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segunda-feira, setembro 01, 2025

ANNE CARSON, MEL ROBBINS, COLLEEN HOUCK & LEITURA NA ESCOLA

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2024), da premiada violonista Gabriele Leite, que possui mestrado em Performance Musical da Manhattan School of Music, em Nova York (EUA), com bolsa integral da Sociedade Cultura Artística. É doutoranda em Performance Musical pela Stony Brook University, instituição de Nova York (EUA). Ela é considerada um dos maiores prodígios contemporâneos no instrumento pela crítica especializada, figurando na lista Under 30 da revista Forbes, como destaque na música brasileira em 2020.

 

Dermeval: É melhor deixar pra amanhã, ou pra lá de vez... - Desde menino se remexia todo – quando não se contorcia, se balançava no gingado: brincava carnavalizante, aos giros ritmados foliava, pulava doidejantemente. Adolesceu meneando-se e, logo cedo, arrumou seus muafos e ganhou o mundo como um novilho de ponta limpa. Via de tudo e passou só pro que gostava: bailava ao seu modo, com declamações de versos e hestórias. Haja causo no sapateado do trupé. E era andejo mesmo. E tanto que logo ajeitou-se com Macrina, no meio duma noite deserta. Fugiram saltitantes pro Mar Negro e se arrearam ascetas. Ela então o conduziu ao culto de Terpsícore, a musa da dança, envolvendo-o com sua lira na ambrosia da alcova, festejados pelas sereias do rio Aqueloo. Ao despertar a solidão era seu domicílio, por dias e noites. Foi socorrido pela amabilidade de Paula, a outra irmã dela, que o levou à Baía de Bengala e lá recebeu de Shiva Nataraja o cajado de Okó e se amaram na dança cósmica. E rodaram entre sonhos e madrugadas, até a surpresa dum amanhecer ao lado de Olympia de Manet, a terceira irmã, que o levou à deusa Hathor no Templo de Dendera, com seu disco solar e chifres bovinos roçando a caixa dos peitos. E viu-se enrolado nos seus 7 Hatores, tomado pelo Olho das 4 Faces. A bem-amada celebrou como uma vaca e deu-se à cópula feito a Leoa Sacmis, no Conto de Fadas da Noite de Hoffman. Ali tornou-se o Homem de Areia e ela não mais: Cadê-la, hem? A surpresa foi renovada com Marietta, a Maria Baderna, como se fosse a deusa Laka, pronta para a dança de Hula. De mãos dadas foram conferir os vestígios da coreografia na gruta de Tuc d'Audoubert. De lá seguiram pelas rochas do Les Trois-Frères, aos movimentos dançantes pelas margens do Arièges. Com ela o devaneio duradouro de ser dançarino de nascença nas reencarnações de Parvati e, com ela, a xamã no ritual Kagura. E a fantasia o fez Don Lockwood como um cavaleiro domado pela paixão da Kathy Selden, na cena do bolo! Pra ela ele já era Gene Kelly, e aos píncaros da gloria o fez Fred Astaire. Era o ápice! Daí foram juntos pro Prelúdio do Fauno de Debussy no poema de Mallarmé e viram primeiro a arte de Nijinski, seguido da coreografia de Nureyev pro mesmo tema, afora o bônus das tantas piruetas do Quixote de Baryshnikov. Ali olhou pra ela e sorriu: Dá pra mim não, o que vão dizer lá em casa, ora! Tirante o balé, com ela dançou de tudo. E começou pelos lundus, só na umbigada de roda: Uê, uê... uê, uá... Uê, uê... uê, uá... A lua vai saí e eu vô girá. Vou caçá meu tatu, meu tamanduá... Depois se perfilaram enfileirados na da peiga, na do Peixe a pira-purasseia; na do Tipiti e na do pau-da-fita: Dança, dança, dançador \ dança com muito valor \ dancemos todos juntos \ cada qual com seu amor... Assim se embalaram na do Lelelé (aquela mesma do péla-porco, do Lelé), na do Tambor-de-Mina (e de-Crioula), na do Espontão, na do Chapéu e na de São Gonçalo: Chega, chega, companheira \ que já estamos empareada \ pedindo licença pro santo \ para a primeira jornada... Quem não canta nem dança \ o que veio buscar? \ só veio comer arroz \ e beber o aluá... E se encararam na do Divino, tudo pelas ruas, lama e sarjetas, aos gritos pela abolição, grevistas e a febre amarela no coro dos baderneiros de todas as plateias: Mané gostoso, perna de pau, salta da cama e cai no girau... Daí em diante ele perderam-se e ele tomou nas cuias dos quiabos: macambúzio solitário ao lado de uma trapezista ao desafio: Vai ou não? Fez sapateado até na corda bamba, equilibrista só no golpe de vista. E ficou na pestana da barata, catando os trapos. Peito apertado, aguçou sua espiritualidade: Deus dançava na sua paz interior e sorria. Valia-se de Nietzsche. Aprendia sozinho a mexer os pés como Hermes no mito de Odissi. E celebrou a imagem de Peratus (o Eratus) e tornou-se o andarilho de Copenhague - como se fora Kierkegaard, a decorar o Diário de um Sedutor. Recitava poemas de Byron ao se recolher no Walden de Thoreau. E lá todas as Cartas do Eremita em Paris, de Calvino. E se viu entre os Andarilhos de Coetzee, e se reencontrou com Leloup e os padres do deserto, no Monte Athos. Aprendia de si com Isócratis e Diógenes que era gago. Fez-se entusiasta de Cícero – aquele mesmo, Marco Túlio Cícero, de saber de cor as suas cartas descobertas por Petrarca. Proferia em seus monólogos públicos trechos do Alcorão, do Mahabarata, do Rigveda, dos Upanishads, das Mil e Uma Noites, do Decamerão de Boccaccio, do Satyricon de Petrônio, muitos sonetos de Shakespeare e os tantos de Manuel Bandeira. Foi num solilóquio crepuscular, quando menos esperava, passou-lhe às vistas uma beldade que ensaiava trôpega a Dança dos 7 véus, da ópera Salomé do Strauss. Eita! Enrabichou-se todo dela quase escapulir; nada, ela ia passando de nem vê-lo, indiferente, aí providente deu-lhe uma mucica dela chega arrear-se toda se encostando no passo da Jardineira - a que era a mesma de Cupido ou Arco de Flora -, e ela faceira: Eu sou uma jardineira \ que ando com meu regador \entre perpétuas e boninas \ rosa é a rainha das flores... Era Esmeraldina e com ela foi ao clímax: a dança dos tangarás. Dali foram parar no Santuário de Ise orando pela Paz Mundial e seguiram pela estrada da peregrinação do Furuichi, só para amanhecerem na folia da deusa Ame no Uzume atraindo Amaterasu. De lá foram para Madurai e, no Templo Meenakshi Amman, viram-se envolvidos pelos 4 braços da deusa Parvati, revelando-lhe a reencarnação da deusa Sati no Himalaia. Seguiram pelo rio Ganges porque ela agora era a sua divina Shákti. E remexeram juntos Odissi nos templos de Odisha e ambos os corpos contavam hestórias sobre as águas do Maniari, no Chhattisgarh. Aos versos se casaram e ela, a sua bela quetzalizti dos olhos de maracujá, tornou-se o orvalho de maio na preciosa ourivesaria barroca do Tesouro de Munique. Ela amarrou seu símbolo no braço esquerdo dele e pôs em sua língua a sua pedra úmida, aquosa e lunar - regenerava a vida dele com sua alma verde translúcida. Ela lavou-o com sua chuva e a luz percorreu todo o sangue dele pelo Oeste do mundo. Ela plena e primaveril deu-lhe as virtudes afrodisíacas de Rabelais e a pedra do Hermes na Tábua de Apolônio. O seu orvalho mercurial traspassou as densas trevas para presenteá-lo com o segredo da criação e de todas as coisas. Com seu talismã poderoso o protegeu das criaturas infernais, afastando víboras e najas e o feitiço das paixões prisioneiras. Deu-lhe enfim a sua divina homeopatia, o Graal e a imagem presente do Criador. E com ela avexou-se, arrumou sua loca - uma mei’água pra guardá-la e cuidar dos filhos. Tornou-se carteiro, pés prum lado, passadas proutro, caminhante das boas e más notícias. Era o que queria. De noite, no lar, emocionava-se com a Ardiente Paciencia de Skarmeta. E com a sua dama a rodopiar no salão: Maxixe é dança levada, toda cheia de caídos, em que a mulata é danada e o homem é todo mexido! Depois um tango, Por uma cabeza, de Gardel. Os filhos dormiam e mandavam ver com salsas, frevos, boleros, forrós, sambas de gafieira, bachata, foxtrote, quickstep, zouk, lambada, mambo, Chá chá chá, merengue e o escambau. Até inventaram algumas novas e próprias: a vida era deles. De dia, as correspondências eram entregues em troca de poemas, expondo a sua imensa coleção de terno e gravata: era vê-lo aos sapateados pelo meio fio das calçadas esperando a chuva chegar para dar seu espetáculo no acerto da bengala – Diziam: Aquilo é a arma do Mandrake, meu! Hehehehe. De noite, aos braços da amada, o embalo do amor. A quem perguntasse, respondia com um gole de café forte e amargo: Sou apenas um preto-velho, chamo-me Dermeval, o senhor indígena das ervas, um dançarino poeta. E todo casamento não podia faltar nem ele nem a Wedding March in C major de Mendelssohn; não havia baile de debutante sem ele e as Valsas de Strauss; não havia evento no coreto do centro da cidade sem seus elóquios ao som do maestro Zé da Justa & Orquestra 15 de novembro; muito menos festa no Club Litterário sem seu sarau e seus louvores poéticos. Preferia dançar e trabalhar a ter de encarar a miséria, a repressão e o irrespirável ambiente ao seu redor: a fuligem da usina explodia pulmões. Mantinha-se com seu atencioso senso paternal, apegado à família. Orgulhava-se de nunca ter tido de voltar atrás com nada, sempre ocupadíssimo, independente, equilibrado, perspicaz, controlador ao seu modo, espiritualizado – a dança levou-lhe a venerável maçon, imponente, reservadíssimo. Era um cavaleiro andante que viajava a pé, sempre no passo do jocotó e recitando umas quadrinhas. Como se dizia comumente por aqui: Era um digno homem de gravata lavada! Era o poeta no país das mil danças e sorria: Tudo o mais, ficará pra depois. Encontrei-o quase centenário – dizem que ele já passou e muito disso uns 2 séculos atrás. A mesma bengala lustrada, o mesmo riso terno, a mesma pose de fidalguia calma bem trajada e a sabedoria vivíssima na maior lucidez. Como vai, Dermeval? Esperando a morte, meu filho. Que é isso, homem? Melhor deixar pra morrer amanhã, né? Nada: a gente tem muito pra fazer, meu velho e bom amigo. Então, vamos e deixa o resto pra lá. E lá ia de vê-lo às costas de menino treloso, o peso da vida de todo planeta. Até mais ver.

 

Marilena Chaui: Desejo é relação entre seres humanos carentes. Por isso amamos até à loucura e odiamos até a morte: nosso ser está em jogo em cada e em todos os afetos. Desejo é paixão, diziam os clássicos... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Jennifer Egan: Vivemos em um momento e uma cultura em que a leitura está realmente em perigo. Não há como escrever bem, se você não está lendo bem... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

Han Kang: O amplo espectro da humanidade, que vai do sublime ao brutal, tem sido para mim como uma difícil tarefa de casa desde a minha infância... Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

I - Sentir qualquer coisa te perturba. \ Ser visto sentindo qualquer coisa te desnuda. \ Sob o domínio disso, prazer ou dor não importam. \ Você pensa o que eles farão, que novo poder eles adquirirão se me virem nua assim. \ Se eles virem você sentindo. \ Você não tem ideia do que. \ Não se trata deles. Ser visto é a penalidade.

II - Como seria viver em uma biblioteca de livros derretidos. \ Com frases escorrendo pelo chão e toda a pontuação arrumada no fundo como um resíduo. \ Seria confuso. \ Imperdoável. \ Uma grande aventura.

Poemas da premiada escritora canadense Anne Carson, autora das obras Red Doc (2013), Autobiography of Red (1998), Plainwater: Essays and Poetry (1995), Glass, Irony and God (1995) e Eros the Bittersweet (1986). Veja mais aqui & aqui.

 

O ÂMBAR DA LATERNA - […] É sempre preciso mais energia para unir e construir do que para destruir [...] Não é com aqueles que parecem diferentes de você que você deve ter cuidado. São aqueles que parecem humanos [...]. Trechos extraídos da obra The Lantern´s Amber (Random House, 2019), da escritora estadunidense Colleen Houck, autora de obras como Tiger's Curse (2011) e Tiger's Quest (2011).

 

DEIXE PRA LÁ - [...] Meu ponto é simples: os adultos terão opiniões negativas sobre você e tudo o que você faz. Deixe-os julgar. Deixe-os reagir. Deixe-os duvidar de você. Deixe-os questionar as decisões que você está tomando. Deixe-os estar errados sobre você. Deixe-os revirar os olhos quando você começar a postar vídeos online ou quiser reescrever o manuscrito pela 12ª vez. Em vez de perder tempo se preocupando com eles, comece a viver sua vida de uma maneira que te orgulhe de si mesmo. Deixe-me fazer o que eu quero fazer com a minha única e preciosa vida. [...] Se seus amigos não estão te convidando para um brunch neste fim de semana, deixe-os. Se a pessoa por quem você realmente se sente atraído não está interessada em um compromisso, deixe-os. Se seus filhos não querem se levantar e ir àquele evento com você esta semana, deixe-os. Tanto tempo e energia são desperdiçados forçando outras pessoas a corresponderem às nossas expectativas. E a verdade é que, se outra pessoa — uma pessoa com quem você está saindo, um parceiro de negócios, um membro da família — não estiver aparecendo como você precisa, não tente forçá-la a mudar. Deixe-a ser ela mesma, porque ela está revelando quem ela é para você. Apenas deixe-a e então você pode escolher o que fazer em seguida. [...] Concentrar-se no que você não pode controlar causa estresse. Concentrar-se no que você pode controlar torna você poderoso. [...]. Trechos extraídos da obra The Let Them Theory (Hay House LLC, 2024), da advogada, autora e apresentadora estadunidense Mel Robbins (Melanie Lee Robbins, nascida Schneeberger), atuando abordagem inovadora sobre mudança de comportamento, ela se tornou uma das palestrantes mais populares do mundo, treinando cerca de 60 milhões de pessoas todos os meses, tornando-se uma das principais vozes da atualidade no campo do desenvolvimento pessoal. Ela é autora de obras como The 5 Second Rule: Transform Your Life, Work, and Confidence with Everyday Courage (2017) e Stop Saying You're Fine: Discover a More Powerful You (2011).

 

CLUBE DE LEITURA DA ESCOLA DERMEVAL MIRANDA

Os estudantes da escola municipal em tempo integral, Dermeval Alves de Miranda, reúnem-se em um Clubinho de Leitura, com o objetivo de difundir o hábito da leitura, o compartilhamento de conhecimentos e o protagonismo estudantil, na cidade dos Palmares, em Pernambuco. Veja detalhes clicando aqui, aqui, aqui & aqui.

 

ITINERARTE – COLETIVO ARTEVISTA MULTIDESBRAVADOR:

Veja mais sobre MJ Produções, Gabinete de Arte & Amigos da Biblioteca aqui.

 


quarta-feira, novembro 15, 2023

PAULA EINÖDER, AIMÉ CÉSAIRE, SARAH BAKEWELL, INCONFISSÕES & ENIGMA VITAL

 

 Imagem: Acervo ArtLAM.

Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2023), da violonista clássica Gabriele Leite, musicista, que figurou na lista Under 30 da Forbes, em 2020.

 

PALÍNDROMO OUROBOROS & SISIFISMO GLOCAL... – Piso errâncias da solidão pelo Vazio de Boötes, prófugo sonheiro pela constelação Ofícuo, ou sei lá: talvez aqui esteja mais respirável que as intoxicadas calçadas e ruas da minha cidade. Juro, talvez possa escapulir – sim, alívio pra quem sempre se viu enredado nas tramas da trilogia de Samuel Beckett, diante do Lamentável Expediente da Guerra. Absurdo é não haver mais lugar seguro, o inferno por toda parte. Confesso, meu coração Molloy, miseravelmente solitário: não é nem nunca será nada; apenas teimoso, como se buscasse o ventre materno a todo instante. Só sei e sinto o desperdício de todos os solilóquios: é tudo desconfortavelmente incomunicável, inevitavelmente falhamos e muito feio. Quase nada mais adianta, resta o inopinado. Pelas ruas as mulheres me pediam uma das pedras dos bolsos e, em troca, ofertavam o limiar da porteira do mundo, a origem de Courbet. Surpreso, não fazia outra coisa senão entregá-las a todas elas, sem que precisassem gratificar. Elas insistiam e mais persistiam, não sabiam que não tinha onde cair morto nem sequer mais sabia meu próprio nome, assombrado com as escaramuças das valias e o tiroteio da indiferença nas ondas do anonimato. O momento é quase uma amputação, não entendo seus gestos e falares, se festejam ou descontentes. Não as entendo, muito menos o que dissera Astrid Lindgreen: Eu era jovem, pobre e me sentia muito sozinha. Eu vim de uma cidade pequena e em Estocolmo não conhecia ninguém. De segunda a sexta trabalhava em escritório, mas os finais de semana eram tristes e chatos. Passei o tempo lendo livros... Se me chegara por penhora, não sabia. Eis-me aqui de volta, disse-lhe. Tal Malone, asseguro: a gente só sabe que vai morrer! E me apontou pelas esquinas as ocorrências – outras delas que desfiavam nas garras de homicidas impunes, nem quero ver e não perdoo ninguém, pro inferno todos! Não, não quis dizer isto! Longe de mim. Reconheço: gente envolvida em fanáticas irrelevâncias, pelo ódio aguça o risco e a fealdade dos interesses chovem bombas torrenciais na incógnita esperança dos olhos infantis daqui e das palestinas na Faixa de Gaza, das israelitas cativas, russas e ucranianas, desumanidade demais sob um Sol furioso e calor de 50 graus - cada vez mais difícil sobreviver. Quem asfixiado não escapole da clausura, quem oprimido não abre o peito à indignação, quem à porta não dá o milésimo passo. Já tenho muito no que pensar e fazer, buscar o asilo com as dificuldades de locomoção, a quase mendicidade, a claustrofobia sufocante, as sobras e os restos, tudo se esvai: apesar de tudo, muito em breve estarei morto. Preciso ficar calado, aprender o silêncio. Ela insiste e me recrimina Selma Lagerlöf: Ninguém pode salvar as honras do Senhor, mas abençoado será aquele que restaurar a coragem para suportar... Não consigo entendê-la: onde agora, quem e quando, a impossibilidade, aporias e coisas, outros silêncios. Toda religião é uma ofensa, como os noticiários: incapazes de perceberem todo dia a criação do universo - o círculo e a linha ondulada se faz reta rasgando limites, os erros e a minha vida, uma sucessão de hábitos. Quase nem há como ir adiante, a jaula é um labirinto em que se confundem começos e fins, decessos e ressurgências, saídentradas... O portão emperra e nem ouço direito agora Margarida Rebelo Pinto solícita: Acredita que o tempo em que estamos com aqueles que nos querem bem é sempre um tempo ganho, como quem acumula pontos de felicidade para o futuro... Não sobrou ninguém além da gentileza dela a me sorrir como se fosse um fantasma renitente a me exigir uma atitude que não sei qual nem onde estou. Sei que sou inominável no meio do silêncio e ouso o primeiro passo a cada dia e de novo, meus pedaços não vão tão longe, penetram a menor profundidade, como se tecessem invisiveis limites na dor do aniquilamento numa suposta cova mais rasa. Vou continuar, preciso ir, vou adiante mesmo assim: pra onde, como, quando... Não há razão pra desistir, nem pra desespero. O que sou e tudo passará. Ah, até mais ver.

 

DOIS POEMAS

Imagem: Acervo ArtLAM.

LADY TITANIC - Eu tenho a maldição do Titanic e um iceberg na garganta \ Eu afundo no gelo do inferno \ o fogo nunca esteve tão frio \ Eu te empresto meu barco em pedaços \ ou eu te dou um pedaço do meu sorvete \ ser juiz e parte da viagem que não volta na jornada mais triste \ do navio mais louco \ Eu sou a Senhora Titanic \ aquele que nunca iria afundar em seus ferros majestosos \ agora eu tenho tudo acertado \ o tédio roxo do náufrago entre minhas sobrancelhas de inseto cleptomaníaco \ Eu nunca voltarei navegar pelos mares \ Eu estarei para sempre afogado no espelho que me cruzou \ Eu tenho a tragédia do Titanic e um iceberg nos olhos \ Eu afundo no inferno do iceberg \ O gelo nunca esteve tão quente.

MALES DE LA ENFERMEDAD (CONFESIONES) - o mal das flores envolve meu crânio \ como uma coroa de espinhos duros \ todo mundo me tem disse o mesmo \ que não há cura por esses males da alma \ o mal das flores rodeia meu cérebro \ como um corolário muito espinhoso \ todo mundo me tem disse igual que não há cura por tão grande e um mal doloroso.

Poemas da escritora e professora uruguaia Paula Einöder.

 

CAFÉ EXISTENCIALISTA – [...] A ansiedade é a vertigem da liberdade [...] É perfeitamente verdade, como dizem os filósofos, que a vida deve ser entendida de trás para frente. Mas esquecem a outra proposição, que deve ser vivida para frente. E se pensarmos sobre esta proposição, torna-se cada vez mais evidente que a vida nunca pode ser realmente compreendida no tempo, porque em nenhum momento particular posso encontrar o local de descanso necessário para compreendê-la. [...] As ideias são interessantes, mas as pessoas o são muito mais. [...] Você deveria fazer suas escolhas como se estivesse escolhendo em nome de toda a humanidade [...] Penso com tristeza em todos os livros que li, em todos os lugares que vi, em todo o conhecimento que acumulei e que não existirá mais. Toda a música, todas as pinturas, toda a cultura, tantos lugares: e de repente nada. Eles não fizeram mel, essas coisas, eles não podem fornecer nenhum alimento para ninguém. No máximo, se meus livros ainda forem lidos, o leitor pensará: Não houve muita coisa que ela não tenha visto! Mas aquela soma única de coisas, a experiência que vivi, com toda a sua ordem e a sua aleatoriedade - a Ópera de Pequim, a arena de Huelva, o candomblé na Bahia, as dunas de El-Oued, a Avenida Wabansia, as madrugadas na Provença , Tirinto, Castro conversando com quinhentos mil cubanos, um céu sulfuroso sobre um mar de nuvens, o azevinho roxo, as noites brancas de Leningrado, os sinos da Libertação, uma lua laranja sobre o Pireu, um sol vermelho nascendo sobre o deserto , Torcello, Roma, todas as coisas de que falei, outras que deixei por dizer — não há lugar onde tudo isso possa voltar a viver. […] De agora em diante, escreveu ele, devemos sempre levar em conta o nosso conhecimento de que podemos destruir-nos à vontade, com toda a nossa história e talvez com a própria vida na Terra. Nada nos impede, a não ser a nossa livre escolha. Se quisermos sobreviver, temos que decidir viver. Assim, ele ofereceu uma filosofia projetada para uma espécie que havia acabado de se assustar, mas que finalmente se sentia pronta para crescer e assumir responsabilidades. [...] poucas pessoas arriscarão a vida por uma coisa tão pequena como levantar um braço – mas é assim que os poderes de resistência de alguém são desgastados e, eventualmente, a responsabilidade e a integridade de alguém vão com eles [...]. Trechos extraídos da obra At the Existentialist Café: Freedom, Being, and Apricot Cocktails (Random House, 2017), da premiada escritora e professora britânica Sarah Bakewell, fornecendo um relato dos existencialistas modernos que vieram por conta própria antes e durante a Segunda Guerra Mundial, discutindo as ideias da fenomenologia e como influenciou a ascensão do existencialismo.

 

DISCURSO DO COLONIALISMO – [...] A maldição mais comum neste assunto é ser a vítima de boa-fé de uma hipocrisia coletiva, hábil em colocar mal os problemas para legitimar melhor as odiosas soluções que lhes são oferecidas [...] O que estou querendo dizer? Nesta ideia: que ninguém coloniza inocentemente, que ninguém coloniza impunemente; que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização – e portanto a força – já é uma civilização doente, uma civilização moralmente doente, que irresistivelmente, progredindo de uma consequência a outra, de uma negação a outra, clama pelo seu Hitler, Quero dizer, sua punição. [...] As pessoas ficam surpresas, ficam indignadas. Eles dizem: “Que estranho! Mas não importa – é o nazismo, vai passar!” E eles esperam e esperam; e escondem de si mesmos a verdade de que isso é barbárie, mas a barbárie suprema, a barbárie culminante que resume todas as barbáries cotidianas; que é o nazismo, sim, mas que antes de serem suas vítimas, foram seus cúmplices; que toleraram aquele nazismo antes que ele lhes fosse infligido, que o absolveram, lhe fecharam os olhos, o legitimaram, porque, até então, só tinha sido aplicado a povos não europeus; que cultivaram esse nazismo, que são responsáveis por ele, e que antes de engolir toda a civilização ocidental e cristã nas suas águas avermelhadas, ela escorre, escorre e escorre por todas as fendas. [...]. Trechos extraídos da obra Discurso sobre el colonialismo (Akal, 2006), do poeta francês Aimé Césaire (1913-2008), que em sua obra Notebook of a Return to the Native Land (Wesleyan Poetry Series -  Wesleyan University Press, 2001), expressa que: […] Cuidado, meu corpo e minha alma, cuidado sobretudo em cruzar os braços e assumir a atitude estéril do espectador, pois a vida não é um espetáculo, um mar de tristezas não é um proscênio, e um homem que chora não é um urso dançarino. [...] Um homem gritando não é um urso dançante. A vida não é um espetáculo. [...]. É dele a frase: Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que cria é uma civilização decadente. Uma civilização que escolhe fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma civilização atingida. Uma civilização que usa seus princípios para trapaças e enganos é uma civilização moribunda. Veja mais aqui.

 

... Em cada verso o abismo aberto. \ O limbo como um hímen (não comestível).

Versos de Cinco poemas (2012), extraído da obra Inconfissões (CriaArt, 2023), do poeta Vital Corrêa de Araújo, organizado pelo poeta e professor Admmauro Gommes, autor da também recém lançada obra O enigma vital – aspectos da obra poética de Vital Corrêa de Araújo (CriaArt, 2023). Veja mais aqui, aqui, aqui & aqui.

 


 


 


ANNE CARSON, MEL ROBBINS, COLLEEN HOUCK & LEITURA NA ESCOLA

    Imagem: Acervo ArtLAM . Ao som do álbum Territórios (Rocinante, 2024), da premiada violonista Gabriele Leite , que possui mestrado em...