quarta-feira, julho 14, 2021

GERTRUDE BELL, FLORENCE BASCOM, LILA ZALI & PABLO PORFIRIO

 

 

TRÍPTICO DQP – Reino dos sonhos... - Ao som de Pepperland (George Martin), na interpretação de Robertinho de Recife. - Onde eu estava, outro era o Reino dos Sonhos: não era Pepperland, nem o lago de George Gamow, nem a ilha de Samósata. De nada me valeu o tanto de estudos a respeito das interpretações de Freud. Se havia penetrado o universo de Jung, tive que indagar a mim mesmo: Será aquele do The other side - Die andere Seite (Rowohlt Taschenbuch, 2010), do Alfred Kubin? Só sei entre montanhas, uma Celestial. Tudo o mais é plano, algumas colinas, grandes florestas, um lago, um rio dividindo o território visível. Cruzei alguém: Onde estou? Perla, a terra de Patera. Quem? O extravagante ricaço que aqui chegou em busca de caçar o raríssimo tigre persa. Foi ferido pela fera e curado pelo chefe da tribo nativa, em um rito bizarro e indescritível. Curado, ele se apropriou destas terras, separou do mundo circundante com grande muralha e fortificações poderosas. Aqui é o refúgio para todos os insatisfeitos com a civilização e só uma porta que serve tanto para entrada como saída. É por ali. Se você está aqui, saiba: foi um golpe do destino - só os predestinados aqui chegam. Disse-me e saiu. Fiquei sem saber o que fazer. Foi, então, que dei de cara com a geóloga estadunidense Florence Bascom (1862-1945), que assim se reportou: O fascínio de qualquer busca pela verdade não está na obtenção, que na melhor das hipóteses é considerada muito relativa, mas na busca, onde todos os poderes da mente e do caráter são colocados em ação e absorvidos pela tarefa. Sente-se em contato com algo que é infinito e encontra uma alegria além da expressão em soar o abismo da ciência e os segredos da mente infinita. E lá estava eu outra vez, meu navio a sorte inventa.

 


A dança da morte... - Caminhei a esmo e me deparei com o fechamento de uma companhia de Ballet: a Pacifica. Foram cinquenta anos de atividades e muitos altos e baixos, soube. Havia uma tristeza no ar e esbarrei numa bela mulher. Ela olhou-me com seus olhos consternados. Não sabia, mas logo percebi que estava diante da fundadora e coreógrafa, a bailarina estadunidense Lila Zali (1918- 2003). Depois de um tempo com o olhar perdido nas imediações, virou-se e me falou: Você não pode pensar em fantasias como as pessoas estão fazendo e sobre as luzes e tudo mais e ainda ser capaz de dançar... como dançarina, você tem que ser egoísta; você tem que sempre se concentrar em si mesmo... Nós sobrevivemos perseverando e não cometendo o erro que a maioria das companhias de balé cometem ao começar muito grande... Começamos minúsculos e crescemos muito lentamente. Mas ficou... Senti sua voz embargada, seguiu em frente e o silêncio ficou no vazio de tudo, como se ela ecoasse aos meus ouvidos: Hoje não mais. Nenhum sobrevivente. Vi-me sozinho no meio de um momentâneo deserto, do qual emergia um Grand Guignol, como se enredado no meio do bailado de uma cena do Dracula: Pages from a Virgin's Diary (2002), do diretor canadense Guy Maddin. E a Lucy Westenra que fugia do vampiro cruel era a atriz canadense Tara Birtwhistle estirada no chão. Ao dar pela minha presença ergueu-se com um sedutor pedido de socorro. Eu me sentia o próprio Bram Stoker e logo surgiria Mira na pele da atriz Cindy Marie-Small armada com um crucifixo, desarmando-se ao constatar que eu era de paz. Lá estava eu entre as duas belas, até ser interrompido pela escritora britânica Gertrude Bell (1868-1926): A mais degradante das paixões humanas é o medo da morte... Na luta de mão desesperada para a vida, não há elemento de nobreza... Não tenha medo do trabalho duro. Nada que valha a pena vem facilmente. Não deixe que os outros o desencorajem ou digam que você não pode fazer isso. Na minha época, disseram-me que as mulheres não faziam química. Não vi razão para não podermos... Puxou-me pelo braço e me disse para dormir, era o melhor que eu podia fazer, sem mesmo saber como ou, sei lá. Ela acomodou-se em baixo de uma árvore frondosa e me chamou: Venha, vamos sonhar.

 


O despertar do sonho... - Era manhã e acordei assustado, sozinho. Não me sentia lá muito bem, um pressentimento de que estava revivendo um momento que já passara há muito tempo. Sim, na minha infância, quando soldados armados entravam na minha casa e caçavam pelos quartos, sala, cozinha, quintal, a casa toda e eu não entendia nada na minha inocência de quatro anos de idade. Da primeira vez que investiram, lembro bem, até admirei as botas, as armas, a farda, a marcha... mas com a constância de suas invasões adquiri temor e antipatia: eram bastante hostis. Cresci olhando bem para todos os fardados que cruzavam minha caminhada. Foram mais de longos vinte e tantos anos de muito ódio e treva que deles emanavam. Quando me dei por gente não havia como nutrir mesmo nenhuma simpatia, tanto é que à época do alistamento, eu já havia contraído matrimônio e fui dispensado, graças! Seria o inferno, ou melhor: mais um. Mas por que estou sentindo tudo isso agora? Dei pela presença do historiador Pablo Porfirio que lia trechos do seu livro Medo, comunismo e revolução – Pernambuco 1959-1964 (EdUFPE, 2009): ... Foram localizados, sobretudo, os discursos e as práticas sociais que procuravam racionalizar o perigo e a ameaça do comunismo, identificados nas mobilizações dos trabalhadores rurais, tornando-os uma realidade latente para setores da população. Deste modo, a ideia de perigo, defendida e propagada pelos latifundiários, resultava de um conjunto de esforços coordenados que relacionavam vários aspectos da sociedade e faziam emergir uma real ameaça comunista, que colocaria em risco a família, a religião e a paz social. Sim, já havia me dado conta disso. E? ...Essas ações não resultavam de simples histeria ou mera imaginação. Eram estratégias coordenadas, que integravam a imprensa, as discussões políticas e o cotidiano. Criavam modos de pensar, os quais faziam a ideia de perigo e a ameaça comunista ser aceita como verdadeira por parcelas da sociedade... Um conluio para o horror, eu sei... E? ... desenhar um movimento que contribuiu no estabelecimento e validade da dinâmica de uma ditadura militar... foi instituída e socialmente aceita uma crescente rede social crédula na existência de uma perigosa realidade e no caráter salvador do golpe civil e militar de 1964. Agora entendi o meu pressentimento. O presente aos sobressaltos, tão caro para nossa liberdade, para nossa integridade, tudo por um fio: escândalos, ameaças... Já faz tempo, alguns anos, sei, há muito tempo que decifro essa narrativa golpista, um atrás do outro para roubar a nossa paz, a nossa vida. É preciso prestar bem atenção, estar bem atento, não é só a pandemia a me roubar o sono, o meu o país destroçado. Até mais ver.

 

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HIRONDINA JOSHUA, NNEDI OKORAFOR, ELLIOT ARONSON & MARACATU

  Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som dos álbuns Refúgio (2000), Duas Madrugadas (2005), Eyin Okan (2011), Andata e Ritorno (2014), Retalho...