TRÍPTICO DQP – A
donzela mágica... - Ao som Le Cygne
– The Swan – Le carnaval des animaux,
de Camille Saint-Saëns, na
interpretação de Han-Na Chang &
Philharmonia Orchestra, conductor Leonard Slatkin & solo The Dying Swan da bailarina russa Natalia Osipova. - Lá estava ela jogada
nas pedrarias da ilha do mar de Amadis de Gaula. Não sabia se ferida ou
machucada ao pé do penhasco escarpado e árido da imensa altura de tocar as
nuvens, acho. Estava desacordada e fiquei sem saber o que fazer. Toquei-lhe o
pulso, ainda viva. Vi que tremiam suas pálpebras e lábios, um vago movimento na
perna direita, um incerto tatear da mão esquerda tocou-me e afaguei seu braço e
a deitei em meu peito alisando seus cabelos. Um sussurro dolorido e se ajeitou
em mim, beijei-lhe os cabelos e ali fiquei cuidando dela não sei por quanto
tempo. Abriu os olhos, expôs sua boca sedutora e beijou-me como se pedisse
socorro. Correspondi ao beijo e a abriguei em meus braços a noite inteira até
ao amanhecer. Ela tentou se recompor e despertou sem noção de nada, fitou-me
seriamente e me contou que era a filha do mágico de Argos, Finetor, e se
chamava Oriana. Versada em necromancia, vivia ali toda a sua vida e sua
diversão era acompanhar a passagem de numerosos barcos que vinham ou iam para
Irlanda ou Noruega e delas, por artes da magia, atrair os homens para
roubar-lhes as cargas, aprisionar os cavaleiros a bordo, provocando-os a lutarem
entre si até se matarem. Certa feita, entre os cavaleiros havia um oriundo de
Creta, por quem ela apaixonou-se perdidamente. Deu-lhe tudo em troca do seu
amor e ele fingiu amá-la, familiarizando-se c0m seus encantamentos até que, um
dia, ele inclinou-se no alto do rochedo fingindo abraçá-la, jogou-a da varanda
de sua esplêndida mansão. Ali estava. O que ele fez? Libertou todos os
prisioneiros e levou consigo muitos tesouros dela, só não conseguindo levar
nada da sala mais rica do castelo por causa do encantamento. Ouvi atento a tudo
que contara e perguntei como poderia sair dali, respondeu-me que a paragem mais
próxima estava a uns seis dias de viagem, a ilha da Torre Escarlate. Vi-a
distante, sabia do que dissera o escritor estadunidense Michael Connelly: Eu vejo as pessoas de duas maneiras. Eles são pessoas olho-por-olho ou vira-a-cara. Não importava que guerra
fosse travada, voltar para casa era outra batalha. Não há nada que você possa
fazer sobre o passado, exceto mantê-lo lá. O que é importante não é
o que você ouve dizer, mas o que você observa. E fiquei ali calado, fitando seus gestos e contemplações.
Por fim, ofereceu-me por presente e gratidão tudo que houvesse na sala
encantada do seu palácio, e me fez seguir o caminho de subida, livrando-me das
serpentas e outras criaturas terríveis que hibernavam ao redor da porta da
câmara, a qual possui painéis com letras de cor sanguínea, uma escrita
misteriosa que contém o nome do cavaleiro destinado a entrar na sala depois de
retirar a espada presa na maçaneta. Tudo me contou e agradeci, mas disse-lhe não
me interessava riquezas, mas levá-la aos seus aposentos. Subimos o íngreme
caminho e nos deparamos com a porta: lá estava inscrito o meu nome. Ela sorriu com
um abraço afetuoso, eu tinha que voltar.
A bailarina mortal... - Ao retornar reencontrei o meu
mundo e não seria fácil sobreviver. Pouco tempo depois ela reapareceu familiar com
um verso da Conceição Evaristo: O que os livros
escondem, / as palavras ditas libertam. / E não há quem ponha / um ponto-final
na história… Estava mais
deslumbrante que antes, lívida e estonteante. Não havia há como saber se era
setembro de antanho ou fevereiro dagora, só que parecia tão atordoante como um
mal que vinha de longe e com muitos nomes, a bordo de um navio e a dizer:
salve-se quem puder. Sorria muito e encantadoramente. Logo quando a vi me veio
a sensação de um verso de Fernando Pessoa: Ah, o horror de
morrer! / E encontrar o mistério frente a frente / Sem poder evitá-lo, sem
poder… Era como se ela me levasse por uma dança acasaladora, na qual perdia a
memória e a identidade. Ao sobreviver o redemoinho de sua entrega, logo
constatei que o Recife estava acometido de uma
tanatomorbia e era ela dançando solta com todos os santos, uma espanholada
sobre o salubre e a borracha, sem poupar mascarados no seu carnaval. Ela onde chegasse
parava tudo a desnudar o precário em seu massacre. E ali José Miguel Wisnik denunciasse: Real é aquilo que não dá para não ver, mesmo que seja invisível, como um
vírus. E era. Tudo muito
confuso: mortes, noticiário, disputas e negacionismo faziam a festa da
hecatombe no embuste da oferta de curas milagrosas: estávamos todos à sua mercê
a ponto de não se saber se era o século passado ou o presente, não fosse a
denúncia de Lilia Schwarcz e Heloisa Murgel Starling e quase ninguém
ouvia encantado com o espetáculo. Ao ver-me assustado Lilia contou do
espetáculo das raças com as barbas do imperador e o triste visionário Lima Barreto. Heloisa, por sua vez, segurou
minhas mãos trêmulas e me falou dos senhores gerais, das lembranças do Brasil e
dos impasses contemporâneos, dialogando com Lilia sobre a biografia do nosso
chão. Eu entendia tudo e quase desentendia de nada, o que sabia é que era uma
guerra, uma guerra igual a de ontem e confuso se a primeira, segunda ou sabe-se
lá, todo dia aqui é uma guerra e que milhões de pessoas são ceifadas. E ela era
a bailarina mortal, imensa, pandêmica. E tudo me levava a crer que se não fosse
possível lembrar o que ocorreu durante os mais diversos períodos históricos,
não havia outra coisa a fazer, repetir tudo seria a condenação.
A dança da cidade... Imagem: a bailarina Amanda Vieira, do Bolshoi Brasil na
Companhia da Ópera de Dortmund: Sempre esperei o momento em que eu pudesse
viver e me sustentar apenas da dança, e esse momento finalmente chegou! – Nem sabia
direito, mas ela me salvou não sei como. Sei que a cidade era a mesma e era
outro momento de carnaval perdido e todos mascarados, eu, ela, muitos. Os seus
olhos apreensivos me levaram ao coreógrafo e bailarino Jorge Garcia, tão inquieto quanto nós, entre a Cisne Negro, o GRUA
e o Balé de São Paulo, num performático improviso, a me contar de Marie van Goethem, e eu nem sabia se
tratar da pequena em perpétua quarta posição do balé de Degas e do Little Dancer Aged
Fourteen de Camille Laurens. Sim
e... Se
o pintor, como dissera: encerrei
meu coração numa sapatilha de cetim cor-de-rosa, e a
sua musa virou um fantasma sem história, para nós era mais que magia pura o que
vivíamos na alma do Recife: a dor é
que era nossa. Diferente da musa que desaparecera sem deixar nenhum rastro,
para onde quer que eu vá, a cidade enche meu coração de esperança por todas as
paragens distantes e perdidas. Até mais ver.
E mais:
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