TODO
DIA É DIA DA MULHER: AS SOMBRAS DE GILVANÍCILA - Suetônio muito se esforçou doando de si uma
dedicação exclusiva para se estruturar na vida, almejando dispor à Deusdith, a
menina dos seus olhos, todo amor e condição de vida. Assim foi, anos a fio,
para, enfim, contrair núpcias e viverem, no seu ideal, felizes para sempre.
Casa montada com tudo do bom e do melhor, o idílio expansivo dos amantes
reinando além das dimensões deles, tudo mais que mar de rosa na vigência da
paixão. Assim foram por três anos que se passaram nas nuvens, chegando a
notícia de que o irmão dele, Susdidido, há anos no Iraque, estaria de passando
por ali de férias. Momento mais que propício para mostrar a felicidade do
casal. Assim foi e ele preparou o quarto de hóspedes com uma festa de recepção
para o mano. Abraços emotivos, saudades vingadas, Susdidido já pegava as malas
para ir pum hotel, não admitido pelo irmão que insistiu ficasse ali na casa
deles: - Aqui é a sua casa! Ali ficaram os três por dias e noites de muito
calor humano e conversas longas noite adentro, só interrompida para Suetônio
descansar do trampo que lhe exigia o dia seguinte. Enquanto isso, Deusdith e o
irmão tagarelavam madrugada adentro até o raiar do sol. Findando as férias,
hora do retorno e o irmão recebe a informação de que fora dispensado da
empreiteira, não mais tendo que voltar pro estrangeiro. Irmão abatido, Suetônio
entusiasmado, findou exigindo morar ali mesmo com eles. E assim foi, ao cabo de
meses depois, Deusdith aparece grávida. Notícia mais que alvissareira para
premiar o casal. Todavia, o que seria pra ser uma festa, não era: dava-se início
a uma intranquila situação, daquelas bastante difíceis. Ela não sabia, Suetônio
era estéril. Momento delicado. Coração bom, ele fez por menos, de nada
acontecido. Meses de gestação todo de cuidado extremo, até o rebento: nascia
Gilvanícila! Suetônio encheu-se de felicidades, dedicando pra ela todo seu mais
extremado afeto: - Essa a minha filha! E assim foi, nvolveu a menina com
carinhos e mimos, assistindo-lhe e fazendo tudo que ela pedisse ou quisesse. A menina
crescia e Deusdith enciumava, adquirindo pela menina um ódio oculto e mortal. Quanto
mais a criança crescia e se aformoseava, maior o desgosto dela. Susdidido cada
vez mais acabrunhado, se escondendo, preferindo morar nos quartos do fundo do
quintal para não ter que atrapalhar a felicidade do irmão. A menina gostava
dele e, quando ela invadia seus aposentos, não perdia a oportunidade de abraça-la
e senti-la no seu mais profundo acorçoo. Aquele abraço alimentava nele um
sentimento além dos seus domínios, sobrepujando a frustração pelo insucesso na
busca por empregos e a manutenção da condição de desempregado. Dependia ele da bondade
do irmão para viver e ter um teto. Era todo grato e, inversamente proporcionar,
era a inveja que crescia dentro dele por ver o casal feliz estruturado, com uma
filha lindíssima. O que ele está fazendo ali? A vida prega peças. Abandonado,
retraído, apenas sobrevivendo da filantropia do irmão que estava acima de
qualquer situação. Revoltava-se consigo mesmo, sentiu-se um intruso, deprimido
a ponto de perder a razão, tomar uma insana vontade de vingar-se, ao mesmo
tempo, que se condenava pelo insucesso. E a cada chegada da visita da menina, a
felicidade era tanta dele ser tomado por uma excitação que lhe remexia as
entranhas e ser acometido por uma volúpia incontrolável que o tomava por
completo. Dias e mais dias se martirizando por isso, quando num acesso de
loucura, a menina chega braços abertos, envolvente, a felicidade ali pronta, ao
seu dispor, até que, incontrolável de alegria, finda por abusá-la sexualmente.
Deusdith acode aos gritos da menina e o enxota de casa. Quando Suetônio recebe
a notícia de que a menina fora violentada pelo irmão e estava hospitalizada,
não se conteve e caiu num desgosto profundo, não resistindo a mais essa
fatalidade. Fora ali mesmo surpreendido por uma dor no peito, finando na hora. Deusdith
enviuvara e fora tentada várias vezes por Susdidido, ao que ela negou qualquer
possibilidade de novo envolvimento. Com a fortuna deixada pelo marido, ela pôde
viver tranquilamente e encaminhar Gilvanícila para a casa dos avós para ser
criada, vez que ela não aguentava aquela afronta em riste. Gilvanícila fora, a
partir de então, criada pelo amor dos avós maternos, sempre perguntando pela
mãe que a evitava, não quisera mais vê-la. Todas as noites as sombras da cena
do estupro atormentavam seu sono, precisando, sempre, do apoio dos avós atentos
aos seus pesadelos. O avô, mais atencioso, falecera algum tempo depois.
Seguindo-se a avó, no ano seguinte. Gilvanícila viu-se só, apesar de possuidora
de uma fortuna invejável deixada pelos avós, a solidão era maior. Procurou a
mãe, não foi recebida. Insistiu e quando deu de cara com ela, recebeu a mais
fria palavra materna: - Você não existe pra mim, você não é minha filha, me
deixe em paz. Ainda hoje Gilvanícila tenta sobreviver aos pesadelos da infância
e a implacável ausência da mãe que falecera anteontem sem um aceno ou afeto. (Luiz
Alberto Machado).
Veja mais aqui.
PICADINHO
Imagem: Nua, do artista plástico Ângelo Cantú (1881-1955).
Curtindo o dvd Live in Paradise (Roadrunner
Records/8ft Records, 2005), da banda estadunidense The Dresden Dolls,
que desenvolve um estilo cabaré punk brechtiano denominado Cabaré
Dark, formado por Amanda Palmer (vocal e piano) e Brian Viglione (bateria,
guitarra e vocal).
EPÍGRAFE – Panem
et circenses, frase latina recolhida de uma das sátiras do poeta e retórico
romano Juvenal (Décimo Júnio Juvenal – 55-127), que significa
pão e circo, censurando a preocupação da plebe romana com a ociosidade.
Lourenzo de Médici o Magnifico dizia: Pão
e festejos conservam o povo tranquilo. Também o
escritor, dramaturgo e filósofo iluminista francês Voltaire (François Marie Arouet/1694-1778), escreveu em 1870, numa
carta para Mme. Necker que, na França, tinha sido suprimido o pão dos romanos e
conservado o circo, isto é, a Ópera-Cômica. Já o padre Lopes Gama, em uma das edições do periódico O carapuceiro (1837),
comentava assim a situação do Brasil durante a regência: Nós vamos muito mal porque não se tem cuidado em tornar-nos
industriosos e morigerados. Os antigos romanos, quando se corromperam e
relaxaram, só pediam panem et circenses – comer e festanças. Nós hoje só
queremos viver de empregos públicos e que muitos trabalhem para nós
desfrutarmos. Viver da nossa própria indústria é uma ideia que muito nos
desanima. Veja mais aqui e aqui.
HELOISA – A jovem bela e culta Heloisa
de Paráclito (ou de Argenteuil – 1090-1164), sobrinha do cônego Fulber,
contava com dezessete anos quando passou a ser aluna do célebre filósofo e teólogo escolástico
francês Abelardo. Ambos se envolveram em uma paixão carnal, tornando-se
amantes. Ao ficar grávida, ele resolve encerrar sua carreira religiosa e
desposá-la. A família opôs-se ao casamento sentindo-se traída pela confiança
depositada no mestre. O escândalo resultou em maledicências contra Heloisa,
fato que levou os amantes a se casarem secretamente e, posteriormente, nascer o
filho Astrolábio. Como vingança, o cônego contratou sicários para que
castrassem o professor, levando-o a uma vida encerrada num mosteiro. Ela, por
sua vez, resolveu entrar para o convento de Paracleto, em Argenteuil,
tornando-se priora e vivendo na clausura por mais vinte e dois anos, quando
passa a ser uma escritora e erudita abadessa francesa. Com a morte dele, ela o
sepultou, sob a jura de que, quando morresse, fosse enterrada ao lado dele. O túmulo de ambos se encontra no
cemitério de Père-Lachaise, em Paris. A história desse amor está contada no
filme Em nome de Deus (Stealing heaven, 1988). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui
e aqui.
MÁXIMAS
& MÍNIMAS DO BARÃO –
Entre as Máximas e mínimas do barão de Itararé (Record, 1985), do Barão de
Itararé, pseudônimo do jornalista e articulista Apparício Fernando de
Brinkerhoff Torelly (1895-1971), encontro a narrativa O uísque: Eu tinha doze garrafas de uísque na minha adega e
minha mulher me disse para despejar todas na pia, porque se não... - Assim
seja! Seja feita a vossa vontade, disse eu, humildemente. E comecei a
desempenhar, com religiosa obediência, a minha ingrata tarefa. Tirei a rolha da
primeira garrafa è despejei o seu conteúdo na pia, com exceção de um copo, que
bebi. Extraí a rolha da segunda garrafa e procedi da mesma maneira, com exceção
de um copo, que virei. Arranquei a rolha da terceira garrafa e despejei o
uísque na pia, com exceção de um copo, que empinei. Puxei a pia da quarta rolha
e despejei o copo na garrafa, que bebi. Apanhei a quinta rolha da pia, despejei
o copo no resto e bebi a garrafa, por exceção. Agarrei o copo da sexta pia,
puxei o uísque e bebi a garrafa, com exceção da rolha. Tirei a rolha seguinte,
despejei a pia dentro da garrafa, arrolhei o copo e bebi por exceção. Quando
esvaziei todas as garrafas, menos duas, que escondi atrás do banheiro, para
lavar a boca amanhã cedo, resolvi conferir o serviço que tinha feito, de acordo
com as ordens da minha mulher, a quem não gosto de contrariar, pelo mau gênio
que tem. Segurei então a casa com uma mão e com a outra contei direitinho as
garrafas, rolhas, copos e pias, que eram exatamente trinta e nove. Quando a
casa passou mais uma vez pela minha frente, aproveitei para recontar tudo e deu
noventa e três, o que confere, já que todas as coisas no momento estão ao
contrário. Para maior segurança, vou conferir tudo mais uma vez, contando todas
as pias, rolhas, banheiros, copos, casas e garrafas, menos aquelas duas que
escondi e acho que não vão chegar até amanhã, porque estou com uma sede louca... Veja mais
aqui.
MEU
POEMA – Entre os poemas
da poeta e professora Claudia Pastore,
destaco o seu Meu poema: Cada vez mais e
mais / Eu te vejo mais / Orgânico / Mais azul / Quisera saber / O porquê / A
razão / Me destes a cor / és todo azul / Azul que incendeia / Azul que inebria
/ Azul que mete medo / Não és o mar / Tão pouco o céu / Lugares-comuns / Pra um
azul / Tão azul / És um azul inteiro / Um azul que tenho / Tinteiro que jorra /
E que cai pelo ar / Calor que conduz / Sangue pisado / Difícil e doce / Mormaço
melaço / És a poesia / Que fala do azul / E que não encontra / No azul / O
todo-você / Que é assim / Só pra mim / Azul / Ao sul / Do meu ser / Azul / Que
passa / Brilhando / Por todo o meu corpo / Mas todo, inteirinho... / O meu
corpo nu. Veja mais aqui, aqui e aqui.
A
DIVINA MELPOMÈNE –
Chamada por Voltaire como a Divina Melpomène, a atriz francesa Claire-Leris Josephus, que adotou o pseudônimo de Mademoiselle
Clairon, e atendendo pelo apelido da mãe Bugle (1723-1803), foi uma
das maiores atrizes do seu tempo. Registrada em suas memórias, ela relata o
abuso da mãe que a queria por costureira, fugindo de casa para entrar no
teatro. começou na Comédia-Italienne, em 1736, com a idade de treze anos, sendo
contratada um ano depois no em Rouen, onde permaneceu e se envolveu com um
pretendente que, posteriormente desprezou e que ele, por vingança, publicou um
panfleto rude contando a sua vida e costumes íntimos. Ela se muda e vai para a
Comédie-francesa, em 1743, estreando como Phaedra, de Jean Racine, obtendo
sucesso. Por conta disso, tornou-se rival implacável da Mademoiselle Dumesnil,
nascendo uma rivalidade sem precedentes, sendo presa após uma conspiração entre
atores. Retorna ao teatro em 1770, para representar Hipermmnestra, de Lemierre,
na corte. Escreveu um livro sobre a liberdade da França, envolvendo-se com o
conde de Valbelle, em 1773, até vê-se envolvida por um jovem perdidamente
apaixonado por ela, levando-a para seu principado. Retorna à Paris, na véspera
da revolução, afundada na miséria. Veja mais aqui.
O
DESESPERO DE VERONIKA VOSS
– O premiado drama O desespero de
Veronika Voss (Die Sehnsucht der
Veronika Voss, 1982), do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder
(1945-1982), é baseado livremente na carreira da atriz Sybille Schmitz por de
uma história que ocorre numa cidade alemã no ano de 1955, em que uma ex-estrela
de cinema é protegida pelos nazistas e que sofre com a interrupção da carreira
pela derrota do regime após o término da Segunda Guerra Mundial. Viciando-se em
morfina, envolvendo-se com um jornalista que, durante o namoro, procura
investigar a razão do seu internamento, sem saber que está colocando-a num
perigo mortal. O destaque do filme é para a atriz alemã Rosel Zech (1942-2011). Veja mais aqui, aqui e aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte de Demócrito Borges. Veja mais aqui.
DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada à cantora,
compositora & educadora Isabela
Morais & Brisas da Isa (foto: Fernando Lemos).
E veja mais Tolinho & Bestinha, Emmanuelle
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