CÉU CAETÉ DE TUPÃ - “Os
pássaros guardam entre nós alguma coisa do canto da criação”. Saint-John Perse. - O canto e o voo, toda
minha vida. O canto do voo, voar a cantar: sou japim pela brisa como se
pairasse sobre as águas primordiais. Antes não havia nada. Ao abrir meus olhos
pela primeira vez: Tupã sorria e tudo passou a existir. Ele então me contou
como tudo aconteceu. Contava e tudo eu via! A terra era o céu. Tudo era céu no
meu solfejo. Piava com espanto: é que depois do som, um tom: silvos e assovios,
trinados e gorjeios, quantos estalidos & Néstogas - o verbo cantava. E pulsava
- fusas, mínimas e colcheias nas águas da correnteza, no vento das folhas,
chuva na relva, poeira da brisa nas pedras, no desabrochar colorido das flores,
nas ondas dos mares e marés. Havia um respirado buliçoso, seres e coisas
dançavam. Eu também dançava e podia viver pelas paragens celestiais até
testemunhar o caos primordial, enquanto Hoen-Tsin crescia
a cada dia até se tornar grande demais para o universo e morreu. Dele brotou um
ovo enorme que o vi quebrar: diante de mim estava P'an-ku que acabava de nascer:
livrou-se das cascas do próprio ovo e selou seu nascimento quando o yang formou o céu e o ying a terra. P'an-ku estava entre os
giros de nadas e tudo. O seu corpo se transformava nove vezes ao dia e sua
cabeça apoiava o céu e seus pés estabilizavam a terra. Foi assim que o céu e a
terra se separaram. Havia ali junto outro ovo e era a Grande Grasnadora. Eu vi.
E passaram a um convívio íntimo. Deles nasceu Bennu com sua coroa branca sobre
a cabeça repleta de plumas coroadas, repousando sobre a pedra Benben, o
primeiro pedaço de terra emersa das águas primordiais de Nun. Do outro lado, na
fonte de abundantes águas estava a Simorgh, a fabulosa criatura alada, que
possui o conhecimento de todas as eras e purifica as águas e o chão da Terra.
Sua determinação era uma só: manter a união da Terra com céu. Outra vez a
Simorgh passou carregando um elefante para a Árvore da Vida, pelo mar de
Vourukhasa. Ao se livrar do pesado animal, amamentou seu filhote. E ela era como
se fosse um pavão gigante com penas da cor de cobre, ora com feição humana, ora
como um cão com garras de leão. Ao ver-me disse que já presenciou a destruição
do mundo por mais de três vezes e, a cada mil e setecentos anos, ela mergulha
nas chamas e desaparece até ressuscitar. Doutra feita lá ia a Simorgh e levava
uma baleia para o mesmo local onde deixou o elefante. Depois voava sacudindo as
folhas de tudo-cura, cujas sementes flutuavam nos ventos de Vayu-Vata, ao redor
do mundo, provocando as chuvas de Tishtrya para curar as enfermidades da
humanidade. Não sei quantas vezes ela aparecia atacando cobras, só
interrompendo para dar atenção às trinta poupas que procuravam por um rei entre
elas ou quando se dirigia para amamentar seus filhotes. Para as poupas apenas
disse que se quisessem tornar uma delas num rei, teriam de atravessar os vales
de Talab, de Eshq, de Marifat, de Istighanah, de Tawhid, de Hayrat, de Fuqur e
Fana, até chegarem ao Monte Qaf. E repetiu: atravessar os vales... E mais uma
vez disse: atravessar os vales... Enfim, finalizou: Chegando lá é que terão a ciência
de quem o eleito. Entenderam? Eles anuíram em silêncio e ela saiu sem mais nada
dizer. As poupas em revoada. Não muito longe dali a Fênix entre labaredas: estava
em combustão antes de morrer. Minha nossa! Ela estava mesmo pegando fogo. Como
é que pode? Cheguei tarde para ver-lhe majestosa. Aquietei-me e fiquei espiando
aquele estranho evento. Vi-lhe reduzida às cinzas. Não demorou muito e, aos
poucos, numa ventania a poeira subiu e, aos poucos pude constatar: ela
renascia. Tomava corpo e logo estava edificada na sua imponência. Completamente
refeita ela aproximou-se e me fez um convite para a dança de Kinnaris na
floresta Himavanta. Hem? Vamos! Aceitei e quando chegamos lá vi uma criatura
que era metade mulher e metade ave: possuía a cabeça, torço e braços de mulher;
também asas, cauda e pernas de cisne; e entoava poesias e canções. Com os seus meneios,
logo chegou ali o Kinnara, oriundo dos Himalaias, para completar a música
celestial. O casal cantante era benevolente e velava pelo bem-estar do universo
em tempos de perigo ou tumulto. Ali fiquei embalado e nem percebi que a Fênix acompanhava
satisfeita aquela poética apresentação. Com o término do imenso cantarau, ambos
fizeram uma mesura elegante e agradeceram a nossa atenção. Aplaudimos
efusivamente. Uma cortina de nuvem cobriu o palco e eu vi a Fênix com os olhos
rasos d’água. Fitou-me, abraçou-me e se despediu com um aceno. Fiquei um tempo
ali um tanto embevecido com tudo que fora encenado, até lembrar-me de retornar
aos aposentos de Tupã. No caminho de volta, eis que presencio os últimos
estertores de P’an-ku. Sim, ele morreu e sua respiração tornou-se o vento e as
nuvens, sua voz o trovão, seus olhos o Sol e a Lua, seus membros os quatro
cantos da terra, o seu sangue os rios, sua carne o solo, seu cabelo e barba as
constelações, sua pele e pelos as plantas e árvores, seus dentes e ossos os
metais e pedras, sua medula o ouro e seu suor a chuva. Os parasitas do seu
corpo tornaram-se seres humanos. Com o meu regresso Tupã mostrou-me a noite no
coco de tucumã com todos os seus bichos. Ouvi atento e sabia: a noite deve ser linda.
Sim. Logo ele me chamou a atenção para outra coisa e me ensinou que se cansasse
da escuridão era só olhar do lado para ver o voo do cajubi anunciando o dia com
o Sol descendo até o chão do seu reinado sobre tudo e todas as coisas. Foi
assim: a manhã vivia no coco de cajubi, guardado pelo urubu-rei que morava num
buraco vermelho da Via Láctea. Um susto com a chegada do urubu-branco, sem
querer, quebrou-se o coco e surgiu a alvorada. A partir de então reinava o dia
e, com ele, Mbud-ti que logo desceu até a Terra e admirou-se com tudo, muito
feliz pelas maravilhas. Dias se passaram e se sentiu sozinho. Toda manhãzinha e
convém lembrar: a vida nos olhos de todas as manhãs, o direito de viver e
deixar viver. Tudo o mais era o espetáculo do amor, o sumo da existência. Não
havia como olvidar de nada, porque ali era como se eu vivesse com todos e
ouvisse tudo. No entardecer era a vez de abrir o coco de tucumã e lá surgia a
Lua com o séquito de estrelas e astros luminosos para trazer a chuva boa e
regar as plantas esturricadas e adubar a terra para plantar e colher no pitéu
toda mandioca, banana, jerimum, inhames e carás, fartando os potes e enchendo
as malocas. A noite adormecia no fundo das águas, no coco do tucumã, guardado
pela Cobra Grande e Azã gritando tati para acordá-la na vigilância. Mbud-ti não
suportava o seu isolamento e queria a noite para dormir. Aproveitou-se do
cochilo dos vigias e levou consigo o coco que fazia um barulhinho: tem, tem, tem
- eram os grilos, corujas, rãs, sapinhos, urutaus, morcegos e todos os seres
noturnos. Espicaçava a curiosidade, ansiava por libertar a noite daquela
prisão. Tomando distância bateu com ele na quina duma pedra e, ao se quebrar, a
noite apareceu com seu silêncio e trevas, bichos e coisas. Tudo se transformou
na escuridão. Aracuã, Jacupeba, Urutau, antes homens, tornaram-se pássaros
noturnos. Tudo era bonito de se ver. Tupã dormia com meu cantar. Ao despertar ele
logo partia para as providências, ocasião em que eu estava livre para gozar da
infinita imensidão o dia todo até de tardezinha, na boquinha da noite. Assim,
depois que o sereno imperava entre as sombras, Mbud-ti viu pela primeira vez a
sonâmbula Mbudu-vri-re, a linda e nua Capéi, vagando sem rumo. Saiu ele a toda
carreira na direção dela, mas ela desapareceu repentinamente. Cadê-la? Num
estava aqui indagorinha? Oxe! Prondela foi? Caçou pelos cantos, atravessou umbrais
e nada de sinal dela. Não desistia e mais insistia: seus passos seguiram para
longe no encalço da bela desaparecida. Mais tarde, então, Capéi acordou desnuda
e a sua brancura alumiava tudo, regulando as marés e a germinação das sementes,
o brilho das pedras, o fluxo das mulheres, o nascimento das crianças e bichos. Lá
longe ela viu um belo vulto e era Mbud-ti que rondava. Assustada, escondeu-se
numa moita. Ele passou tristemente de volta, procurando-a, sem que pudesse
vê-la escondida. Ela viu melhor aquele por quem seu coração palpitou de amor no
primeiro instante. E ao segui-lo, não mais conseguiu encontrá-lo. Havia sumido.
Eita! Cadê-lo? Outro desencontro. O solitário coração de Mbud-ti tremia de
paixão, levando-o a vagar por dias e noites à procura das pegadas da amada. O
dela, também, entregue de amor por aquele que apenas viu passar. Aí, depois de
muita busca e espera, deu-se um eclipse. Ah, encontraram-se pela primeira vez
de verdade e suspiraram apaixonados. Até que enfim. Mas... Apesar da curta
duração do evento, eles ansiaram por outro reencontro. Contudo, havia um
problema a ser resolvido: como não conciliavam o tempo e o espaço, abateu-se
uma grande tristeza nos enamorados. Durante o dia Mbud-ti perseguia de leste a
oeste tentando reencontrá-la. E, por toda noite, Capéi sonhava com a chegada do
seu amado. Os solitários cumpriam a sua sina. Logo as estrelas vieram consolar
Capéi que lamentava a dura sorte, sempre cheia ou nova com as lembranças dos
momentos com o seu amado, crescente ou minguante quando entristecida com sua
ausência. Deu-se, então, muito tempo depois, um novo eclipse e puderam namorar:
ele abraçou-a, deitou-se sobrecarregado de beijos sobre a sua alvura, envolveu-a
com a chama do seu arrebatado desejo e se amaram com êxtase. Neste momento todos
os seres do universo cantaram para alegria deles. Com o prazer de seus corpos
foram elevados aos céus para o eterno amor entre o Sol e a Lua. Quem a este
espetáculo assistiu regozijava como eu ali admirando o enlace dias e noites,
noites e dias. Até eu cantava junto aos tangarás dançantes para festejá-los.
Todavia, tinha compromissos inadiáveis: era a hora de Tupã repousar, os deixei com
a chegada de vagalumes e pirilampos. Outro dia raiou porque Zhuque apareceu seguindo
pela constelação do fogo em direção ao sul com o fito de buscar o verão. Era um
faisão admirável, vez que reluzia com os seus cinco tons de vermelho coberto de
chamas. Acenei pela sua passagem e me ocupei de embalar o banho de sol matinal
de Selenita no topo de um vulcão lunar, enquanto lá longe Kalavinka pregava o
Dharma com sua bela voz, cabeça humana, tronco de pássaro, cauda longa e
esvoaçante. Agora mesmo me ocorreu da vez que Kalavinka me contou sobre a morte
do velhíssimo abutre Jatayu. Coisa triste de lembrar: é que o vetusto, certa
feita, tentou capturar Ravana quando este raptava Sita. Por causa disso teve suas
asas cortadas na contenda. Entretanto, como era devoto de Vixnu, ele deixou
escapar a mão de Hamsá, um amuleto de múltiplas proteções, sorte e fortuna, um
símbolo de paz e esperança. E Kalavinka me deu este amuleto para que eu levasse
e entregasse à deusa-égua Rhiannon, a divina rainha das fadas, deusa da lua e
dos pássaros, dos encantamentos, da fertilidade e do submundo. A rainha vivia no Mabinogi de Pwyll, onde mantinha cuidadosamente vários pássaros que
acordavam os mortos e adormeciam os vivos, com a suavidade de sua música.
Entreguei-lhe o amuleto mandado e ela me sorriu em festa, ofertando a sua
hospitalidade para sempre. Ali entretido com tudo o que acontecia, quase não
ouvia Tupã me chamar para
aplacar uma peste entre os caetés. Eita! Veja mais aqui, aqui, aqui e
aqui.
DITOS & DESDITOS - O
mundo é um sistema complexo, interligado, finito, ecológico - social -
psicológico - econômico. Nós o tratamos como se não existisse, como se fosse
divisível, separável, simples e infinito. Os nossos problemas globais
persistentes e intratáveis surgem diretamente deste desfasamento. O recurso
mais escasso não é o petróleo, os metais, o ar puro, o capital, o trabalho ou a
tecnologia. É a nossa disposição de ouvir uns aos outros e aprender uns com os
outros e de buscar a verdade em vez de procurar estar certo... Pensamento da
cientista ambiental, professora e escritora estadunidense Donella Meadows
(1941-2001). Veja mais aqui.
ALGUÉM FALOU - Se
alguém pensa que é feliz, isso é suficiente para ser feliz... Levo comigo
apenas o tempo bom e meus filhos, que é o quanto eu quero. Somos muito fracos
quando estamos apaixonados... Pensamento da escritora francesa Madame de
La Fayette (Marie-Madeleine Pioche de La Vergne, 1634-1693).
CULTURA – [...] Antigamente, a cultura era
um bem, algo que se adquiria, se acumulava, se investia, se multiplicava. Um
homem "de cultura" era alguém que, de posse desse capital ou cabedal,
se credenciava a ocupar determinado lugar na hierarquia da sociedade.
Essa ideia perdeu quase toda a sua legitimidade, embora ainda persista em
alguns meios. Não vale mais de direito, embora continue funcionando, um pouco,
de fato. Porque cada vez consideramos menos aceitável utilizar a cultura como
gazua na luta por posições sociais. Digamos que a cultura deixou de ser uma
res, uma coisa, um bem, uma propriedade - e que se vai tornando uma postura,
uma experiência, uma atitude. [...]. Trecho extraído da obra Unicultura (UFJRGS, 2002), do
filósofo, escritor e professor da USP, Renato Janine
Ribeiro. Veja mais aqui.
SIGNIFICADO DA VIDA - [...]
Se... se você
não sente nada por mim, então não me toque! Não aja como se
você se importasse! [...] Eu gostei dela... eu realmente gostei dela. Eu queria protegê-la. Aproximei-me dela de uma maneira gentil e brincalhona, porque ela
é tão preciosa e eu queria segurá-la em meus braços porque ela é tão
despreocupada. Ela era meu tesouro [...]. Trecho
extraído da publicação I.O.N (Viz
Media, 2008), da escritora e ilustradora japonesa Arina Tanemura,
muito conhecida como Arinacchi, autora de frases como: Você descobriu o
significado da sua vida? 'Sim. Eu finalmente
descobri. É encontrar algo
mais importante para mim do que minha própria vida. Encontrar algo mais
importante para nós do que nossas próprias vidas é a razão pela qual todos
nascemos. Todos nós recebemos
uma vida dentro de nós. E Deus quer que
usemos essa vida para iniciar uma jornada ao longo da vida para encontrar algo
que seja mais importante para nós do que nós mesmos.
JUNTO À LAREIRA - Estou
sentado perto da lareira \ É aconchegante e aconchegante.\ E desperta
pensamentos sonolentos\ esse calor na sala.\ O vento sussurra fora das janelas,
\ ali a nevasca uiva e acena.\ E me convida, me convida junto\ sua voz
lisonjeira e terrível.\ Uma vez antes eu tinha uma lareira\ Bati no peito com
uma rajada de vento.\ Mas da lareira acesa\ você não se deixa levar tão
facilmente.\ Por que você me mantém em uma prisão sonolenta?\ calor ambiente?\ Por
que manter muitos na prisão \ calor ambiente?\ Por que nos permitimos ser mantidos
em cativeiro? \ Por que estamos felizes na prisão? \Estou sentado perto da
lareira. \ Não é aconchegante, não é aconchegante. Poema da escritora
estoniana Lehte Hainsalu.