DITOS & DESDITOS - O que eu sei é que somos
trágicos. Os deuses escolheram assim. Somos todos uma brincadeira deles,
marionetes que envelhecem rápido demais, uma experienciazinha carnal - de modo
que não lhes interessa a parcimônia: criam uns num caldo de fúria e outros na
doçura total. Pensamento da
escritora e roteirista Letícia
Wierzchowski, autora da obra A casa das sete
mulheres (Record, 2005).
ALGUÉM FALOU: Você faz suas escolhas, e suas escolhas fazem você. Pensamento da escritora estadunidense Gayle Forman.
A DOR DA TORTURA – Fizeram de tudo comigo: cadeira do dragão, pau de arara,
telefone, palmatória, choque elétrico na vagina, nos seios, nos braços,
nas orelhas. No pau de arara, a gente ficava pendurado pelas pernas, feito
um peru no pau, num forno. Na cadeira do dragão, jogavam água fria e
depois davam choque. Havia também um tipo de corredor em que andávamos
vestindo um capuz. Não sabíamos onde estávamos, e as paredes eram todas
úmidas. A sensação era de que a gente estava dentro de um túnel, indo cada
vez mais fundo, mas não sabia onde ia parar. A gente não sabia se era dia
ou noite. Enquanto isso, eles gritavam para contar logo, ‘se não, não vai
sair daqui’. Ao mesmo tempo, ouviam-se os gemidos das pessoas, que não
sabíamos de onde vinham. Nessas horas, o lado moral pesa mais que o
físico. Por conta das torturas nas orelhas, fiquei com problemas no
ouvido. Aí, me levaram para o Hospital Militar, mas lá eu não sabia se ia
ser atendida direito ou não. Para me torturar, disseram: ‘Ela vai ser
operada’, sendo que eu não tinha do que ser operada. Era uma forma de me
agredir. Havia também as ameaças de morte, xingamentos, como ‘sua puta,
por que está metida nisso?’. O fato de estarmos sempre com a mesma roupa
também era uma violência. Não tínhamos condições de trocar, então a gente
ficava se sentindo mal, suja, o que é feito de propósito para ver se a
gente entregava alguma coisa para poder ir embora. Como sequela, a gente
passa anos sentindo aquela mesma sensação vivenciada. Quando fazia frio,
eu sentia a sensação dos fios nos dedos ou a picada do choque no seio, na
vagina… Depoimento
da servidora pública Elza Lobo, quando da sua prisão em 10 de novembro de 1969,
em São Paulo. Veja mais aqui, aqui e aqui.
O RETRATO PROFÉTICO – [...] Nos primeiros dias, quando eu era ainda mais
pobre do que sou agora, fiz todo o possível para conhecer jovens e pobres
pintores desde cedo e induzi-los a fazer meu retrato, e na maioria das vezes
consegui que me dessem, o tempo acabou. [...] Parece-me que dei um pouco de minha alma a cada um dos meus duplos de
tecido e cor e que fiquei com uma alma empobrecida e entorpecida. Existem
perfis sanguíneos quase esboçados ao meu redor, sob o vidro; pastéis em grandes
molduras brancas; desenhos coloridos e grandes telas pintadas a óleo. E me vejo
lá de novo, em todas as posições e em todas as medidas: um jovem estúpido, de
perfil; O rosto elegíaco de um poeta em um fundo desbotado de pedras azuis; a
carranca satânica de um polemista com rosto ansioso e olhos alterados dentro de
um céu todo negro; barrigudo, bom homem, com bochechas um tanto vermelhas e
bigodes louros; jovem pálido e cansado, descansando a cabeça romanticamente em
uma das mãos; Máscara emaciada e fantasmagórica, sem pescoço nem busto, como
uma aparição na boca de uma caverna. E eu sou sempre eu, e sempre diferente, e
só eu: com bigodes e sem bigodes, com óculos e sem óculos, doente ou de boa
saúde, feroz ou abatido. [...] Depois de uma hora e meia de sessão, ele
cobriu a pintura e não queria que eu olhasse o que ele havia feito. Voltei na
manhã seguinte e na manhã seguinte também. Com os mesmos gestos e o mesmo
mistério, o trabalho continuou. Na quarta manhã, fiquei sentado por um período
muito curto. "Eu preciso dos olhos", disse ele. Dê a impressão de que
você tem um inimigo à sua frente que está prestes a derrotar com sarcasmo. Tentei
obedecê-lo e, depois de um quarto de hora, ele anunciou: -Está feito. Venha
ver. Pulei da cadeira e corri para o retrato. O tecido não era todo coberto de
cor. No centro dava para ver, olhando um pouco longe, um rosto que certamente
não era o meu. Duas mechas de cabelo avermelhado se destacavam em uma testa
quase verde; uma mancha preta à esquerda deve ter representado um olho; o outro
olho era feito de pequenas manchas verdes e roxas entre uma mancha branca maior
e uma sombra preta embaixo. O nariz era bastante semelhante, mas a boca era
feita de duas bolhas arqueadas de sangue e uma fileira de dentes enormes. Sob o
queixo, um colarinho branco sujo e uma gravata marrom que eu nunca usei. O
vestido se perdeu em uma confusão de preto fuliginoso. Ao redor da cabeça, grandes
faixas fantásticas de verde, vermelho vinho e violeta aguado. -Que tal? disse
Hartling, sorrindo com prazer. Você não acha que minha pintura é a mais
original? É que não me preocupei em pintar seu rosto, mas em deter um momento
de seu espírito por toda a eternidade. Pedi tempo para ver melhor. Finalmente,
quando a olhei em todos os lugares e de todas as distâncias, fiquei convencido
de que nunca tinha visto uma traição tão grotesca. Não havia nada de mim lá. [...]
“É
preciso viver dentro dele, estar perto, vê-lo de novo”, concluiu. Este trabalho
é tão original que nem sei como o poderia fazer. [...] O terror de tal novo encontro só era comparável ao da redescoberta do
retrato profético. Desde aquele dia, tenho dito não a todos os pintores que
pediram para me retratar. Trechos do conto do escritor italiano Giovanni Papini (1881-1956). Veja mais aqui.
VER, NÃO SABER – Queria ter a força de uma
janela: e então olharia "para fora" com olhos bem abertos e ainda
pacientes, enquadrados na moldura de madeira, olhos de janela. Olhos nem fora
nem dentro, mas exatamente na jornada. E diante de tais olhos se mostrariam
coisas intactas, preservadas da violência do olhar de uma pessoa, cada uma.
Eles iriam encontrar sua visibilidade. Ele usou a palavra Ver: Olho! Ver as
primeiras coisas pela primeira vez (cada vez pela primeira vez) era sua
esperança e sua dificuldade. É um trabalho, uma insistência e uma paixão.
Sempre exigiu a extrema lentidão de uma vigilância e a extrema rapidez de
iluminação: ela queria ver o dia e o momento em que o dia daria à luz a noite.
Para ter uma visão melhor, ele olhou pelo buraco na lona da tenda. Focar não
era mais segredos para ela. Só pelo buraco da fechadura você pode ver a sala
como se você não estivesse lá. Você tem que inventar o ponto de vista mais
puro: ver na sua própria ausência. Veja como Deus vê. Uma curiosidade sublime
levou-a a se distanciar para respeitar melhor. Ele tentou desfazer todas as
tentações de apropriação, de relacionamento. Invente o visual. Aquilo que não
era o seu próprio olhar, nem o olhar de uma mulher. Ela queria o próximo sem
ela. A coexistência de sujeitos livres. Ele tirou do cavalo um ponto de vista
sobre um milharal. E a vaca olha com dois pontos de vista opostos ao mesmo
tempo. Muitas vezes mudava de ponto de vista, era uma dança, uma forma de ir de
dentro para fora, de um lado para o outro, do pessoal para o impessoal, do
masculino para o feminino, olhando com todos os olhos na direção do mundo. Sem
esquecer o ponto de vista de um farol. À força de tanto e tão bonito e de se emprestar
sem suspeita à possibilidade de uma Chegada, de tanto exercer seu ser em
submissão ao mundo, as coisas vieram pela primeira vez. Ela viu. Ele estava
fazendo uma descoberta: ser. Nu Ele testemunhou muitas aparições. E quando eles
surgiram no horizonte e fizeram sua presença conhecida, ela os viu. E a cada
vez era o exercício do verbo to be: the chair is. Foi a primeira cadeira. Era
uma vez uma menina. Com chapéu. A garota estava. Um chapéu estava meio torto na
cabeça. Nunca houve tantos começos. Com os olhos de uma vaca ou com o ponto de
vista de um farol, ela viu o primeiro grau das coisas. Depois do início, porém,
seguiu-se um pouco de duração: ela conseguiu, como que a pedido, manter as
coisas, por um momento, presentes. O instante foi curto e profundo, e foi
deslumbrante. Durante o pedaço de presente suspenso nos cílios, deu tempo à
visão: viu um esquilo, um tubo de borracha, um cabo elétrico enrolado em um
ferro, um cego mascando chiclete, parado no ponto de ônibus. Algumas visões
devastaram sua vida doméstica e a projetaram perdida na selva. Tudo foi triunfo
e superação. Ela viu o um e o todo, o finito e o infinito. Ela foi o resultado
de ter nascido duas vezes em pouco tempo, uma em um continente, nascimento
retido por dois meses para renascer em outro continente, nascido duas vezes de
uma jornada lenta e difícil, para finalmente chegar à língua brasileira. Então
ele continuou falando em sua própria língua com um ligeiro atraso. O que deu a
ele ter sempre aquela sorte e aquele estrangeiro: ele adotou o brasileiro, ele
o descobriu novo a cada frase. Ele sempre parecia ter saltado de um trem no
meio da noite em Recife. Era uma rua longa e desconhecida, a língua em que os
apocalipses a aguardavam. Então, como uma eterna recém-chegada, ela foi surpreendida,
cambaleou, desajeitada voluntariamente, causando confusão, colisões, quebrando
ovos, colocando a língua para fora daquele mundo, graças a uma agilidade
metonímica maravilhosa, os efeitos das elipses e asyndenton que sobrevoam seus
textos. Uma urgência perpassa todas as desculpas e circunlóquios. Move-se em
parataxes, por iminências. Tudo é tão esporádico; uma pessoa, uma vida, um
país, recém-nascido e já levado para outro lugar, é escrito com pressa. Andando
em deslizamentos de terra semânticos: escrevendo o que se dissipa. Isso vai se
dissipar. No meio da noite: um ovo. O objeto apocalíptico pessoal era um ovo. É
ainda mais difícil ver a revelação do ovo do que ver o que São João viu. O ovo
não tem rodas inflamadas com asas de águia vermelha presas aos quatro lados. O
pobre homem, o ovo, é mais forte que o poeta e mais forte que a galinha, mas a
galinha não sabe disso. Eu queria ser uma galinha que não sabia. Mas ela, a
mulher que queria ser aquela galinha, sabia apesar de si mesma que sabia e não
sabia. Ela era uma mulher, mas não exatamente, ela era uma mulher com. Com o
homem, com-contra-sem homem ou cavalo ou máquina de escrever. Mas a mãe estava,
absolutamente, na grande solidão das mães verdadeiras: mãe. Madeira. Bruto.
Grande. Primitivo. Ela era uma agente que lutava com o anjo para fazê-lo
pronunciar seu nome, e na luta era o anjo também, o anjo da angústia e o anjo
da calma. Paradoxal Com o lado de fora de uma janela aberta, ele sabia que ela
não era a "autora" autorizada de seus livros. Seus livros eram
tempestades que passavam por cima de sua pessoa, cruzavam-na, eram mais livres
do que ela. Ela estava humildemente tentando copiar o livro que estava em cima
dela; é aquela escrita: ele é mais forte do que eu, eu sou mais forte do que
eu. Esse livro é o resultado da tensão entre ele e eu, entre acima e abaixo,
dentro e fora, liberdade e medo. E essa primeira frase, sintaticamente,
gramaticalmente, impossível. Aquele eu - aquele que foi solicitado e entregue.
Assim que você pede liberdade, você a consegue. Uma súplica se cumpre por si
mesma, o que não impede o medo. A esperança está cheia de desespero e o
desespero de esperança. Não existe liberdade livre, existe medo, liberdade com
medo, o medo como um sintoma de liberdade. Eu me coloco mais acima de mim
mesmo, é uma aventura insustentável, eu me supero, é a grandeza humana mas é
aterrorizante: você tem que optar por um pronome pessoal sujeito:
"eu" e o outro ao mesmo tempo, um ele, ou um tu, porque onde sopra o
vento mais forte tens a sensação de estar tão perto da loucura. Então, para não
se afundar na surra de si mesma, ela inventa: a mão. Em paixão. Dê-me sua mão, grite. E ela aperta as mãos. É preciso
ter reflexividade para caminhar no abismo. Você precisa de um Se . Deixe tocar. Que seja mantido.
Esta mão da paixão é outra mão, a que escreve. Uma mulher cega tateia. O outro
empunha um cajado profético. Não pergunte por que e como, porque ela não sabe.
Conhecendo limites, limites. Parar. Ela escreve pesquisando. Cada vez que
escrevia, ocorria uma separação de si mesma, ela não estava familiarizada
consigo mesma, tanto que poderia até ser substituída por um homem. Uma barba
pode crescer na noite da escrita. Escrever escreve sempre sem saber - não
ignorando ou querendo ignorar, pelo contrário: querer descobrir com a ajuda da
linguagem muito poderosa, o segredo. Mas é impossível. A escrita será sempre
aquela mistura de palavras e segredos. Você nunca possuirá o segredo. Mas ela
vive dele. Uma atividade misteriosa e poderosa produz as condições de refúgio
para aquilo que busca. A língua de galinha é feita para ser o lugar do ovo.
Pode ser usado, mas é tão forte que nem sabe que está sendo usado. Ele não sabe
o que o ovo está com ele.Se ele soubesse que tinha um ovo, ele se salvaria, mas
como uma galinha - ele se salvaria como uma mulher, ele se conheceria como uma
galinha, ele ganharia uma mulher e secretamente perderia sua inocência e
liberdade. Não saber, não saber bem, é o que acontece nas entrelinhas e o que
mantém o segredo vivo. Se eles soubessem, não escreveríamos. Se você perguntar
por que como (ela escreve), a resposta é: é um mandato. Ela obedece. Quanto aos insiders. Mas ela não
poderia viver sem um cachorro. Em outras palavras, sem seu mistério de amor, um
mistério escondido e fofinho. Sem sua filosofia sem palavras. Ela não poderia
ter vivido sem seu próximo reino, o animal. Somente as pessoas iniciadas na
animalidade serão capazes de rastrear seu pensamento amoroso. Ela queria amar
como se vê: sem possuir, aproximando-se. Como a galinha ama sem conhecer o ovo.
Abstrato, abstraído. Mas é mais fácil para a galinha amar distraidamente (o
ovo) do que para a mãe amar bem o filho. Porque a mãe pensou "meu
filho" no primeiro dia. Então é necessário dissolver o possessivo. Se a
mãe for boa, ou seja, iniciada, ela olhará para o filho com um olhar indireto
de respeito; um olhar vazio, o olhar de uma janela ou de uma vaca ruminando o
mistério da maternidade. Lá fora, o menino come uma bolacha de chocolate. A mãe
vê. Ele sente que sua mãe material vê: uma criança que não tem olhos além de
seu sorvete. Nem todo mundo tem a capacidade de ser mãe estrangeira, tanto mais
mãe quanto mais estrangeira. A mãe não pesa mais que leve. Dê banho na criança
sem tocar - tomar. Luz de bênção. Silencioso diz: entendo. Ele não toca, ele
usa o toque: como o amor é indireto. Eu coloco minha mão no tronco da árvore em
que sua mão está apoiada. A árvore atua como um terceiro. Metonímia era sua
magia delicada. É adotar e se deixar ser adotado. Sempre mantendo a opção
possível: a escolha. Amar uma criança como se ama um cachorro encontrado e um
cachorro como uma criança encontrada, receber o outro como uma graça, o outro
como qualquer outro. Ele é um cachorro que não se parece com ele. Não me falas
na minha língua, não és do meu sangue, mas falamos o mesmo silêncio e o teu
mistério olha o meu mistério diretamente nos olhos com um olhar límpido. Uma
vez a vimos transformada em um macaquinho. Uma imitação circulou nela e em suas
possibilidades animais. Segundo ela, ele nasceu para galopar e pisar forte. Certa
vez, ele quis se aproximar do homem mais solitário do mundo por ter trazido o
amor de uma criança a Deus. Ela queria acompanhar Abraão ao Monte Moria, onde
acontece o sacrifício do ovo e da galinha. Mas como pode uma pessoa fingir
compartilhar a solidão absoluta de alguém que é tão extremamente humano que
pode responder a Deus face a face? É impossível. Então a bunda está acabada.
Ele trotou ao lado daquele homem que subia mais alto do que ele livremente e
sem medo. Tudo lá em cima era absoluto. O céu: absoluto. A luz: absoluta. Vida:
absoluta. Morte: desconhecida. Ele sempre sonhou em saltar do conhecido para o
desconhecido. Então, do desconhecido para o conhecido. Certamente foi o que ele
fez. O burro morreu de alegria. Ela morreu pela primeira vez acima de toda a
humanidade. Então ele desceu a montanha para morrer novamente diante de
testemunhas. Para finalizar? Nunca houve um fim. A janela do livro estava
fechando. Um dos galos em seu zoológico clamava pelo dia. Ele sempre tinha
tempo para pular na noite seguinte. Então veio:.. Poema da escritora francesa Hélène Cixous. Veja mais aqui e aqui.