BILHETE JOGADO - Saí de
casa, tinha de. Sem ter para onde ir, a esmo. Por intuição rumei pro Leste, o
Sol e o tempestuoso Atlântico. O mar que sou nascente e vida. A convulsão,
vibrações extremas. Renascia: a placidez em mim. Um reencontro, prazer real:
sou em mim e em tudo. Contemplo e interajo. Nunca fui tão imenso, da aurora ao
crepúsculo. Veio o céu estrelado e tinha de ir. Para onde? Não sabia. Comecei a
andar e segui pro Sul, sem bússola nem hora de chegada. Pés na areia, não havia
tempo, apenas terras lavadas que vi e não sabia: quase matas, rios quase secos,
vida devastada. Andanças que deu na Terra do Fogo Antártico, a correr o risco
de morrer de fome ou de frio no centro de duplo polo inacessível, sem fuso e
com pinguins dançando na aurora austral por lagos subglaciais e sangue na
geleira de Taylor. Tudo passa e passei. Ah se pudesse voar, pervígil caminhar,
errâncias, sina até onde desse o fim do mundo ali. Não havia e, sem perceber,
ia já pro Oeste à deriva continental pelo círculo de fogo do Pacífico, ah namoro
de El Niño com La Niña, cordilheiras
que sonhei a dar com mistérios incas, maias e astecas, altos das quimeras,
solidões de nunca mais, até me ver no Glacial Ártico e as Valquírias com
seus elmos e lanças, passavam montadas em seus cavalos e traziam a aurora
boreal com os relâmpagos de arenque, os fogos de raposa da Lapônia e os
espíritos dos altos reinos que rodeiam o oceano – os ancestrais dos agonquinos
que dançam para que os esquimós me mostrem a oscilação de Chandler e os
ursos polares pelo cluster do Monte Qaf, o purgatório de Dante e Virgílio; no trajeto
do Capitão Hatteras de Verne, avistei os seres da Hiperbórea e sequer imaginei na
ilha de Bathurst, em Nunavut. Era preciso voltar entre as almas dos guerreiros
mortos da Letônia. Cenas que vi e esqueci, agora rondando minha cabeça, reprises
das estações e renascimentos do que fui pro que sou. Só vivia andejo, os esplendores
do dia, muito pôr do Sol, ventanias, os que vagavam e se perderam
circunspectos, aclives de ontens, declives íngremes, a periferia das coisas, tremores
e meus estremecimentos. Logo dei nos bosques de Walden, lá estavam, às
gargalhadas, Thoreau e o barão de Münchhausen.
Ouvi suas conversas, discernia, relaxava: preciso aprender a puxar meu
próprio cabelo. Nem havia me dado conta de horas, dias, meses, anos, passaram. Thoreau
falou pro barão: Só resta a você, a mim e a quem quer que seja, viver. Nunca
desistir. Ah, sim, persistir, perseverar. Tinha de ir, voltar para casa. Como, se
não tinha mais paradeiro, do íntimo para qualquer lugar, o aprendizado de ver
as coisas, a América continental e senti-las, amá-las como são e sou,
reaprender com o visto por todo trajeto desde que saí da minha rua, passadas
pelo inesperado de arregalar os olhos, de bater nos peitos e segurar a onda, escapei
por árvores e coisas que se transformavam em mulheres que falavam de algo da
alma, o vento e os sons da noite que contavam do raiar do dia, caminhos nas
mãos feitos para os pés. Sabia que não era louco nem herói, nem sei quem sou e
o que faço entre círculos e recomeços, livre para renunciar das convenções e
gozar de ser livre. Não mais descontente de si e de nada porque livre, não mais
ombros pesados, cabeça baixa, olhar perdido, acanhado, estranho no seu próprio
lar, tudo tão vazio, o Caribe, a Barreira do Inferno, o chão da minha terra e
retomar o caminho. Nesse minimalismo me descobri supérfluo, um a mais,
qualquer; uma carta de um imenso baralho e descartável, um entre tantos uns e
zeros que pulam e rolam, inútil quanto contar e ser. Mas sou eu e como posso,
sozinho na verdadeira vida para quem me ama. © Luiz Alberto Machado.
Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] A cegueira que nos impede de ver tanto a
riqueza da diversidade quanto a própria diversidade é o que chamo de
monocultura da mente. A monocultura da mente é, literalmente, a raiz da
ditadura sobre a Terra. É um instrumento de poder e controle. Não produz mais.
Controla mais. [...] As monoculturas da
mente fazem a diversidade desaparecer da percepção e, consequentemente, do
mundo. O desaparecimento da diversidade corresponde ao desaparecimento das
alternativas – e leva à síndrome FALAL (falta de alternativas). Com que
frequência, nos tempos de hoje, o extermínio completo da natureza, tecnologia,
comunidades e até de uma civilização inteira não é justificado pela “falta de
alternativas”? As alternativas existem, sim, mas foram excluídas. Sua inclusão
requer um contexto de diversidade. Adotar a diversidade como uma forma de
pensar, como um contexto de ação, permite o surgimento de muitas opções. [...] Proteger as sementes nativas é mais que uma
questão de preservar a matéria-prima para a indústria da biotecnologia. As
diversas sementes que agora estão fadadas à extinção carregam dentro de si
sementes de outras formas de pensar sobre a natureza e de outras formas de
produzir para satisfazer nossas necessidades. [...] a uniformidade e a diversidade não são apenas maneiras de usar a terra,
são maneiras de pensar e de viver. [...] a expansão das monoculturas tem mais a ver com política e poder do que
com sistemas de enriquecimento e melhoria da produção [...] a uniformidade anda de mãos dadas com a
centralização, enquanto a diversidade requer um controle descentralizado
[...] A silvicultura “científica” e a
agricultura “científica” dividem
artificialmente a planta em domínios separados sem partes em comum, com base
nos mercados isolados de bens aos quais fornecem matéria-prima e recursos.
[...] o mundo vegetal não é artificialmente dividido entre uma floresta que
fornece madeira comercial e terra cultivável que fornece mercadorias em forma
de alimentos. A floresta e o campo são um continuum ecológico. [...] As monoculturas ocupam primeiro a mente e depois são transferidas para o
solo. As monoculturas mentais geram modelos de produção que destroem a
diversidade e legitimam a destruição como progresso, crescimento e melhoria. [...] A expansão das monoculturas tem mais a ver
com política e poder do que com sistemas de enriquecimento e melhoria da produção
biológica. Isso se aplica tanto à Revolução Verde quanto à revolução genética
ou às novas biotecnologias. E ainda: As monoculturas da mente fazem a
diversidade desaparecer da percepção e, consequentemente, do mundo. O
desaparecimento da diversidade corresponde ao desaparecimento das alternativas.
Adotar a diversidade como uma forma de pensar, como um contexto de ação,
permite o surgimento de muitas opções. [...].
Trechos
extraídos da obra Monoculturas
da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia (Gaia,
2003), da Ph.D em Filosofia, física, ecofeminista e ativista ambiental indiana, Vandana Shiva. Veja
mais aqui e aqui.
FÁBULA DE ESOPO
Uma lebre, perseguida pela águia, pediu
refúgio na casa de um besouro. O besouro, valente e generoso, decidiu defender
a lebre e disse à águia: ‘Em nome de Júpiter, você deve respeitar o direito de
exílio. A lebre agora é minha hóspede.’ Ignorando a argumentação, a águia jogou
o besouro a um lado e devorou a lebre de imediato. Magoado, o besouro decidiu
não dar trégua à opressão da águia. Ele foi até o ninho da águia e
jogou os ovos dela no chão, um a um. Não havia nisso uma vingança
pessoal, mas uma luta em favor dos mais fracos. A águia construiu um segundo
ninho, bem mais alto, mas o besouro foi até lá e repetiu a operação. Diante
disso, a águia procurou Júpiter para buscar um acordo com o
besouro. O chefe dos deuses tentou acalmar o besouro, mas foi
inútil. Pediu a ele que pensasse em uma conciliação, e a ideia foi rejeitada. O
último recurso encontrado por Júpiter para evitar a extinção da águia foi mudar
a época da sua reprodução para uma estação do ano em que os besouros não estão
em atividade. Moral da história: “o carma do abuso de poder é pesado,
e os opressores cedo ou tarde devem reencontrar-se com a justiça e o equilíbrio”.
A águia e o besouro, fábula
extraída da obra Esopo: fábulas completas (Cosac Naify, 2013), do
escritor grego Esopo (620 a.C. - 564 a.C.), contada pelo autor por
ocasião de sua defesa perante Perístrato, dirigente de Atenas que era inimigo
da liberdade de pensamento, por conta da acusação de sacrílego pelo oráculo de
Delfos, em razão de seu discurso irreverente na defesa dos mais fracos e da
verdade, reafirmando que os privilegiados devem respeitar os direitos dos mais
fracos, porque os abusos de poder são sempre punidos pelos deuses. Veja mais
aqui, aqui & aqui.
A ARTE DA
BAILARINA ANA VITÓRIA
Minhas coreografias se concentram no
movimento, na pesquisa do gesto. Não gosto de formatar conceitos, não utilizo
recursos literários ou teatrais, tampouco construo personagens. Do cinema e da
literatura retiro apenas ideias técnicas, que aplico à estrutura da
coreografia. Elementos da cultura brasileira, como o candomblé e a capoeira,
podem se inserir em minha escritura coreográfica, mas de forma apenas
referencial. Da ginástica rítmica conservo a precisão e a exploração
energética. Acima de tudo, é da dinâmica dos movimentos que surge a minha
poética.
A arte
da bailarina, coreógrafa e diretora artística da companhia que leva seu nome, Ana Vitória, que é doutora em artes
cênicas e desenvolve junto às instituições universitárias, grupos de dança e
companhias de dança, a sua pedagogia de investigação criativa a partir dos
estudos autobiográficos, da memória e dos afetos. Seu trabalho como
intérprete-criadora se deu desde cedo apontando já sua inquieta curiosidade
pela busca do trabalho autoral, da escrita de si e a diversidade de potências
expressivas no universo artístico. Seu exercício cênico foi gradualmente se
aprofundando, desde a linguagem gestual à ocupação dos espaços de suas
apresentações, ao buscar cada vez mais, tocar e estar mais próxima do seus
interlocutores/espectadores, como atestam suas três últimas criações que
assumem a presença do objeto e seu próprio corpo como instalações
performáticas. Veja mais aqui.
A OBRA DE KLIMT
A arte é uma linha em torno de seus
pensamentos. Toda arte é erótica.
A obra do
pintor simbolista austríaco Gustav Klimt (1862-1918) aqui, aqui, aqui,
aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.
&