O DIÁRIO DA
SOLIDÃO DE ZLATA... - A filha única de um advogado e de uma
engenheira química vivia das aulas de piano e canto coral, jogava tênis no
verão e esqui no inverno. Contava apenas com 11 anos quando começou a escrever
o seu diário em Saravejo, seus anseios e percepções, o seu despreocupado
cotidiano. Quando menos esperava eclodiu a guerra da Bósnia, os horrores da
mais sangrenta depois a da segunda guerra grande. Houve uma debandada geral,
mas seus pais, ao contrário, decidiram ficar juntos. O suprimento de comida ficou
limitado, não havia eletricidade, nem água. A perplexidade de um modo primitivo
de vida que ali ela testemunhava as mortes, desaparecimentos, o medo, o
racionamento e as necessidades: Nunca imaginei que algo assim poderia
acontecer. Como tudo pode mudar em um segundo? A escola em que eu estudava foi
fechada. Lugares que adorava foram destruídos. Pessoas próximas foram feridas
ou mortas. Não conseguia entender o porquê de estarem destruindo as coisas que
eu tanto amava.... O conflito mais se agravava e o seu diário foi
descoberto pela escola. Sua família refugiou-se em Paris. Depois passou uma
temporada na Inglaterra, transferindo-se para Irlanda, morando em Dublin: Escrever
no diário foi um desabafo. Considerava-o um anjo da guarda, um amigo,
companheiro nos momentos difíceis, que não falava, só ouvia... Tudo o
que havia antes da guerra foi tirado de mim e de mais de quatro milhões de
pessoas que viviam na antiga Iugoslávia... No exílio bacharelou-se em
Ciências Humanas na Oxford e fez mestrado em Saúde Pública no Trinity College. Passou
a trabalhar na Casa Anne Frank e na Unicef com os propósitos de propagar a paz:
Uma das coisas que permanecem na minha memória é o som das bombas
explodindo. Até hoje, quando escuto explosões de fogos de artifício, lembro das
situações vivenciadas. A vida é muito frágil... Veja mais abaixo e mais
aqui & aqui.
DITOS &
DESDITOS - Tédio!!! Tiroteio!!! Bombardeios!!! Pessoas sendo mortas!!!
Desespero!!! Fome!!! Miséria!!! Medo!!! Essa é a minha vida! A vida de uma
inocente colegial de onze anos!! Uma colegial sem escola, sem a diversão e a
emoção da escola. Uma criança sem jogos, sem amigos, sem sol, sem pássaros, sem
natureza, sem frutas, sem chocolate ou doces, com apenas um pouco de leite em
pó. Em suma, uma criança sem infância... Pensamento da escritora bósnia e ativista pacifista,
Zlata Filipović, que no seu livro Zlata's Diary: A Child's Life in
Wartime Sarajevo (Penguin, 2006) ela expressa que: […] Parece-me que esta política significa Sérvios, Croatas e
Muçulmanos. Mas eles são todos pessoas. Eles são todos iguais. Todos parecem
pessoas, não há diferença. Todos têm braços, pernas e cabeça, andam e falam,
mas agora há “algo” que quer torná-los diferentes. [...] A guerra não é brincadeira, ao que parece. Destrói, mata,
queima, separa, traz infelicidade. [...] Meu diário tornou-se mais do
que um lugar para registrar acontecimentos diários. Tornou-se um amigo, o papel
que o compunha estava pronto e disposto a aceitar tudo e qualquer coisa que eu
tivesse a dizer. [...]. Ela também
participa do livro The Freedom Writers Diary: How a Teacher and 150 Teens
Used Writing to Change Themselves and the World Around Them (Main Street
Books, 1999), no qual ela expressa: […] Se optarmos por lidar com situações desumanas de uma forma humana,
poderemos mudar o mundo e criar lições positivas para nós próprios e para os
outros. [...]. Em 2008 ela organizou com a inglesa Melanie
Challenger o livro Vozes roubadas: diários de guerra, coletânea de 14
diários escritos por crianças e adolescentes que viveram em áreas de conflito.
ALGUÉM FALOU: Nunca hesite em
ir para longe, além de todos os mares, todas as fronteiras, todos os países,
todas as crenças... Eu não venho de nenhum país, de nenhuma cidade, de nenhuma
tribo. Eu sou o filho da estrada... todas as línguas e todas as orações
pertencem a mim. Mas eu não pertenço a nenhuma delas. A identidade não
pode ser compartimentada; não pode ser dividida em metades ou terços, nem ter
nenhum conjunto de limites claramente definido. Não tenho várias identidades,
tenho apenas uma, feita de todos os elementos que moldaram suas proporções
únicas... Pensamento do escritor libanês Amin Maalouf, que no seu ensaio
livro Killer Identities (Alianza, 2005), expressou que: [...] Só
porque uma realidade é imprecisa, imperceptível e flutuante não significa que
ela não exista [...] As pessoas muitas vezes se veem em termos de qual de suas
lealdades está mais sob ataque. E às vezes, quando uma pessoa não tem forças
para defender essa lealdade, ela a esconde. Depois permanece enterrado nas
profundezas da escuridão, aguardando a sua vingança. Mas quer ele o aceite ou
oculte, proclame-o discretamente ou despreze-o, é com essa lealdade que a
pessoa em questão se identifica. E então, seja por cor, religião, língua ou
classe, invade toda a identidade da pessoa. Outras pessoas que compartilham a
mesma lealdade simpatizam; todos eles se reúnem, unem forças, encorajam uns aos
outros, desafiam “o outro lado”. Para eles, “afirmar a sua identidade” torna-se
inevitavelmente um ato de coragem, de libertação. No meio de qualquer
comunidade que tenha sido ferida surgem naturalmente agitadores… O cenário está
agora montado e a guerra pode começar. Aconteça o que acontecer, “os outros”
terão merecido. […] O que convenientemente chamamos de “loucura
assassina” é a propensão dos nossos semelhantes de se transformarem em
carniceiros quando suspeitam que a sua “tribo” está a ser ameaçada. As emoções
de medo ou insegurança nem sempre obedecem a considerações racionais. Podem ser
exagerados ou até paranóicos; mas quando toda uma população tem medo, estamos a
lidar com a realidade do medo e não com a realidade da ameaça. [...]. É
também autor das obras In the Name of Identity: Violence and the Need to
Belong (1998), Samarkand (1986) e Balthasar's Odyssey (2000).
ESPOLIAÇÃO
URBANA – [...] Trata-se de um conjunto de situações que pode ser
denominado de espoliação urbana: é a somatória de extorsões que se opera pela
inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao
acesso à terra e à moradia apresentam-se como socialmente necessários para a
reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da
exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta desta. [...]. Trecho
extraído da obra Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil
(34, 2009), do cientista político Lúcio Kowarick (1938-2020).

