sábado, janeiro 17, 2015

A POESIA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO



LIÇÃO DE POESIA

Toda a manhã consumida
Como um sol imóvel
Diante da folha em branco:
Princípio  do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
Sequer uma linha;
Um nome, sequer uma flor
Desabrochava no verão da mesa:

Nem no meio-dia iluminado,
Cada dia comprado,
Do papel, que pode aceitar,
Contudo, qualquer mundo.

A noite inteira do poeta
Em sua mesa, tentando
Salvar da morte os monstros
Germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
De palavras, circulando,
Urinando sobre o papel,
Sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
Da ideia fixa, carvão
Da emoção extinta, carvão
Consumido nos sonhos.

A lua branca sobre o papel
Que o poeta evita,
Luta branca onde corre o sangue
De suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
Entre os gestos diários;
Susto das coisas jamais pousadas
Porém imóveis – naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
Nas águas salgadas do poeta
E de que se servirá o poeta
Em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
De que conhece o funcionamento,
A evaporação, a densidade
Menor que a do ar.

O ARTISTA INCONFESSÁVEL

Fazer o que seja inútil.
Não fazer nada de inútil.
Mas entre fazer e não fazer
Mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
Que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
Que ele é inútil, e bem sabendo
Que é inútil e que seu sentido
Não será sequer pressentido,
Fazer: porque ele é mais difícil
Do que não fazer, e dificilmente
Se poderá dizer
Com mais desdém, ou então dizer
Mais direto ao leitor Ninguém
Que o feito o foi para ninguém.


EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação peça pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta;
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.



MENINO DE ENGENHO

A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
Ganha o gume afiado da foice
Que a corte em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana
Cortou-me ao quase de cegar-me,
E uma cicatriz, que não guardo,
Soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;
O inoculado, tenho ainda;
Nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.

VENTO NO CANAVIAL

Não se vê no canavial
Nenhuma planta com nome,
Nenhuma planta Maria,
Planta com nome de homem.

É anônimo o canavial,
Sem feições, como a campina;
É como um mar sem navios,
Papel em branco de escrita.

É como um grande lençol
Sem dobras nem bainha;
Penugem de moça ao sol,
Roupa lavada estendida.

Contudo há no canavial
Oculta fisionomia:
Como em pulso de relógio
Há possível melodia,

Ou como de um avião
A paisagem se organiza,
Ou há finos desenhos nas
Pedras da praça vazia.

Se venta no canavial
Estendido sob o sol
Seu tecido inanimado
Faz-se sensível lençol,

Se muda em bandeira viva,
De cor verde sobre verde,
Com estrelas verdes que
No verde nascem, se perdem.

Não lembra o canavial
Então, as praças vazias:
Não tem, como têm  as pedras,
Disciplina de milícias.

É solta sua simetria:
Como a das ondas na areia
Ou as ondas da multidão
Lutando na praça cheia.

Então, é da praça cheia
Que o canavial é a imagem:
Veem-se as mesmas correntes
Que se fazem e desfazem,

Voragens que se desatam,
Redemoinhos iguais,
Estrelas iguais àquelas
Que o povo na praça faz.


A VOZ DO CANAVIAL

Voz sem saliva da cigarra,
Do papel seco que se amassa,

De quando se dobra o jornal:
Assim canta o canavial,

Ao vento que por suas folhas,
De navalha a navalha, soa,

Vento que o dia e a noite toda
O folheia, e nele se esfola.

ARQUITETURA DA CANA-DE-AÇÚCAR

Os alpendres das casas-grandes,
De par em par abertos, anchos,
Cordiais como a hora do almoço,
Apesar disso não são francos.

O aberto alpendre acolhedor
No casarão sem acolhimento
Tira a expressão amiga, amável,
Do que é de fora e não de dentro:

Dos lençóis de casa, tendidos,
Postos ao sol até onde a vista,
E que lhe dão sorriso aberto
Que disfarça o que dentro é urtiga.


O FOGO NO CANAVIAL

A imagem mais viva do inferno.
Eis o fogo em todos seus vícios:
Eis a ópera, o ódio, o energúmeno,
A voz rouca da fera em cio.

E contagioso, como outrora
Foi, e hoje não é mais, o inferno:
Ele se catapulta, exporta,
Em brulotes de curso aéreo,

Em petardos que se disparam
Sem pontaria, intransitivos;
Mas que queimada a palha dormem,
Bêbados, curtindo seu litro.

(O inferno foi fogo de vista,
Ou de palha, queimou as saias:
Deixou nua a perna da cana,
Despiu-a, mas sem deflorá-la).

A MULHER E A CASA

Tua sedução é menos
De que mulher do que de casa:
Pois vem de como é por dentro
Ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
Tua plácida elegância,
Esse teu reboco claro,
Riso franco de varandas.

Uma casa não é nunca
Só pra ser contemplada;
Melhor: somente por dentro
É possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
Ou será, quando se abra;
Pelo que pode ser dentro
De suas paredes fechadas;

Pelo que dentro fizeram
Como seus vazios, com o nada;
Pelos espaços de dentro
Em corredores e salas,

Os quais sugerindo ao homem
Estâncias aconchegadas,
Paredes bem revestidas
Ou recessos bons de cavas,

Exercem sobre esse homem
Efeito igual ao que causa:
A vontade de corrê-la
Por dentro, de visitá-la.



O SOL EM PERNAMBUCO

(O sol em Pernambuco leva dois sóis,
Sol de dois canos, de tiro repetido;
O primeiro dos dois, o fuzil de fogo,
Incendeia a terra: tiro de inimigo.)
O sol ao aterrissar em Pernambuco
Acaba de voar dormindo o mar deserto
Dormiu porque deserto; mas ao dormir
Se refaz, e pode decolar mais aceso;
Assim, mais do que acender incendeia,
Para rasar mais desertos no caminho.
Ou rasá-los mais, até um vazio de mar
Por onde ele continue a voar dormindo.

Pinzón diz que o cabo Rostro Germoso
(que se diz hoje de Santo Agostinho)
Cai pela terra de mais luz da terra
(mudou o nome, sobrou a luz a pino);
Dá-se que hoje dói na vida tanta luz:
Ela revela real o real, impõe filtros;
As lentes negras, lentes de diminuir,
As lentes de distanciar, ou do exílio.
(O sol em Pernambuco, leva dois sós,
Sol de dois canos, de tiro repetido;
O segundo dos dois, o fuzil de luz,
Revela real a terra: tiro de inimigo).

ANTIODE

Poesia, te escrevia:
Flor! Conhecendo
Que és fezes. Fezes
Como qualquer,
Gerando cogumelos
(raros, frágeis, cogumelos)
No úmido
Calor de nossa boca.
Delicado, escrevia:
Flor! (Cogumelos
Serão flor? Espécie
Estranha, espécie
Extinta de flor, flor
Não de todo flor,
Mas flor, bolha
Aberta no maduro).
Delicado, evitava
O estrume do poema,
Seu caule, seu ovário,
Suas intestinações.
Esperava as puras,
Transparentes florações,
Nascidas do ar, no ar,
Como as brisas.



A BAILARINA

A bailarina feita
De borracha e pássaro
Dança no pavimento
Anterior do sonho.

As três horas de sono,
Mais além dos sonhos,
Nas secretas câmaras
Que a morte revela.

Entre monstros feitos
A tinta de escrever,
A bailarina feita
De borracha e pássaro.

Da diária e lenta
Borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
Que não sei caçar.

NOTURNO

O mar soprava sinos
Os sinos secavam as flores
As flores eram cabeças de santos.

Minha memória cheia de palavras
Meus pensamentos procurando fantasmas
Meus pesadelos atrasados de muitas noites.

De madrugada, meus pensamentos soltos
Voaram como telegramas
E nas janelas acesas toda a noite
O retrato da morta
Fez esforços desesperados para fugir.


O POEMA E A ÁGUA

As vozes líquidas do poema
Convidam ao crime
Ao revolver.

Falam para mim de ilhas
Que mesmo os sonhos
Não alcançam.

O livro aberto nos joelhos
O vento nos cabelos
Olho o mar.

Os acontecimentos de água
Põem-se a se repetir
Na memória.

POESIA

Ó jardins enfurecidos,
Pensamentos palavras sortilégio
Sob uma lua contemplada;
Jardins de minha ausência
Imensa e vegetal;
Ó jardins de um céu
Viciosamente frequentado:
Onde o mistério maior
Do sol da luz da saúde?


JOÃO CABRAL DE MELO NETO – Um dos mais importantes poetas da literatura brasileira, João Cabral de Melo Neto (1920-1999), desenvolveu uma poética que perpassa a poesia surrealista e a poesia popular com o apuro do rigor estético. Figura ímpar e singular, utilizou-se de rimas toantes para inaugurar uma nova forma no fazer poético. Veja mais aqui.


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