TODO
DIA É DIA DA MULHER: AS DUAS MORTES DE MARIA ZEZÉ - Dona Maria Zezé, setenta anos,
independente, altiva, morava com o netinho e mais ninguém: não aguentava mais
baforada de natureza alguma na sua vida. Usava de peito lavado o direito de ir
e vir como bem entendesse. Sua vida era cuidar do netinho, comprar isso ou
aquilo, ir pro culto de sua crença e fazer o que bem entendesse. Eis que, um
dia, foi no centro da cidade fazer um exame de rotina, exigência da
aposentadoria. Concluído, era hora de voltar pra casa, tudo certo. Na hora de subir
pro ônibus, desatenção do motorista que fechou-lhe a porta, levou uma queda,
fraturou o fêmur. Logo apareceu um moto-repórter que passou a informação para
emissoras de rádio e, pouco depois, uma ambulância pública levou às pressas das
sirenes pruma unidade hospitalar. Lá o médico desaprovou: - Não tenho como
operá-la por um bom tempo! Asmática, sofrendo de osteoporose e labirintite,
pressão arterial baixíssima. Vamos primeiro recuperá-la. Depois, cirurgia. E
saiu. A enfermeira ouviu atenta e acompanhou as dores de Dona Zezé. Quase três
meses depois, o médico foi fazer a primeira tentativa. Deu certo. Quinze dias
depois, em casa: só que com um balão de oxigênio. Ela não conseguia mais
respirar normalmente. Resultado: num desequilíbrio ao se levantar, caiu por
cima do balão. Fraturou o fêmur da outra perna. Um vizinho de boa alma acudiu
suas dores e foi pro hospital: foi barrado, não temos leito. E agora? Foi pra
outro: nada de leito. Mais outro: não há leito. O coitado botou as mãos à
cabeça quando ela, ainda se contorcendo em dores, lembrou que na casa dela
tinha o telefone do médico que a operou anteriormente. Assim fizeram e voltaram
todo caminho. Encontrado o número do telefone tentaram uma, duas, três e, na
quarta tentativa, o médico atendeu e mandou que a levassem para o hospital
informado. Chegando lá: – Mas D. Zezé, a senhora aqui de novo? -, perguntou-lhe
o médico. – Vamos esperar um bom tempo até a sua pressão normalizar para uma
nova cirurgia. Quase quatro meses depois, o médico fez a segunda cirurgia. Mas
ela quase não sai do leito, não volta pra essa. Inspirando cuidados, saiu da
mesa de cirurgia direto para UTI. E lá ficou mais uns bons três meses. Até o
dia que o médico falou pros familiares: - Dona Maria faleceu, podem
providenciar o sepultamento. O chororô foi grande, trataram logo de avisar aos
demais familiares e providenciar o sepultamento numa cidade do interior.
Família grande de passar a noite ligando pra um e pra outro, definindo local e
horário do enterro. O dia amanheceu e quando foram com a funerária fazer os
preparativos do corpo, havia sumido. – Cadê minha mãe? -, gritou a filha. Oxe,
foi o maior corre-corre no hospital. O corpo havia sumido. Horas e horas
catando dona Maria Zezé que havia desaparecido. Como pode? Será que ela reviveu
e zarpou dali? Do jeito que ela era, do gênio dela, não era nada difícil. A
hora se passando, uma, duas, três, chegou a hora do enterro e nada de darem
cabo do corpo dela. O povo no interior apinhado em frente ao prédio onde
aguardavam o féretro, já estava todo em clima de tensão e nervosismo, e nada dela
aparecer. Os familiares começaram a ligar do interior para saber o que estava
havendo. – Ué, o corpo dela sumiu! Uma bomba. Será que foi sequestrada? Ou ela
aprontava mais uma pra cima dos parentes? Nada. No meio da tarde aparece uma
enfermeira chamando os familiares para verificarem algo que ela encontrou: lá
no fundo da UTI, esquecida, Dona Mariz Zezé estava vivinha da silva, reclamando
do abandono. Uma trabalheira medonha para avisar todo mundo que ela fora
encontrada viva na UTI do hospital. Lá se foi o enterro voltando. Começou então
o bate-boca, médico se desculpando, enfermeira revidando, uma bronca. Lá se vão
mais três meses, quase quatro, quando a enfermeira disse tremendo: - Dona Maria
Zezé faleceu. – De verdade? Sim, agora é na vera. Ninguém acreditou, foi
preciso vir a tropa toda do interior – na verdade, de umas cinco cidades do
interior, ela tinha parente como a praga -, para conferir. Agora sim, era
verdade. Quando começaram os preparativos pro enterro se certificaram que ela
não tomava os remédios prescritos e que, enquanto estava sozinha, escrevia
cartas e mais cartas pra cada um dos parentes, achegados ou não, alguns com
desaforos, outros com conselhos e uns tantos com reprimendas das brabas.
Finalmente, numa tarde azul ela foi enterrada da sua segunda morte. (Luiz
Alberto Machado).
Veja mais:
PICADINHO
Imagem: Il nude, do pintor espanhor Rafael Hidalgo de Caviedes.
Curtindo o álbum Rendez-vous (EMI-Capitol, 2004), da atriz e cantora inglesa Jane Birkin. Veja mais aqui, aqui,
aqui, aqui e aqui.
EPÍGRAFE – Les
hommes font les lois, les femmes font les moeurs, verso do primeiro ato da tragédia
O condestável de Bourbon (1775), do
escritor e dramaturgo Jacques-Antoine-Hyppolyte,
Conde Guibert (1743-1790), que tornou-se proverbial: os homens fazem as leis,
as mulheres fazem os costumes. Veja mais aqui.
VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER – No
livro O que é violência contra a mulher?
(Brasiliense, 2001), de Maria Amélia de
Almeida Teles e Monica Melo,
encontro que: [...] O gênero, no entanto,
aborda diferenças sócio-culturais existentes entre os sexos masculino e
feminino, que se traduzem em desigualdades econômicas e políticas, colocando as
mulheres em posição inferior a dos homens nas diferentes áreas da vida humana.
[...] Esse instrumento oferece possibilidades
mais ampla de estudo sobre a mulher, percebendo-a em sua dimensão relacional
com os homens e o poder. Com o uso desse instrumento, pode-se analisar o
fenômeno da discriminação sexual e suas imbricações relativas a classe social.
A violência de gênero pode ser entendida como “violência contra a mulher”,
expressão trazida à tona pelo movimento feminista nos anos 70, por ser esta o
alvo principal da violência de gênero. Enfim, são usadas várias expressões e
todas elas podem ser sinônimos de violência contra a mulher. [...] A violência é uma das mais graves formas de
discriminação em razão de sexo e gênero. Constitui violação dos direitos
humanos e das liberdades essenciais, atingindo a cidadania das mulheres,
impedindo-as de tomar decisões de maneira autônoma e livre, de ir e vir, de
expressar opiniões e desejos, de viver em paz em suas comunidades; direitos
inalienáveis do ser humano. Veja mais aqui.
BERNANDO,
O IMPREVISÍVEL – No
livro Bernardo, o imprevisível (Galo
Branco, 2005), da escritora, tradutora e professora doutora em Letras, Regina Souza Vieira, destaco o trecho: De
volta da lua-de-mel naquele dia, depois de duas semanas de ausência, Bernardo,
logo à chegada, defrontou-se com suas responsabilidades. A correspondência
avolumava-se debaixo da porta e alguns telefonemas tinhas de ser dados
incontinenti. A esposa, desabituada a vê-lo ocupado, exigia a sua companhia,
insistindo para que fossem primeiro ao restaurante ou que abrissem juntos as
malas, onde inúmeras recordações agradáveis esperavam ser revividas. Pouco a
pouco, o que tinha de ser feito se foi organizando até que chegou a hora de
dormir e dar por encerrado o dia cansativo. Para Estela, esta seria, aliás, uma
atitude normal e até instintiva, mas para o marido havia ainda algo importante
para fazer antes de se entregar ao sono: digitar algumas listas ou, quem sabe,
algumas páginas do romance que iniciara poucos antes de casar-se e que havia
deixado sobre a mesa do computador, certamente preocupado em não se esquecer
daquele trabalho [...]. Veja mais aqui e aqui.
ESSE
RIO – No livro Poesia viva de Natal (Capitania das
Artes/Nordestal, 1999), organizado por Manoel Onofre Junior, encontro o poema
Esse rio, da poeta e professora potiguar Diva
Cunha: Esse rio / que atravessa
séculos / não é Grande, nem Pequeno / apenas Potengi no nome / que lhe tiraram,
/ das águas dos índios. / Suas raízes / se foram sólidas / - braços caudalosos
- / não lembram os homens / que vaguearam terras / percorreram linhas / na
busca do começo / que é todo começo de rio / um olho lacrimejante / que aponta
da terra / e escorre / abrindo espaço / entre coxas morenas / que gotejam. /
Margens de um rosto: / rio cavalo / rio peixe / rio dos camarões / onde a
piroga canibal / abria os queixos / triturando contente / carnes portuguesas /
- religiosas ungidas - / carnes batavas / - brancas ferrugentas - /
dessedentadas, enfim / do ouro que / buscavam. / Caldo das raças / que moldando
o rio / por ele foi criada: / a cidade nas dunas / o povo miúdo nos mangues / a
pedra escura do Forte / onde o mar quebra os peitos / em noite de lua alta / e
farta ventania. / Espelho da cidade / - suja, turva - / Rio-lagartixa / da pele
cor de lixa / ofuscado pelo sol / arrastando lerdo na lama / as escamas. /
Fio-de-merda / a escorrer melancólico / para a boca gulosa do mar. / Quem assim
te vê / não sabe da saudade / rio-taba / rio-aldeia / ideia que a memória / te
clareia / em rio / só / água. Veja mais aqui e aqui.
REFLEXÕES
DRAMÁTICAS – Numa
pesquisa sobre a História do Teatro Brasileiro, encontro que o ator e
empresário teatral João Caetano dos
Santos (1808-1853), publicou Reflexões
Dramáticas (1837) e Lições dramáticas
(1862), tornando-se pioneiro na arte teatral brasileira, até então muito
influenciada pela tradição portuguesa. A sua obra Lições dramáticas é um excelente ideário estético da arte
interpretativa, reproduzindo conceitos de Riccoboni, dando mostra de admirável
consciência artística, testemunhada na análise que fez das próprias atuações.
Ao lado da majestade do porte, do magnetismo da personalidade e da extensa
sonoridade da voz, deve-se mencionar o esforço para corrigir os vícios
declamatórios do estilo lusitano da juventude, a fim de aparecer mais simples e
verdadeiro. Veja mais aqui.
BLOOD
SIMPLE – O suspense Blood
Simple (Gosto de Sangue,
1984), dirigido por Joel Coen, conta a história de um dono de bar que desconfia
que a sua mulher o está traindo com um dos seus empregados. Ele decide
contratar um detective para segui-los, e acaba por confirmar as suas suspeitas.
Ele então faz um novo acordo com o detetive, propondo que ele mate a sua esposa
e o amante dela enquanto ele estiver fora da cidade. O destaque do filme é a
premiada atriz estadunidense Frances McDormand. Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA
A arte do desenhista, ilustrador e autor
de histórias em quadrinhos estadunidense Frank
Miller.
DEDICATÓRIA
A edição de hoje – em consonância com a
manifestação da Comunidade Lagoa Manguaba - é dedicada à amiga Deize Messias.
E veja mais Djavan, Carrie-Anne Moss,
Lewis Carroll, Rosa Parks, Friedrich Schelling, Fernando
Fiorese, Paula Rego & muito mais aqui.