DIÁRIO DE QUARENTENA – UMA HISTÓRIA QUASE SILÊNCIO - Foi. Nem
sei como. Assim: o dia amanheceu na vida entardecida e eu anoiteci. Por aí, não
tenho do que me queixar, muito pelo contrário! Afinal viver é presente e
envelheci menino na voz de Anne Frank:
Aquele que é feliz espalha felicidade.
Aquele que teima na infelicidade, que perde o equilíbrio e a confiança,
perde-se na vida. Apesar de tudo eu ainda creio na bondade humana. Ainda nutro
algumas pouquíssimas crenças, nunca é tarde. Este mundo pode ainda ser muito
melhor, oxalá. DUAS CONTADAS NOS DEDOS
– O dedo mindinho contou pro Seu Vizinho e nem ouvi. O maior-de-todos não
gostou e chamou na grande: Vocês deixem de conversar água! Comigo é tranchan,
digo logo! Logo o Cata-Piolhos e o Fura-bolo se aproximaram em uníssono: Quéqui
houve? Esses abestalhados que ficam com conversa mole, dou logo um jeito, mando
em cima e acabo com a lorota! Ia passando Richard Strauss que resolveu apaziguar o tumulto da meninada: Quando somos jovens, imagina-se que um libreto só é interessante se
contém cenas violentas e assassinatos terríveis. Depois, começa-se a
compreender que também nos pequenos acontecimentos da vida quotidiana há coisas
que merecem ser notadas e exaltadas com intenso lirismo. É preciso aprender a
descobrir quanto existe de profundo nos fatos e nas coisas que parecem
humildes. Debaixo de um manto de púrpura muitas vezes vive uma mesquinha
criatura; sob a roupa desalinhada de um pequeno burguês dos nossos dias palpita
às vezes um coração de herói. Temos que nos curar da mania do heroísmo
cenográfico, e especialmente renunciar aos venenos, aos punhais e aos incestos.
Afagou a cabeça de cada um e saiu com um sorriso fácil. O que ele quis dizer?
Sei lá! Nem eu! Oxe, cada uma! Vambora, recada, que é melhor! Simbora, mundiça,
a gente é tudo super-herói! Ixe! TRES
& NOVE FORA - Também tive minhas predileções: gostava de gibi,
colecionei. Juntava o monturo e trocava por outros com os colegas da escola ou
do arruado. Passava horas, entretido. Nunca deixei de gostar, sempre que posso adquiro
HQs. Lembro uma vez comprando uma revistinha dessas e caiu um recorte com pensamento
do Norberto Elias: Os homens efetivamente precisam de mitos,
mas não para comandar sua vida social. Isso não funciona com mitos. Estou
profundamente convencido de que os homens conviveriam mais facilmente sem
mitos. Os mitos, parece-me, acabam sempre por se vingar. Eita! Ah,
iconoclasta como sou, desmitologizei a realidade estudando por certo tempo os
antigos, egípcios, gregos, orientais, africanos. Os atuais são sem graça por
sua simbologia retrógrada, quando não desprezíveis ou enganadores. Eu, hem? Vou
ali ver se acho assunto para conversar, tá? Até segunda! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS: [...] Em geral não se
matam os prisioneiros de guerra, que são feitos escravos. Nossos rebanhos são
populações escravas. O trabalho deles é se reproduzirem para nós. Até seu sexo
transforma-se em uma forma de trabalho. Não os odiamos mais porque nem sequer são
dignos do nosso ódio. Nós os vemos com desprezo. Mas ainda existem animais que
odiamos, como os ratos, que não se renderam. Eles reagem, se organizam em
unidades subterrâneas em nossos esgotos. Não estão vencendo, mas também não
estão perdendo. Sem falar dos insetos e micróbios, que podem nos vencer e
certamente sobreviverão a nós.
[...] O segundo Outro da
nossa cultura é o primitivo (o índio, o selvagem), que chegou a gerar uma
questão teológica, dirigida sob forma de consulta ao papa: os índios têm alma?
Na mesma época, na sociedade brasileira, começava a aparecer o negro como
instrumento de trabalho. Os índios fugiam ao trabalho, mas adotavam a religião
dos senhores que lhes era incutida por meio da catequese, que entretanto também
teve seus paradoxos. Assim é que o motivo de maior estranhamento dos que vinham
de fora, os portugueses e os jesuítas da catequese, era a antropofagia entre os
índios. E não os afligia de modo nenhum o comportamento religioso dos escravos,
que praticavam interessantíssimo sincretismo religioso. Aliás, ‘sincretismo’
talvez não seja a noção adequada, já que as divindades originárias da cultura
religiosa dos negros escravos, os orixás, eram ocultadas por santos católicos
que mantinham com estes certas semelhanças. Mas não havia ocultamento do
canibalismo. Todos os depoimentos que temos, os escritos da época da
descoberta, todos os documentos mostram que o canibalismo era uma antropofagia.
Existe o canibalismo que não é antropofágico como, por exemplo, a ingestão de
partes pequenas, como unhas e pedaços de dedos dos mortos. A absorção da carne
humana, da carne do outro, morto em batalha, era antropofagia, a ingestão do
inimigo chamado ‘sagrado’, inimigo sacro, aquele que tinha virtudes a serem aproveitadas.
A ingestão de carne humana era, então, ao mesmo tempo um ato de vingança e de
apropriação das faculdades do inimigo corajoso. Essa ingestão proporcionava,
portanto, uma continuidade mágica do espólio consumido. [...] A questão não só do índio como do negro em
nossa cultura se coloca sob dois focos. Um foco mais antigo era considerar que
esses ‘primitivos’ tinham uma mentalidade diferente da nossa, chamada ‘pré-lógica’,
não-lógica porque antecede a lógica. [...] E desculpai-me, também vós todos, por esse quadro de horror. Trechos
do ensaio O animal e o primitivo:
os Outros de nossa cultura (Suplemento, dez.
2007), do premiado filósofo, escritor, professor e crítico literário Benedito Nunes (1929-2011), autor de
obras como Quase
um plano de aula (2009), A
Filosofia Contemporânea (1967), Crivo
de papel (1998), No tempo do niilismo e outros ensaios (1993) Hermenêutica
e poesia - O pensamento poético (1999) e A Clave do Poético (2009),
entre muitos outros.
A POESIA DE CRAIG ARNOLD
Acorde quando tudo for possível / antes do tumulto do dia
/ pegue você / vá para a cozinha / e descasque uma pequena bola de basquete /
no café da manhã / rasgue a concha / como um algodão enchendo uma nuvem de óleo
/ vaporizando de suas punções poros / limpos e ácidos
como pimenta / afrouxar / cada cunha rosa pálido do estojo / com cuidado sem
quebrar / não uma célula de pérola / deslizar cada peça / para uma tigela de
porcelana fria / o suco formando uma lacuna até tudo / o
fruto é separado da sua pele / e só então para comer / tão doce / uma
disciplina / precisamente um devoto inútil / intervenção das mãos e dos
sentidos / uma pausa um pequeno vazio / a cada ano mais difícil de viver / a
cada ano mais difícil de viver sem ele.
CRAIG ARNOLD – Poema Meditation
on a Grapefruit, do premiado poeta e professor estadunidense
Craig Arnold (1967-2009), autor do livro Shells (1999), entre
outros.
&
REGINA AZEVEDO
vários incêndios / você e sua febre / me lembram que hoje ainda não / pensamos
/ no ano que entra / quantos precipícios cabem / no caminho quantos terremotos
/ quantos imprevistos quantas / vezes reaprender a dormir / sozinhos / quantos
gatos quantas plantas / podemos amar / quantas planilhas eu posso / preencher,
o que é preciso / além da chave, / água, janelas / esqueço o que já vem / incluo
o preço do vaso sanitário / do chuveiro / basta teu nome estendido numa cama / tua
pele, água corrente / lembrar das coisas que já existem / um chão, uma coleção
de conchas / e pequenas certezas / ao amanhecer
REGINA AZEVEDO – Poema da poeta Regina Azevedo que há publicou Candura (2014), Das vezes que morri
em você (2013), Por isso eu amo em azul intenso (2015), Carcaça (2015) e Pirueta
(2017), afora uma série de participações em fanzines, festivais, revistas,
curadorias e traduções. Veja mais aqui.
A ARTE DE Rebecca Sugar
A arte da premiada animadora, compositora, escritora
e ativista estadunidense Rebecca Sugar, criadora da série animada
televisa Steven Universo e que trabalhou na série Hora de Aventura. Veja mais
aqui.
&
COLETIVO REBU
O Coletivo Rebu trabalha na defesa de direitos, no
enfrentamento a violência, na defesa da saúde integral das mulheres que exercem
o trabalho sexual, o reconhecimento do trabalho sexual como trabalho e o
combate ao estigma, envolvendo trabalhadoras sexuais cis, trans e travestis.
Já realizou o documentário Filhos da Puta,
apresentando três filhos de trabalhadoras sexuais e suas histórias, e o
lançamento do livro Putafeminismo
(2018), da trabalhadora sexual, ativista e putafeminista Monique Prada, que fala sobre as primeiras experiências com o sexo
casual aos 15 anos de idade, a entrada no mundo da prostituição aos 19, quando
ainda trabalhava como estagiária em um escritório de advocacia, e a descoberta
do feminismo. Veja mais aqui.
PERNAMBUCULTURARTES
címbalos soam a palavra / Sangarida / sopra terral no ostensório do meu
nome / teu nome / pedra / recifes à flor das águas / cinge aves do mar e peixes
/ amotinando-os ao verbo magro dos viajantes / Sangarida / tuas veias marítimas
sangram o signo / habitam-me o ventre / ressuscitam sereias nas siremusas / anunciam
o sal / não só vermelho cor da tarde / Sangarida Sangarida / o sangue principia
novo nome
Poema Matris Dies, da poeta Jacineide Travassos, autora do Livro
dos Ventos. Veja mais aqui.
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A poesia
de Solano Trindade (1908-1974) aqui;
A arte
de Maria Paula Costa Rego aqui.
A música
da cantora e compositora Ana Diniz aqui.
A arte
de Roberto Ploeg aqui.
O Recife: histórias de uma cidade, do professor, advogado,
historiador e pesquisador Antônio Paulo Rezende aqui.
O
espetáculo Retratos de chumbo: as rosas que enfrentaram os canhões, texto e
direção de Oséas Borba Neto e montagem Grupo de Teatro João Teimoso aqui.
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