TRÍPTICO DQC: ENTRE
VALES & CLAUSTROS - Curtindo La
Création du monde, op. 81, para pequena orquestra (1923), do
compositor francês Darius Milhaud (1892-1974), performed by the Miami University Wind
Ensemble and conducted by Sheridan
Monroe. - A janela e o mundo lá fora, insuportável clausura. Voo mundo
afora, vagar pela terra sem rumo e a salvo das Leônidas, ponteiros desencontrados. Preciso
sobreviver às lembranças para além dos limites, nunca mais refém da memória. Sei
que é impossível e tento insistentemente. Piso o chão como se libertasse das
ideias e a cada contorno a fêmea nua entre fissuras e sinuosidades e grutas, e
identifico as faces, os lábios, os seios, o monte de Vênus, as coxas e pernas
da mulher amada deitada, estendida entre galhos e raízes, troncos e plantações.
Todas ali, como se as mulheres que amei um dia estivessem ali, desnudas e
indefesas ao abandono. É como se parissem ali imóveis todas as cores, graus,
olores e degraus, superfícies e camadas, alturas e distâncias, lonjuras tantas para
meus pés erradios entre saltos pelos declives, a vertigem de tudo e o
espetáculo da vida. Lá longe vejo um vulto irreconhecível que de se aproxima um
tanto apressado. Prestes a cruzarmos logo o identifico, é o sociólogo humanista
peruano, Aníbal Quijano (1930–2018) que me diz na ventania: Somos dominados (domesticados) e não
percebemos. Lemos e repetimos frases de efeito, sem efeito (pensamentos de
outros, frases de outros, na lógica do eurocentrismo na dominação colonial).
Sonhamos presos em arquétipos presos. Não nos permitem sermos quem somos em
liberdade. A liberdade se faz na consciência. A Colonização trouxe a mais forte
e feroz forma de dominação que já existiu na história da humanidade. Na
mentalidade... A luta é contra todas
as formas de domínio e poder. O céu é azul sem nuvens e venta demais. Os
seus e meus cabelos se assanham incontrolavelmente e quase não consigo me
segurar em pé, tamanhas são as pancadas. Despeço-me e ele segue para outra
direção. À primeira passada dou de cara com o escritor e editor estadunidense Stan Lee (1922-2018): Continue indo em frente, e se for hora de
ir, é a hora. Nada dura para sempre. A vida nunca está completa sem seus
desafios. Sim, saúdo e sigo como se enfrentasse todos os algozes num
furacão. Ele seguiu o seu caminho, vou em frente e à beira do abismo, fecho os
olhos sem hesitação. Sigo adiante, sempre.
EXPRESSO DO AMANHÃ – Desperto
e não sei onde estou. Pelo barulho e balanço tumultuado, só pode ser um vagão de
trem desgovernado. Insustentável situação, não há como me equilibrar, nem há quem
se equilibre, o tombo e a queda é morte certa, e servirá a quem puder tirar
proveito do tropeço e fraqueza. Sim, o último vagão e a gritaria do noticiário,
e os crimes a se acumularem entre andrajosos com seus corpos mutilados, caolhos
e cicatrizes, nervos sangrando de manetas, cochos com suas chagas e pernetas,
misérias de famélicos e rotos se alimentando da carne do semelhante vencido e estraçalhado.
Todos se nutrem do ódio que os fortalece para vencer o outro que é aquele
marcado como inimigo quando parente ou desconhecido que lhe farta a soberba e o
poder. Tudo é fome, medo e incerteza, ninguém a salvo. Sabia lá eu submerso ao
mundo da Le Transperceneige (1984 - Casterman, 2013),
do trio Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette, porque uma bomba
explodiu para que um eterno inverno hostil e gelado nos fizesse sobreviventes -
na verdade, prisioneiros - naquele refúgio de um futuro distópico. Ouço o que
dizem dos outros vagões, era o real em sobreviver nas cenas de Snowpiercer (Seolgugyeolcha, 2013), do cineasta
coreano, Bong Joon-ho. E ouço a
trama aos cochichos de uma revolução. O levante é ensaiado para tomar o
controle, a animosidade toma corpo e envolve a todos. A minha pacífica natureza
não encontra arrimo, todos se tornaram selvagens e não há mais limite para a
violência. Ao meu lado o jornalista Luiz
Cláudio Cunha avisa: Em tempos de paz, os filhos
enterram os pais. Em tempos de guerra, os pais enterram os filhos. Em tempos de
Condor, nem isso. A vida
só se esvaindo e eu mergulhado naquela iracúndia condição. Tudo escureceu de
vez, não sei como me safei. Duas crianças ao longe sorriem com um adeus. Estou
indefeso e não sei onde.
O AMOR AO ENTARDECER – Imagem:
a arte do escultor e artista francês M.
Nick. Curtindo a orquestral suite para ballet, Appalachian Spring
(1944), do compositor estadunidense Aaron Copland (1900-1990), performed by Symphony Orchestra of
Bartók Conservatory Budapest, conducted by Gergely Dubóczky, 2017. - Não
fosse a chegada dela como um redemoinho levantando tudo, jamais sairia da cama.
Chegou recitando o escritor Eiji
Yoshikawa (1892-1962): Eis porque / Da
semente paterna recebeis o espírito, / Ao ventre materno deveis a forma. / E
por causa dessa relação cármica, / Nada neste mundo se compara / Ao
misericordioso amor de uma mãe: / A ela deveis a eterna gratidão. Um beijo dela
e o crepúsculo no olhar anunciou a festa com uma frase do escritor francês Michel
Houellebecq: A ternura é um instinto mais profundo que a
sedução, e é por isso que é tão difícil perder a esperança. Tudo pode acontecer
na vida, especialmente nada. E incorporou Go Ah-sung nua, para modelar ao meu toque artífice a esculpir nela o
seu prazer duradouro e a minha salvação. Assim como pisei no chão de toda
Terra, tateei seus recônditos e extensões, para ser nela e nunca mais voltar a
mim. Até mais ver.
BOA SORTE, MEU AMOR
Para que fazer cinema se não for para arriscar?
O drama
Boa sorte, meu amor (2012), dirigido pelo cineasta Daniel Aragão, conta a história de um filho da aristocracia
sertaneja nordestina que trabalha numa empresa de demolição promovendo a
mudança nas cidades. Ele encontra uma jovem estudante de música com alma de
artista que o influenciará a mudar a própria vida. O amor o leva a detectar as
origens das oligarquias e a herança do coronelismo. O filme é lindo e ousado,
em preto e branco e marca a estreia do diretor em longas-metragens. O destaque
fica por conta da atuação da atriz Christiana
Ubach que brilha do começo ao fim. Veja mais aqui e aqui.