TRÍPTICO DQC: JANELÚCIDA – Ao som da Suíte Sinfônica n.1 Paulista - I. Cantaretê II. Jongo III. Recomenda de almas
IV. Tambu (1955), de César Guerra-Peixe, com a Orchestra
Statale di Mosca diretta da Edoardo de Guarnieri – Anoiteceu e o som da música
ditava o tempo. O espaço vazio do meu quarto era como sobreviver num vácuo inescapável.
Um foco de luz e lá estava Adolfo Pérez Esquivel sentado num canto. Olhou-me e disse: Não se pode semear de punhos fechados. E ao escurecer, minha
solidão e ele não mais ali, só o cenário da janela. Um novo foco e Gregório de Matos Guerra em tom de
reclamação: O honesto é pobre, o ocioso
triunfa, o incompetente manda. Fitou-me firme, deu-me as costas e saiu ao
dar de ombros com Coventry Patmore
que pigarreou soletrando: A tolerância, como agora
é amplamente pregada, pode ser uma barganha muito unilateral. Não adianta
deixar a falsidade e a idiotice moral dizerem à verdade e à honestidade:
"Vou tolerar você, se você me tolerar". Empinou o nariz com ar
de interrogação e, diante da minha mudez confusa, se foi para dar vez ao
surgimento do Yukio Mishima: Como lidar com uma era que manchou tudo que
noutros tempos era sagrado? Esperou um pouco, seguiu meu olhar e da mesma
forma intrigante da sua entrada, saiu sem dizer mais nada. Foi aí que me surgiu
Frances Hodgson Burnett, afetuosa e
solícita: De alguma forma, alguma coisa
sempre acontece antes que a gente chegue ao pior ponto. Eu tenho que lembrar
sempre disto: o pior nunca acontece. Se você olhar bem, verá que o mundo todo é
um jardim. Alisou meus cabelos, acariciou minhas faces, um beijo terno e um
sorriso de despedida. Preciso sair, volto já.
MINHA RUA TEM
HISTÓRIA – Ao som de The Roots of the Moment (Hatology, 1988), da acordeonista e
compositora estadunidense, Pauline Oliveros (1932-2016)
– É madrugada e estou na rua fria das luzes
escassas pela neblina. Vagam lêmures e invisíveis pra lá e pra cá, feito
aluados que se perderam do mundo e se encontraram em si. Inventei de sair e não
sei como voltar, uma longa viagem pelo deserto do real. O chão imprime o
trajeto dos que passaram o dia no burburinho da vida como entregador montado na
urgência, ou aqueles que gritam promoções das vitrines, ou se passam por Papai
Noel só pro chamariz das liquidações e beliscões nas bochechas infantis; ou
comendo brebotes com caldo de cana na barraca dos camelôs, enquanto o vaivém de
gente metida e afobada de pressa, mãos de pedintes, outranônimos e boçais, imundícies
e parafinas. Cada qual sua história, teatro sem palco, cenas da hora que ecoam
das Pedreiras desabitadas, da Bica do Bigode que secou ou quase, dos Quilombos
periféricos e da Nova Cidade que emergiu entre desabamentos e escombros com
todos os bairros dos santos, e não sabe mais do que era o Riacho dos Cachorros
ou da buraqueira do arruado da usina pra dar em Pirangi, hoje só margem do
cemitério. Ainda é novembro e ouço o eco dessas vozes e passos no meio da noite
adentro. É como se estivesse no meio do Carnaval, bexiga, funk e
sombrinha (2006) ou no meio das páginas de O Guia afetivo da
periferia (Aeroplano, 2009), do diretor teatral,
documentarista e escritor Marcus
Faustini. E é ele que surge em plena madrugada: Acho que
temos que mudar tudo. Acho que está tudo errado. Tudo isso com a ideia de que
precisavam aparecer novas subjetividades, e que a função da arte talvez fosse
agir no território popular e não representar o território popular. Paro para pensar e ao dirigir o olhar para ele, não mais,
era Eugène Ionesco de sopetão: Mergulha, sem limites, no espanto e na
estupefação; deste modo podes ser sem limites, assim podes ser infinitamente. O
homem superior é aquele que cumpre sempre o seu dever. E vou
catando em cada canto das esburacadas calçadas o que sobrou das tantas
histórias perdidas nas ruas.
E SE NADA
ACONTECESSE NADA VALERIA! – Imagem: arte da
fotógrafa e repórter fotográfica Rafa
Eleutério - Ao som de Eine Sage and Spinnlied, Op. 4, nº 1 & 4, da compositora alemã Adele aus der Ohe (1861-1937), na interpretação da pianista Erica Sipes. - Para quem
sobreviveu a um monte de erradas, vexames, apertos e situações aversivas,
despertar naquela manhã ao lado dela, era como tirar a sorte grande e nunca
mais premir de nada. Acordar inebriado por seu hálito de rosa, seu perfume de
carne fresca, sua nudez de deusa radiante, era mais que ganhar em qualquer
situação. Sobretudo ao vê-la ali, desnuda, sentada e pronta para recitar o Monólogo de Molly do Ulysses de Joyce...
eu adoro flor eu ia adorar entupir a casa de rosa Deus do céu não tem nada
igual à natureza as montanhas virgens e aí o mar e as ondas quebrando... Fiquei
atento até a última fala e aplaudi. Ela sorriu, olhos brilhantes, e num gestou
brusco, pulou sobre mim, agarrando-se ao meu pescoço com beijos zis apaixonados,
a me recitar um pequeno poema de Mário Cesariny: Tu estás
em mim como eu estive no berço como a árvore sob a sua crosta como o navio no
fundo do mar. Outros tantos beijos e me
falou como se fosse a escritora estadunidense Ellen G. White (1827-1915): O valor do amor está vinculado a soma dos sacrifícios que estás disposto
a fazer por ele. A alma cresce à altura daquela que admira. Eu
sabia que ali, dagora em diante, o dia inteiro era só nosso e nada me demoveria
disso e dela, íntimos e sós. Até mais ver.
A ARTE DE ARLETE SALLES
Há um vazio na minha alma. O que faz uma pessoa achar que tem o direito de interferir na vida do outro? Como um adulto apedreja uma criança porque ela está saindo com a roupinha de sua religião?... Mas ser mãe dos 16 para os 17 anos não é o ideal. O maior compromisso que você assume na vida é a maternidade, e nessa idade você está descobrindo a vida. Mas não lamento nada. É a minha história e isso foi vivido com sustos e surpresas, mas chegamos aqui e chegamos bem. Não mudaria nada. Só sinto falta de não ter muito um espírito empreendedor, de produzir. Não tenho essa combinação do talento para o ofício e para o administrativo. É o que lamento quando olho para trás. Teria mais autonomia e não ficaria dependendo de ninguém.
A arte
da premiada atriz, radialista, comediante e apresentadora, Arlete Salles,
que iniciou sua carreira aos quinze anos de idade como locutora na Radio Jornal
do Commércio, em Recife; integrou a companhia teatral de Barreto Júnior, na
qual foi premiada pela atuação na peça A cegonha se diverte (1958) e, a partir
disso, fez sua gloriosa trajetória pelo rádio, teatro, cinema e televisão. Veja
mais aqui, aqui e aqui.