TRÍPTICO DQC: JANELÍRICA
– Ao som do Concerto nº 3 in C major,
Op. 26, do Sergei Prokofiev, com a legendária
pianista Martha Argerich e a
Singapore Symphony Orchestra Recorded, regida por Darío Alejandro Ntaca, ao
vivo no Esplanade Concert Hall, Singapore, 2018. - Estava
em um local em que havia apenas uma única porta para entrada e saída. Mal
cheguei e fui recepcionado por uma mulher de beleza misteriosa, vestida numa
túnica transparente de ver-lhe as proporções corporais. Estendeu-me a mão com
um sorriso e disse-me: Você só está aqui porque foi predestinado para essa
honra por nascimento ou golpe do destino. Se você possui a capacidade de sonhar
e de acreditar nele, seja bem-vindo. Assenti e me acompanhou no embarque com uma
caravana até a fronteira. Na alfândega, ela conduziu para um funcionário que me
deu dinheiro e uma passagem de trem para a capital. Ele perguntou-me pela mala
e eu apenas com as mãos abanando. Ela fez um cumprimento para ele e me puxou:
Vamos para Perla! Durante a viagem me explicou que não é permitido ali nada
novo, só se usa o que for de segunda mão. Como eu só tinha a roupa do couro e a
coragem, a minha admissão se deu sem muita burocracia. E foi me contando sobre
as coisas dali, de gente espiritualizada que possui a consciência das inter-relações
de seus mundos individuais e acreditam apenas em seus próprios sonhos. Pude ver
algumas cenas estranhas, como a cópula de um gorila que mordia inexoravelmente
a cabeça de uma submissa e fogosa mulher nua. Mais adiante me deparei com uma
mulher simpática com corpo de caveira e faces, barriga enorme e pernas humanas.
Vi passar The Lady on the Horse, como
também uma mulher nua deitada de quatro e com as ancas empinadas diante de uma
gigantesca cobra com cabeça de tigre. Do outro lado, um cachorro gigante
priápico que encurralava uma jovem donzela nua e indefesa que seria por ele
estuprada. Mais adiante presenciei o estupro de uma camponesa da Morávia,
assistida pela mulher que casou com um elefante e um grupo de homens
estupradores com muitas mulheres nuas numa igreja. Antes que me impressionasse
com o que via, ela, ao meu lado, passou-me um livro, cujo título estava grafado
The other side - Die andere Seite: ein phantastischer Roman (Berlim, 1908), do
ilustrador e escritor austríaco Alfred
Kubin (1877-1959). Folheei e a narrativa era repleta de ilustrações, muitas
delas registrando exatamente todas as cenas que vi durante a viagem. Chegamos,
Florian! Hem? Sou Anna Sand, vamos antes que o estranho continue nos seguindo.
Quem? Vamos realizar nossos sonhos: a liberdade absoluta! Perla? Não, El
Dorado. Um anão nos recepcionou e nos abriu a porta para uma localidade barroca
carregada de bizarrices e devassidão. Vi as faces dela afogueada e apertava
minha mão com se os desejos e vontades desenfreadas acometessem seu ser. Foi
então que explicou ser ali o Reino dos Sonhos, um refúgio para os
insatisfeitos, todas as necessidades materiais são dadas de mãos beijadas,
todas. Esta localidade foi fundada no final de século XIX pelo extravagante
caçador Klaus Patera que, em um confronto com o raríssimo tigre persa, foi
ferido e só curado pelo chefe de uma estranha e rara tribo isolada que praticava
ritos excêntricos e indescritíveis. Foi ele quem construiu Perla e depois
separou seu reino do mundo circundante com uma grande muralha, guarnecido por
fortificações poderosas. Pude perceber pelas paisagens que uma parte território
era montanhosa e, a outra, plana com colinas, grandes florestas, um lago e um
rio. As coisas mudavam a cada passagem, agora tudo se parecia com o cenário do Traumstadt (1973), a versão do livro que
eu levava e que foi dirigido pelo cineasta alemão Johannes Schaaf (1933-2019). Fiquei assustado e logo me percebi
noutro sonho do reino quando ela me chamou de Lobo Negro. Era ela mesma, só que
agora se chamava Jennifer e mudava meu nome vez outra, me tratando também por
Royce. Demorei a entender que ela era uma rebelde prisioneira em busca do amor
e que só o encontrou em mim, o seu captor. Como? Ela então me abraçou com um
beijo irresistível e demorado. Não sei se pelo movimento das pessoas por perto,
ou se algo a fez sair avisando que logo voltaria, me entregando outro livro: Um reino de sonhos (Bertrand Brasil, 2018), da escritora estadunidense Judith McNaught. Comecei a lê-lo sem
perder a noção de que tudo mais mudava ao meu redor. Intrigado com tudo que me
ocorria, a autora deste livro sentou-se ao meu lado, se apresentou e disse: Existirão algumas vezes na sua vida em que
todos os seus instintos lhe dirão para fazer algo, algo que desafia a lógica,
perturba seus planos, e pode parecer loucura para os outros. Quando isso
acontecer, você deve fazê-lo. Ouça seus instintos e ignore tudo o resto. Ignore
a lógica, ignore as probabilidades, ignore as complicações, e apenas vá nessa.
Ela sorriu e saiu sem se despedir. Voltei à leitura e me senti bastante
sonolento. Deveras, cansado de tantas acontecências e da loucura dos sonhos.
LIRISMO & ARMAS DE DESTRUIÇÃO – Ao som
da Symphony nº 1 - Chimera (2006), de Lera Auerbach, witch Düsseldorfer
Symphoniker, conductor John Fiore. - Meus dias foram noites ininterruptas e,
apesar da monstruosidade e do alarido dos horrores, os pássaros cantavam ao
Sol. Isso era raro e maravilhoso para quem só sabia máquinas, buzinas, motores,
ventoinhas, luminosos, pigarros e cuspidas. E o mote era: quem foi, foi; que
não, ficou. Quem voltou, que vá. Senão, não. Tudo fenece ao sabor dos disparos
de armas destrutivas. É o que alerta a matemática, cientista de dados e
escritora estadunidense Cathy O'Neil,
com a publicação do seu livro Weapons of Math Destrution (Crown,
2016): Os
privilegiados são analisados por pessoas; as massas, por máquinas. Algoritmos
sempre funcionam bem para as pessoas que os projetam, mas não sabemos se
funcionam bem para as pessoas-alvo desses algoritmos. Com algoritmos, estamos
tentando transcender o preconceito humano, estamos tentando lançar uma
ferramenta científica. Se eles falham, eles fazem a sociedade entrar em um
ciclo destrutivo, porque eles aumentam progressivamente a desigualdade. É o que
o sociólogo holandês Ruud Koopmans também
considera ao observar no seu Movements
and Media: Selection Processes and Evolutionary Dynamics in the Public Sphere (Theory and Society. 2004), que a
partir das definições de visibilidade, ressonância e legitimidade, ou seja, visibilidade
como extensão da cobertura que os veículos de comunicação de massa dedicam a
determinado tema; ressonância como a capacidade de um tema gerar debate; e
legitimidade como o tema gerando consenso a respeito de si mesmo; para concluir,
sob esta perspectiva, que os discursos polarizadores tendem a ter mais
visibilidade e ressonância na esfera pública pelo fato de não serem, em sua
maioria, consensuais ou legítimos, gerando debate e focalização do assunto. Sim.
Para onde nós vamos? Não sei, desconfio que nada de bom sairá disso tudo.
ELA, MARIA – Curtindo Caso de amor, música de Milton Nascimento & Wagner Tiso, na voz da atriz, cineasta
e cantora portuguesa Maria de Medeiros.
- Ela chegou cantarolando com sotaque lusitano, um beijo e um toque suave. Meu
coração era só retreta e fogos de artifícios em sua saudação. Diante do meu
entusiasmo, disse-me toda Anais Nïn:
A vida se contrai e se
expande proporcionalmente à coragem do indivíduo. Não vemos as coisas como são:
vemos as coisas como somos. A nossa vida em grande parte compõe-se de sonhos. É
preciso ligá-los à ação. E rodopiou, saias aos ventos seios livres, para
o prazer do meu sonho de tê-la a todo instante, nua e lindamente exultante,
entre meus beijabraços, como pássaros eternos por penínsulas e continentes. Depois
de afagozos, afastou-se um pouco e recitou do escritor japonês Haruki Murakami
como se fosse uma revelação: A coisa mais
importante que aprendi na escola é o fato de que as coisas mais importantes não
podem ser aprendidas na escola. Seja lá o que esteja procurando, não virá da
forma que você está esperando... No fundo, todos aguardam o fim do mundo. Era
ela a poesia viva, nada mais tão real quanto ela olhos grandes riso largo em
mim. E veio até mim, saltitante Nadime Gordimer: A poesia é ao mesmo tempo
um esconderijo e um alto-falante. A solidão da escrita é muito assustadora.
Está muito perto da loucura, desaparecemos por um dia e perdemos o contato.
Sim, sempre nos perdemos. E reconstruímos o mundo que era só nosso e em nós, e
nos refizemos conosco mútua e solidária com a nossa loucura repleta de vida. Até
mais ver.
A ARTE DE JANAÍNA ESMERALDO
A arte da quadrinista e ilustradora Janaína Esmeraldo, autora da newsletter de quadrinhos Cabelo-nuvem e dos zines independentes Frutila – quadrinhos autobiográficos; Cosmo – uma história de amor futurista; e O Polegar de Ouro – uma história única e autobiográfica. Veja mais aqui e aqui.