TRÍPTICO DQC: JANELONÍRICA
– Ao som da
abertura d’A Louca, do compositor,
maestro e professor Elias Alvares Lobo (1834-1901), com a Orchestra: Orquesta Sinfonica Nacional
da Radio M.E.C., condutor Alceo Bocchino. – Adormeci ainda cedo da
noite e logo um sonho para lá de estranho. Não sei como fui parar num hospital
e sentei-me numa poltrona da sala de espera. Sem perceber fui picado por uma
seringa que fez o mundo girar e eu como se estivesse a bordo de um eritrócito
navegava por correntes sanguíneas. Apareceu uma senhora jovem muito bonita e
vestida à moda oriental. Ela criava palavras de três letras de um alfabeto de
apenas quatro, manipulando todas as combinações possíveis, diante de tabletes
de argila vitrificada. Uma mão me puxou pelo braço e fui conduzido a subir os
degraus de uma escada até chegar ao topo e recepcionado por um homem corpulento
que nunca vi. Vestido de um blazer com o escudo da Universidade de Cambridge, estava
acompanhado de um outro muito desalinhado com seu tênis sem cadarço. Ambos me conduziram
a uma visita pela dupla hélice, o núcleo e os compartimentos citoplasmático. Era
tudo muito estranho. Ao retornar recebi o auxílio de um gigantesco mensageiro para
uma viagem em movimentos brownianos levados pela agitação molecular de
partículas coloidais por um ambiente homogêneo de baixa densidade. Não entendia
nada. E me deparei numa praia de músculos na qual doutos professores dialogavam
estranhos problemas científicos. Maravilhado com o cenário, fui então informado
de que aquela dama oriental que vira anteriormente, nada mais era que a dama
Enzima, na verdade, senhorita DNA polimerase, que presidia a replicação do
código genético. A escada que eu percorri, era dela, a do DNA. Lá me explicaram
que ali era o Lago dos Sonhos, local
onde se cantam fórmulas mágicas que fazem com que as nuvens assumam formas
fantásticas. De fato, ao recitar o estranho cântico, logo se faziam das nuvens
imagens de dinossauros, gliptodontes e pterodátilos às travessuras no céu. Ao
acompanhar os discursos daqueles sábios, uma inhaca me incomodava, fedentina
terrível. Um deles me explicou ser estrume. Sim? Respondeu-me cortesmente que
os bois são animais atômicos que funcionam da mesma maneira que centrais
nucleares de alta performance. E? É que o resíduo é fertilizante e a energia
que usam vem indiretamente do sol por meio das plantas que comem. Ah, tá. Curiosamente
tive outras explicações muito informativas, como, entre outras, a respeito da
matemática da combinação dos genes, coisas que mais pareciam aulas de ciências
do ginasial e colegial, nem lembrava mais. Não sei como retornei são e salvo. Dei
pela presença do físico ucraniano George
Gamow (1904-1968), que apertou forte minha mão com um riso largo e foi me
questionando a respeito da viagem ao lago, se havia gostado ou não, estava
curioso e nem me deixava falar de tão entusiasmado com minha experiência, a
ponto de me informar entre perguntas irrespondíveis e gargalhadas soltas, que
ali era o único do mundo em que é possível se pescar enquanto faz um curso
geral sobre termodinâmica aplicada à biologia. Hem? Ele mais rio. E muito. Foi
logo me presenteando a obra Mr. Tompkin
inside himself, adventures in the new biology (Allen
& Unwin, 1967), dele em parceria com o microbiologista lituano Martynas Yčas (1917-2014). Nossa, que
sonho estranho! Lembrei do Quintana:
Sonhar é acordar-se para dentro. E
foi exatamente isso que me ocorreu. Chaplin
passou e me disse em tom satírico o cochicho: Falar sem aspas, amar sem interrogação, sonhar com reticências, viver
sem ponto final. Mais mordaz ainda foi a inesperada chegada de Shaw: Alguns homens veem as coisas como
são, e dizem 'Por quê?' Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo 'Por que
não?'... Acho que estou ficando louco no meio da minha interminável solidão.
Nisso aparece Anatole France: Para realizar grandes conquistas, devemos
não apenas agir, mas também sonhar; não apenas planejar, mas também acreditar.
Sei, com esses encontros e desencontros, me sinto o sujeito mais perdulário. Nada
não, sei que a vira gira num redemoinho sem fim, não há como escapar: sempre se
volta por onde passou.
A TRAGÉDIA DO HOMEM - Ao som
do The Poem of
Ecstasy, Op. 54 (1905-08), de Alexander Scriabin, played by the Philharmonia Orchestra
and conducted by Esa-Pekka Salonen (2010). - Ela chegou nua ao
amanhecer. Era Eva n’A tragédia do homem
(1860 - Salamandra, 1980), de Imre Madách. Na cena escura ela recitou um trecho da cena II: E embora a luz do céu se apague no alto, aqui
embaixo eu a encontro nos teus olhos: onde mais a encontrar, se não em ti, eu
que devo o meu ser ao teu anseio? Se até o Sol, com seu jorro de luz, para não
ficar só no mundo, pinta a própria imagem no lençol das águas e, alegre de ter
par, com ela brinca, generoso a esquecer que é simplesmente um reflexo da sua
própria luz, que, sem ela, se apagaria logo! Aproximou-se e quase senti sua respiração compassada num trecho da
cena IV ao meu ouvido: Me
esmaga, Faraó, mas me perdoa se a dor do povo não me deixa em paz! Sei muito
bem que sou escrava tua e vivo só para te dar prazer, esquecer tudo o que
existe em redor - grandeza e miséria, ilusão e morte - para ter riso alegre e
beijo ardente. Mas quando o povo, este ser de mil braços. geme lá fora ao
estalar do açoite, eu, filha do povo, e dele arrancada como um pedaço de um
corpo doído, sinto em meu peito o que ele inteiro sofre. Deu uma volta
ao meu redor e na minha nuca sussurrou um trecho da cena V: Na alma da gente há uma voz muito alta: a ambição! No
escravo, ela está dormindo, ou, em tão baixo nível, gera o crime. Mas, provando
o sangue da liberdade, é uma virtude cívica que esplende no que há de mais
digno e mais grandioso. Quando é forte demais, vira-se contra a própria mãe - e
uma das duas morre. Se em teu pai essa voz fosse mais forte e o levasse a trair
a pátria amada, seria a maldição! Rezemos, filho! Deu mais uma volta e
outra como se investigasse minha atenção. Não sei como, ouvi Lúcifer: Não passa o tempo: nós é que mudamos. Sim
e ela já era a atriz húngara Ágnes
Bertalan na adaptação fílmica em animação da peça, Az ember tragédiája (2011), dirigida por Marcell Jankovics. E me envolveu num longuíssimo sonho em que eu
era Adão levado pelo falante Lúcifer numa visita às grandes civilizações do
mundo a questionar sobre o significado da vida. Logo sou o Faraó Djoser que me
apaixono por Eva agora uma escrava, e sou Milcíades conenado à morte, sou
Tancredo iconoclasta, sou Kepler buscando a sabedoria, sou o sanguinário Danton
e desperto entre ideias duradouras e poderosas. Não sou nada diante do penhasco.
E ela, agora Magda Szabó me diz
baixinho: Deus geralmente nos ignorava
quando pedíamos algo, mas invariavelmente concedia o que temíamos. Eu ainda era
bastante jovem, e não tinha pensado sobre isso, quão irracional, quão
imprevisível é a atração entre as pessoas, quão fatal é sua corrente. Então
ela afastou-se e à porta: Vem!
ELA OMNIRIDESCENTE – Imagem: do fotógrafo
japonês Hiroshi Osaka. Curtindo o album Life Goes On (ECM, 2020), de Carla Bley with saxophonist Andy Sheppard and bass
guitarist Steve Swallow. - Ela me leva pela mão e sua nudez reluz na minha gula. Num
canto da sala ela me beija, vira-se de costa e me leva a comprimí-la contra a
parede. Leva a minha ao seu sexo úmido e a outra a acariciar seus seios,
enquanto ela me diz da poeta estadunidense Emma Lazarus (1849-1887): Parece que
sempre tenho uma pequena janela voltada para a vida. Até que sejamos
todos livres, nenhum de nós é livre. A poesia deve ser simples, sensual ou
apaixonada. E mais se contorcia com o meu contato, meu sexo remexendo por
sua carne caudalosa. Sussurrou excitada João Guimarães Rosa: É
preciso sofrer depois de ter sofrido, e amar, e mais amar, depois de ter amado.
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. Felicidade se acha é
em horinhas de descuido. Viver é etecetera. E o amor se fez entrega e
a vida mais que eterna em nós. Até mais ver.
A ARTE DE HERMILA GUEDES
Quero personagens que me transformem. Tive sorte por ter surgido trabalhos maravilhosos para mim. Mas também escolho personagens que me desafiam como atriz. Como não estudei artes cênicas, a minha escola é o trabalho, a maneira como sou conduzida pelos diretores é onde aprendo. Escolho personagens que me desafiam como profissional e como pessoa, que me transformam, que possam acrescentar e com os quais eu possa aprender muita coisa.
A arte
da atriz Hermila Guedes, que
estreou no teatro com a peça A Duquesa dos Cajus (1999) e depois atuou nas peças teatrais: Noite
Feliz (2000); Paixão de Cristo (2001-2005), Meia Sola (2003); Angu de Sangue (2004); e, no ano seguinte, Três Viúvas de Arthur. Atuou em
filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes e daí por
diante vários filmes levaram-na para a televisão, atuando em especiais e
telenovelas da TV Globo. Veja mais aqui e aqui.