TRÍPTICO DQP –
Reino dos sonhos... - Ao som de Pepperland (George Martin), na
interpretação de Robertinho de Recife. - Onde eu estava, outro era o Reino dos Sonhos: não era Pepperland, nem o lago de
George Gamow, nem a ilha de Samósata. De nada me valeu o tanto de estudos a respeito das interpretações de Freud. Se havia
penetrado o universo de Jung, tive
que indagar a mim mesmo: Será aquele do The other side - Die andere Seite (Rowohlt
Taschenbuch, 2010), do Alfred Kubin? Só sei entre
montanhas, uma Celestial. Tudo o mais é plano, algumas colinas, grandes
florestas, um lago, um rio dividindo o território visível. Cruzei alguém: Onde
estou? Perla, a terra de Patera. Quem? O extravagante ricaço que aqui chegou em
busca de caçar o raríssimo tigre persa. Foi ferido pela fera e curado pelo
chefe da tribo nativa, em um rito bizarro e indescritível. Curado, ele se
apropriou destas terras, separou do mundo circundante com grande muralha e
fortificações poderosas. Aqui é o refúgio para todos os insatisfeitos com a
civilização e só uma porta que serve tanto para entrada como saída. É por ali. Se
você está aqui, saiba: foi um golpe do destino - só os predestinados aqui
chegam. Disse-me e saiu. Fiquei sem saber o que fazer. Foi, então, que dei de
cara com a geóloga estadunidense Florence Bascom (1862-1945), que
assim se reportou: O fascínio de qualquer
busca pela verdade não está na obtenção, que na melhor das hipóteses é
considerada muito relativa, mas na busca, onde todos os poderes da mente e do
caráter são colocados em ação e absorvidos pela tarefa. Sente-se em contato com
algo que é infinito e encontra uma alegria além da expressão em soar o abismo
da ciência e os segredos da mente infinita. E lá estava eu outra vez, meu
navio a sorte inventa.
A dança da morte... - Caminhei a esmo e me deparei com o
fechamento de uma companhia de Ballet: a Pacifica. Foram cinquenta anos de
atividades e muitos altos e baixos, soube. Havia uma tristeza no ar e esbarrei
numa bela mulher. Ela olhou-me com seus olhos consternados. Não sabia, mas logo
percebi que estava diante da fundadora e coreógrafa, a bailarina estadunidense Lila
Zali (1918- 2003). Depois de um tempo com o olhar perdido nas imediações,
virou-se e me falou: Você não pode pensar
em fantasias como as pessoas estão fazendo e sobre as luzes e tudo mais e ainda
ser capaz de dançar... como
dançarina, você tem que ser egoísta; você tem que sempre se concentrar em si
mesmo... Nós sobrevivemos
perseverando e não cometendo o erro que a maioria das companhias de balé
cometem ao começar muito grande... Começamos
minúsculos e crescemos muito lentamente. Mas ficou... Senti sua voz
embargada, seguiu em frente e o silêncio ficou no vazio de tudo, como se ela ecoasse
aos meus ouvidos: Hoje não mais. Nenhum sobrevivente. Vi-me sozinho no meio de
um momentâneo deserto, do qual emergia um Grand Guignol, como se enredado no
meio do bailado de uma cena do Dracula:
Pages from a Virgin's Diary (2002), do diretor canadense Guy Maddin.
E a Lucy Westenra que fugia do vampiro cruel era a atriz canadense Tara Birtwhistle estirada no chão. Ao dar
pela minha presença ergueu-se com um sedutor pedido de socorro. Eu me sentia o próprio
Bram Stoker e logo surgiria Mira na
pele da atriz Cindy Marie-Small
armada com um crucifixo, desarmando-se ao constatar que eu era de paz. Lá estava
eu entre as duas belas, até ser interrompido pela escritora britânica Gertrude Bell (1868-1926): A mais degradante das paixões humanas é o
medo da morte... Na luta de mão desesperada para a vida, não há elemento de
nobreza... Não tenha medo do trabalho duro. Nada que valha a pena vem facilmente. Não deixe que os outros o desencorajem ou digam que você
não pode fazer isso. Na minha época, disseram-me que as mulheres não faziam
química. Não vi razão para não podermos... Puxou-me pelo braço e me disse para
dormir, era o melhor que eu podia fazer, sem mesmo saber como ou, sei lá. Ela acomodou-se
em baixo de uma árvore frondosa e me chamou: Venha, vamos sonhar.
O despertar do sonho... - Era
manhã e acordei assustado, sozinho. Não me sentia lá muito bem, um pressentimento
de que estava revivendo um momento que já passara há muito tempo. Sim, na minha
infância, quando soldados armados entravam na minha casa e caçavam pelos
quartos, sala, cozinha, quintal, a casa toda e eu não entendia nada na minha
inocência de quatro anos de idade. Da primeira vez que investiram, lembro bem,
até admirei as botas, as armas, a farda, a marcha... mas com a constância de
suas invasões adquiri temor e antipatia: eram bastante hostis. Cresci olhando
bem para todos os fardados que cruzavam minha caminhada. Foram mais de longos
vinte e tantos anos de muito ódio e treva que deles emanavam. Quando me dei por
gente não havia como nutrir mesmo nenhuma simpatia, tanto é que à época do
alistamento, eu já havia contraído matrimônio e fui dispensado, graças! Seria o
inferno, ou melhor: mais um. Mas por que estou sentindo tudo isso agora? Dei pela
presença do historiador Pablo Porfirio
que lia trechos do seu livro Medo,
comunismo e revolução – Pernambuco 1959-1964 (EdUFPE, 2009): ... Foram localizados, sobretudo, os discursos e
as práticas sociais que procuravam racionalizar o perigo e a ameaça do
comunismo, identificados nas mobilizações dos trabalhadores rurais, tornando-os
uma realidade latente para setores da população. Deste modo, a ideia de perigo,
defendida e propagada pelos latifundiários, resultava de um conjunto de
esforços coordenados que relacionavam vários aspectos da sociedade e faziam
emergir uma real ameaça comunista, que colocaria em risco a família, a religião
e a paz social. Sim, já havia me dado conta disso. E? ...Essas ações não resultavam de simples
histeria ou mera imaginação. Eram estratégias coordenadas, que integravam a
imprensa, as discussões políticas e o cotidiano. Criavam modos de pensar, os
quais faziam a ideia de perigo e a ameaça comunista ser aceita como verdadeira
por parcelas da sociedade... Um conluio para o horror, eu sei... E? ... desenhar um movimento que contribuiu no
estabelecimento e validade da dinâmica de uma ditadura militar... foi
instituída e socialmente aceita uma crescente rede social crédula na existência
de uma perigosa realidade e no caráter salvador do golpe civil e militar de
1964. Agora entendi o meu pressentimento. O presente aos sobressaltos, tão
caro para nossa liberdade, para nossa integridade, tudo por um fio: escândalos,
ameaças... Já faz tempo, alguns anos, sei, há muito tempo que decifro essa
narrativa golpista, um atrás do outro para roubar a nossa paz, a nossa vida. É preciso
prestar bem atenção, estar bem atento, não é só a pandemia a me roubar o sono,
o meu o país destroçado. Até mais ver.