões e engodo. Viva paz e amor, até mais ver.

 

Veja mais aqui, aqui e aqui.

 


quarta-feira, junho 02, 2021

CLARICE, CECILIA, BRECHT, ISADORA, COLKER, BAUSH, MARIKA, CISNE NEGRO & FREVADA

 

 

TRÍPTICO DQP – Uma: a dança no deserto da vida - Ao som de Vales – I. O vale do amor; II. O vale da dor; III. O vale da paz, da compositora. Regente e pianista Maria Helena Rosas Fernandes, interpretada pela pianista Sylvia Maltese. - Gigi – na verdade, Maria Egipcíaca e só, como a sua mãe: Maria da Conceição -, viviam uma para a outra, ouvindo a canção de uma caixinha de música que a pequena ganhara. Gostavam da música a ponto da menina dizer: Mamãe, quando eu crescer quero ser bailarina. E era embalada pela Cecília Meirelles: Esta menina tão pequenina quer ser bailarina, não conhece nem dó nem ré, mas sabe ficar na ponta do pé; não conhece nem mi nem fá, mas inclina o corpo para cá e para lá; não conhece nem lá nem si, mas fecha os olhos e sorri roda, roda, roda com os bracinhos no ar e não fica tonta nem sai do lugar. Põe no cabelo uma estrela e um véu e diz que caiu do céu. Esta menina tão pequenina quer ser bailarina, mas depois esquece todas as danças, e também quer dormir como as outras crianças. E sorria sonhando a vida a dançar. Quando completou oito anos de seu nascimento, o pai reapareceu: estava arrependido de tudo, mudou de vida –não mais bebia para espancá-las, nem fumava - e prometia cuidar delas, pronto que estava para virar pastor evangélico. Foi para ele que ela contou seu efusivo sonho, o que ganhou de cara a primeira reprovação. Nada demais, perseguiu teimosamente seus anseios, até ser violentada pelo próprio pai no dia que completou treze anos de idade. Reclamou para a mãe e ele: Sou santo! E todas as noites o constrangimento dos abusos. Não aguentou e fugiu de casa. Da menina franzina que todo mundo conhecia pela redondeza, tomou corpo e caiu na vida só com a roupa do couro. Suas formas corporais granjeavam a cobiça dos marmanjos: ofereciam-lhe mundos e fundos. Só não esperava que em troca, teria de servi-los. Depois de muito, conseguiu se desgarrar da patota e foi até a igreja pedir socorro, o padre Quiba a enxotou. Desamparada, caiu nas mãos de uma benfeitora que lhe empregou por doméstica em sua faustosa residência e lá serviu de refém pro marido e filhos. Deu com a língua nos dentes e foi despejada agora com a fama de ladrona. Dormia ao relento, pelas esquinas, pedindo esmolas a um e a outro, capturada por solitários para ser jogada na rua no dia seguinte. Soube, então, de Clarice Lispector: O mundo já caiu, só me resta dançar sobre os destroços. A lição ficou por conta de Isadora Duncan: Se você já foi ousada, não permita que a amansem. Dançar é sentir, sentir é sofrer, sofre é amar… Tu amas, sofres e sentes. Dança! E dormiu e sonhou ao relento para se perder no deserto da sua vida.

 


Duas: do Liber Notarum à sublevação - Ao som de Di-stances (1982), da compositora e pianista Vania Dantas Leite (1945-2018) – Mal despertou e se viu no Ballet de Castanhas. Era um palacete suntuoso e, no salão, pelo visto, o Banquete das Cortesãs, digna de figurar nos dois volumes do Liber Notarum (BUMichigan, 1906), o diário do protonotário e mestre de cerimônia Johann Burchard (1450-1506), que ela conheceu pessoalmente, bailando as escondidas na madrugada para suas práticas onanistas. Ela era convocada a desfilar sensualmente seguida por outras quarenta e nove contratadas para entreter os convidados no Morris dance. Lá para as tantas, as velas eram retiradas dos candelabros e espalhadas pelo chão. Renovado desfile agora para leiloar suas vestes: primeiro os vestidos, depois os bustiês, os sapatos, as meias e cintas-ligas e, por fim, as calcinhas. Desnudadas, cada uma delas engatinhava para apanhar castanhas. Era a hora em que os convidados se aproximavam lúbricos para ajudá-las na colheita, com achegamentos e alisados, redundando na cópula carnal consentida ou não. Às risadagens dos promotores, havia prêmio para os que fossem bem sucedidos com suas parceiras. E elas? Os servos mediam a pontuação dos orgasmos e a capacidade ejaculativa de cada convidado. Cada detalhe devidamente anotado pelo historiador William Manchester (1922-2004), que registrava até os brinquedos sexuais. Também a historiadora Barbara Tuchman (1912-1989) desenvolvendo o projeto de sua publicação, o The March of Folly: From Troy to Vietnam (Random House, 1985), contando detalhes de tudo que ocorria por ali. Não demorou, logo apareceram os primeiros protestos: o da bailarina francesa Mademoiselle De Lafontaine (1655-1738): Isso não é balé! A russa Bronislava Nijinska (1891-1972) fez coro e mais protestou. Logo os convidados exigiram do patrocinador: Essas são estragas prazeres! As revoltosas foram afugentadas e ela que não tinha onde cair morta, foi selecionada com outras tantas novatas contratadas por quantias módicas para os festejos. Logo organizaram o Dom Quixote, no qual Gigi teve de interpretar a história de Kitri. E por várias noites ali interpretou a Bela Adormecida, a camponesa Giselle e a cigana Esmeralda. No meio das apresentações teve de ouvir Stacey Tookey: Não deixe o medo te deter. Estar com medo é uma parte essencial da vida. Mas se você acredita em seu talento, descobrirá que é a única pessoa em seu caminho. E foi puxada por Deborah Colker: Bailarino não pode parar! Até a Anastassia Volotchkova denunciou do Bolshoi: Há dez anos, quando eu dançava no teatro, recebi em diversas oportunidades propostas para me deitar com homens durante seus banquetes. Viu-se desamparada com a sublevação das outras que foram imediatamente substituídas e não lhe restava, mais uma vez, fugir.

 


Três: da Baderna à recusa do céu & inferno - Ao som de Tríplice andar (2012), da compositora e professora Denise Garcia. - Quando deu por si, sentia-se na pele a Balada da puta de judeus Marie Sanders e na Lenda da puta Evelyn Roe, de Bertolt Brecht. E ousou além da conta, até ser chamada de Maria Baderna – o que ninguém sabia da Marietta ninguém sabia, mas era uma alusão à prima ballerina assoluta italiana Marietta do Il Ballo delle Fate, que desembarcara exilada no Brasil para se tornar a musa do povo no meio de um pudico e conservador império escravocrata que aplaudia a sua performance. Não havia como ser de outro jeito, vivia na rua pelos festejos populares regados a álcool e sexo. O sua performance transmitia um furor pélvico inspirado na sensualidade e ritmos de danças africanas, não dispensando passos de lundu, cachuca ou umbigada, aclamada pelo fervor das plateias. E pulou frevo nas ladeiras de Olinda e nas Cirandas de Lia e maracatus, caboclinhos e guerreiros. Não se safou justo por isso da pecha de símbolo da depravação, nem deixou de ser boicotada com tributos às avessas. E carregou a maldição da bailarina jogada do palco em baixo, e de se encantar pelos bandolins, e de ouvir a Germaine Greer furiosa: O ballet é um câncer cultural! E seguiu os passos de O despertar da primavera, de Pina Bausch; e no Cendrillon, de Maguy Marin; e de se decidir Svetlana Zakharova: Essa é a minha vida. E de se tornar o Cisne Negro: A única coisa que está em seu caminho para a perfeição, é você mesma. A perfeição não está só no controle. Também está em se deixar levar. Surpreender a si mesma e depois a plateia. Transcendência. E poucos têm isso dentro de si. E de segurar no braço da Marika Gidali e ouvir de Twyla Tharp: A arte é a única maneira de fugir sem sair de casa. E de falar como Martha Graham: O corpo diz o que as palavras não podem dizer. E de se ver Sylvie Guillem diante do espelho: Se você tem medo de perder alguma coisa, você é dependente disso. Se você não tem medo, então você é livre. E seguiu adiante e se cobriu com o manto de Zósimo e foi retratada na Vita de Sofrónio; e no Li Gieues de Robin et de Marion, de Adam de la Halle; no National Dance, de Margaret Alhenby-Jaffe; de ser Marry Gip na Volpone de Ben Jonson; de ser a Gipsy Mary no La diosa blanca, de Robert Graves; e n’As tentações de Miguel Sabido; como de figurar no Retablo ímpio de José Maria Menéndez López, num poema de Bandeira e noutro de Cecília Meireles, em duas óperas de Ottorino Respighi e John Tavener, em figuras de afrescos e descrita em vitrais de catedrais, enfim, em ser a descendente de Afrodite, a deusa do amor, que ofereceu seu corpo ao capitão do navio em troca da passagem com destino ao encontro com Jesus, falecendo no meio da viagem e ter sua alma, por fim, recusada por Deus e pelo diabo. Enquanto peregrina não se sabe para onde, o mundo fecha os olhos ao genocídio.

 

Veja mais aqui, aqui, aqui e aqui.

 

terça-feira, junho 01, 2021

MARIO PERNIOLA, ROSANA MONNERAT, PATRÍCIA MELO & NASH LAILA

 

 

TRÍPTICO DQP – Uma: à sombra de diferentes lugares... - Ao som de Alfonsina y el mar, do compositor argentino Ariel Ramírez (1921-2010). Ah, se não perdi a memória errei o caminho, estava no fim da estrada. Sabia que ali era do litoral, mas para onde eu me virasse só dava no canavial de um lado a outro. E se não era miragem, havia aqui e ali um sinal de resto de oásis que dava para matar a sede e limpar as vistas. De fato, estava perdido ou prestes. Na cabeça martelava o frevo do amor imortal que dizia do Pontal de Coruripe só céu e mar. De onde eu vinha, nem sabia direito, quase esquecia já ter passado pela Lagoa do Pau e, pelo que já andei, ainda faltava muito no destino, parece. Do que pude saber, tinha que passar por Piaçabuçu, era o que diziam os poucos passantes solícitos que cruzavam meu trajeto. Talvez fosse possível dar Boa noite, Penedo, cantando às margens do Velho Chico. Talvez. Antes disso, não havia mais a faixa do asfalto. Ué? Olhei direito, não me haviam dito que a faixa recomeçava do outro lado, depois de um pedaço de rodagem no areal. Segui e depois de tantos passos e paisagens, um povoado. O coração bateu mais forte, dei fé nas passadas, logo vencer a distância e passar pelas edificações todas com suas janelas e portas abertas, procurando no interior delas um pé de gente para remédio. Às ruas não havia a quem perguntar, acho ser ali uma localidade fantasma. De vivo mesmo só a cana ao redor e intermitentes pés de coco. Ou uns pedaços de taboa da entrada à saída do local. Deu-me uma sensação Rimbaud: De manhã, eu tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem. Só que todos, ninguém. Acho que enlouqueci, mas não. Não, não era fantasma aquelas paragens, já distante do lugar um menino me dissera que ali em abril ocorrera um dilúvio de dois dias, causando muita destruição e desabrigados. Onde estão todos? Não sei, em casa. Não vi ninguém. Ah, o povo vive entocado. Que lugar é este? Feliz Deserto. Vi-lhe o beiço virado apontar por ali para lá longe aonde eu deveria ir. Lembrei Bukowski: Não é morrer que é ruim, é estar perdido que é ruim. Sim, procede. Mais assustado fiquei ao ouvir Mário Perniola: Não é necessário sermos grandes viajantes para perceber que o mundo contemporâneo oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida contraposição entre sagrado e profano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional... Procurei girando as vistas ao redor, não havia ninguém. Estou, deveras, perdido.

 


Duas: A festa do fim de ano... – Imagem: arte da escultora, gravadora e artista visual Rosana Monnerat. – Ali não era uma miragem. O menino brincava no oitão da casa. Ouvimos estalidos, ou melhor, disparos. E ele: São fogos da festa! Abriu bem os olhos de alegria e correu em desabalada para um cajueiro, subindo por seu tronco, pés nos galhos e lá em cima, olhava para um lado e outro. Sabia que não eram fogos de artifícios, eram tiros. E ele, mão sobre os olhos, procurava inquieto descobrir de onde vinham. Dali a pouco ouvi uma correria e no meio dela, uma mulher desesperada chamando por Nino! Tou aqui, mãe, olha os fogos da festa! Desce daí menino, não é fogo de festa, desce já! Peraí, mãe, deixa eu ver! Desce já! Outros estampidos cruzavam o ar, procurei me proteger escondendo-me, deitado, ao lado de uma mangueira. A mulher aos gritos deitou-se, nem deu tempo insistir pela descida do menino: ele despencou lá de cima, entre galhos e folhas, caindo com um baque no chão, de costas, braços abertos, jorro de sangue na testa e no peito direito. Ao meu lado, Patrícia Melo falava de Inferno: ...o pior veio depois, um silêncio longo, um nada, nem mesmo os cachorros latiam. Agua até o nariz. É a pior parte... não há nada pior na guerra do que o silêncio. E eu já não sabia o ponto de partida, muito menos de chegada, tudo estava perdido.

 


Três: Onde o deserto feliz... - Estava desolado e caminhei a esmo, se não perdido já havia esquecido o destino e mais ainda ao me deparar com uma jovem que chorava à beira da estrada. Prudentemente procurei saber se precisava de alguma coisa e ela me escorraçou aos gritos. Está bem, se precisar de alguma coisa é só falar. Peraí. Sim? Estava desorientada, procurava por um alemão, acho. E desabafou sobre a ruina da família, a fuga para o Recife e se desdizia desesperada, a prostituição, a loucura do amor, o tráfico de animais, a dureza da vida, o sofrimento. Não sabia o que fazer, ela não tinha mais que uns quinze anos de idade e fora violentada pelo padrasto e era o que mais a repugnava, a ponto de esmurrar meu peito e deitar a cabeça ao meu ombro aos prantos. As pessoas apareceram e se reuniam interrogativas ao redor, nem tinha tempo de me explicar direito, não sei se me acusavam ou se compreendiam o que estava ocorrendo. Havia uma hostilidade no ar. Para minha salvação, ela se recompôs e era a atriz Nash Laila a me dizer: Tanta coisa… A gente está vivendo um momento muito sensível. O mundo está muito caretão. A gente tem que quebrar tudo, para ter um pouco de afeto. No nosso trabalho, mexemos com fogo. Gente é uma coisa que amo e odeio. Admirado fiquei com sua desenvoltura. Era como se ela atuasse na Valsa nº 6, do Nelson Rodrigues. Cada vez mais não sabia o que fazer. À minha cabeça cenas, frases, desencontros, tudo desconexo, mal conseguia fazer uma leitura do momento. O que sei, melhor dizendo, quem tem o amor ao alcance, tem outra chance de ouvir todos os seus sentimentos para a pluralidade real da vida. O amor ainda faz sentido hoje?

 


Veja mais aqui.

 

ANNE CARSON, MEL ROBBINS, COLLEEN HOUCK & LEITURA NA ESCOLA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2024), da premiada violonista Gabriele Leite , que possui mestrado em...