quarta-feira, julho 21, 2021

MICHAEL CONNELLY, NATALIA OSIPOVA, AMANDA VIEIRA, JORGE GARCIA, A DONZELA & A BAILARIA MORTAL

 

 

TRÍPTICO DQP – A donzela mágica... - Ao som Le Cygne – The SwanLe carnaval des animaux, de Camille Saint-Saëns, na interpretação de Han-Na Chang & Philharmonia Orchestra, conductor Leonard Slatkin & solo The Dying Swan da bailarina russa Natalia Osipova. - Lá estava ela jogada nas pedrarias da ilha do mar de Amadis de Gaula. Não sabia se ferida ou machucada ao pé do penhasco escarpado e árido da imensa altura de tocar as nuvens, acho. Estava desacordada e fiquei sem saber o que fazer. Toquei-lhe o pulso, ainda viva. Vi que tremiam suas pálpebras e lábios, um vago movimento na perna direita, um incerto tatear da mão esquerda tocou-me e afaguei seu braço e a deitei em meu peito alisando seus cabelos. Um sussurro dolorido e se ajeitou em mim, beijei-lhe os cabelos e ali fiquei cuidando dela não sei por quanto tempo. Abriu os olhos, expôs sua boca sedutora e beijou-me como se pedisse socorro. Correspondi ao beijo e a abriguei em meus braços a noite inteira até ao amanhecer. Ela tentou se recompor e despertou sem noção de nada, fitou-me seriamente e me contou que era a filha do mágico de Argos, Finetor, e se chamava Oriana. Versada em necromancia, vivia ali toda a sua vida e sua diversão era acompanhar a passagem de numerosos barcos que vinham ou iam para Irlanda ou Noruega e delas, por artes da magia, atrair os homens para roubar-lhes as cargas, aprisionar os cavaleiros a bordo, provocando-os a lutarem entre si até se matarem. Certa feita, entre os cavaleiros havia um oriundo de Creta, por quem ela apaixonou-se perdidamente. Deu-lhe tudo em troca do seu amor e ele fingiu amá-la, familiarizando-se c0m seus encantamentos até que, um dia, ele inclinou-se no alto do rochedo fingindo abraçá-la, jogou-a da varanda de sua esplêndida mansão. Ali estava. O que ele fez? Libertou todos os prisioneiros e levou consigo muitos tesouros dela, só não conseguindo levar nada da sala mais rica do castelo por causa do encantamento. Ouvi atento a tudo que contara e perguntei como poderia sair dali, respondeu-me que a paragem mais próxima estava a uns seis dias de viagem, a ilha da Torre Escarlate. Vi-a distante, sabia do que dissera o escritor estadunidense Michael Connelly: Eu vejo as pessoas de duas maneiras. Eles são pessoas olho-por-olho ou vira-a-cara. Não importava que guerra fosse travada, voltar para casa era outra batalha. Não há nada que você possa fazer sobre o passado, exceto mantê-lo lá. O que é importante não é o que você ouve dizer, mas o que você observa. E fiquei ali calado, fitando seus gestos e contemplações. Por fim, ofereceu-me por presente e gratidão tudo que houvesse na sala encantada do seu palácio, e me fez seguir o caminho de subida, livrando-me das serpentas e outras criaturas terríveis que hibernavam ao redor da porta da câmara, a qual possui painéis com letras de cor sanguínea, uma escrita misteriosa que contém o nome do cavaleiro destinado a entrar na sala depois de retirar a espada presa na maçaneta. Tudo me contou e agradeci, mas disse-lhe não me interessava riquezas, mas levá-la aos seus aposentos. Subimos o íngreme caminho e nos deparamos com a porta: lá estava inscrito o meu nome. Ela sorriu com um abraço afetuoso, eu tinha que voltar.

 


A bailarina mortal... - Ao retornar reencontrei o meu mundo e não seria fácil sobreviver. Pouco tempo depois ela reapareceu familiar com um verso da Conceição Evaristo: O que os livros escondem, / as palavras ditas libertam. / E não há quem ponha / um ponto-final na história… Estava mais deslumbrante que antes, lívida e estonteante. Não havia há como saber se era setembro de antanho ou fevereiro dagora, só que parecia tão atordoante como um mal que vinha de longe e com muitos nomes, a bordo de um navio e a dizer: salve-se quem puder. Sorria muito e encantadoramente. Logo quando a vi me veio a sensação de um verso de Fernando Pessoa: Ah, o horror de morrer! / E encontrar o mistério frente a frente / Sem poder evitá-lo, sem poder… Era como se ela me levasse por uma dança acasaladora, na qual perdia a memória e a identidade. Ao sobreviver o redemoinho de sua entrega, logo constatei que o Recife estava acometido de uma tanatomorbia e era ela dançando solta com todos os santos, uma espanholada sobre o salubre e a borracha, sem poupar mascarados no seu carnaval. Ela onde chegasse parava tudo a desnudar o precário em seu massacre. E ali José Miguel Wisnik denunciasse: Real é aquilo que não dá para não ver, mesmo que seja invisível, como um vírus. E era. Tudo muito confuso: mortes, noticiário, disputas e negacionismo faziam a festa da hecatombe no embuste da oferta de curas milagrosas: estávamos todos à sua mercê a ponto de não se saber se era o século passado ou o presente, não fosse a denúncia de Lilia Schwarcz e Heloisa Murgel Starling e quase ninguém ouvia encantado com o espetáculo. Ao ver-me assustado Lilia contou do espetáculo das raças com as barbas do imperador e o triste visionário Lima Barreto. Heloisa, por sua vez, segurou minhas mãos trêmulas e me falou dos senhores gerais, das lembranças do Brasil e dos impasses contemporâneos, dialogando com Lilia sobre a biografia do nosso chão. Eu entendia tudo e quase desentendia de nada, o que sabia é que era uma guerra, uma guerra igual a de ontem e confuso se a primeira, segunda ou sabe-se lá, todo dia aqui é uma guerra e que milhões de pessoas são ceifadas. E ela era a bailarina mortal, imensa, pandêmica. E tudo me levava a crer que se não fosse possível lembrar o que ocorreu durante os mais diversos períodos históricos, não havia outra coisa a fazer, repetir tudo seria a condenação.

 


A dança da cidade... Imagem: a bailarina Amanda Vieira, do Bolshoi Brasil na Companhia da Ópera de Dortmund: Sempre esperei o momento em que eu pudesse viver e me sustentar apenas da dança, e esse momento finalmente chegou! – Nem sabia direito, mas ela me salvou não sei como. Sei que a cidade era a mesma e era outro momento de carnaval perdido e todos mascarados, eu, ela, muitos. Os seus olhos apreensivos me levaram ao coreógrafo e bailarino Jorge Garcia, tão inquieto quanto nós, entre a Cisne Negro, o GRUA e o Balé de São Paulo, num performático improviso, a me contar de Marie van Goethem, e eu nem sabia se tratar da pequena em perpétua quarta posição do balé de Degas e do Little Dancer Aged Fourteen de Camille Laurens. Sim e... Se o pintor, como dissera: encerrei meu coração numa sapatilha de cetim cor-de-rosa, e a sua musa virou um fantasma sem história, para nós era mais que magia pura o que vivíamos na alma do Recife: a dor é que era nossa. Diferente da musa que desaparecera sem deixar nenhum rastro, para onde quer que eu vá, a cidade enche meu coração de esperança por todas as paragens distantes e perdidas. Até mais ver.

 

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