TRÍPTICO DQP –- Mais
um dia... – Ao som da música Atrás das máscaras, do álbum Técnicas modernas do êxtase (Delira, 2011), no filme-ópera Último dia (2021), de Armando Lôbo, com Natália Duarte, Virginia
Cavalcanti, Surama Ramos, Walmir Chagas e Marcelo Sena (Veja mais abaixo) – Acordei
com o movimento do travesseiro e os sons da manhã. Procurei tomar pé da
situação e qual não foi a minha surpresa: era O livro do travesseiro (34, 2013). Como assim? Isso mesmo. Estava
inscrito na capa: Sei Shônagon - aquela
mesma do The Pillow Book de Greenaway. Investiguei, desconfiado, como podia tal
transformação. Ultimamente tem me ocorrido cada uma. Pois é, ajeitei-me na cama
e comecei a ler. A cada página uma surpresa: ali estava tudo o que vivi e sou -
devaneios, quedas, sucessões de idas e vindas. Atento a cada parágrafo, frase
por períodos e, pelo volume, vi que era um tanto a vencer. Persegui e era como
se estivesse procurando o começo ou o fim de O Livro de Areia de Borges e relesse mais curioso que antes:
... porque nem o livro nem a areia
têm princípio ou fim... Se o espaço for infinito, estamos em qualquer ponto do
espaço. Se o tempo for infinito, estamos em qualquer ponto do tempo... Pensei
no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente
infinita e sufocasse com fumaça o planeta... Refleti. E depois surgiu um trecho de outro conto
dele, O espelho e a máscara:
... A guerra é o belo tecido dos
homens e a água da espada é o sangue. O mar tem seu deus e as nuvens predizem o
futuro... E se misturava com
trechos do Evangelho apócrifo da infâmia. O que é isso? Outros labirintos ou será que estou
enlouquecendo, o que está acontecendo? Mais desconfiado que antes, esfreguei os
olhos e lá estava inscrito o que me tocou profundamente: Quanto a pássaros,
embora pertença a terras estrangeiras, é muito enternecedora a cacatua. Dizem
que ela imita tudo o que falam as pessoas. O cuco-pequeno. A galinha d’água. A
narceja. A gaivota, pássaro-da-capital. O pintassilgo-verde. A papa-moscas... Ah, sim, agora era ela como se me descobrisse um
xexéu incorrigível. Cabreiro, além da conta, compreendi o que ela quis dizer:
uma sensação inenarrável de quem não estava só ali. E não estava mesmo, logo a sua
presença preencheu meu quarto e era ela mesma a me dizer: Um homem que não tem nada em particular para recomendá-lo
discute todos os tipos de assuntos ao acaso, como se soubesse de tudo. Na vida,
existem duas coisas confiáveis. Os prazeres da carne e os prazeres da literatura... Sim isso eu já tinha lido no outro livro dela. E
o que está havendo? Ela sorriu, beijou-me as faces e saiu como nunca mais. E me
fez pensar na vida. Era só mais um dia. Sim, mais um dia, agora é só viver.
A vida imita a
arte... - Imagem da artista visual
& grafiteira Nina Moraes – A leitura do livro me trouxe outras cenas fora das suas
páginas e ao meu redor aconteceram coisas estranhas. Tudo parecia muito real
naquela hora e dali eu presenciava um fato ocorrido e tão lamentável como aquela
triste situação em que foi detratado o tenente
Gustl do Arthur Schnitzler: Deus do céu, tanto faz se outro sabe ou
não!... eu sei, e isto é o que importa! Sinto que sou outro, já não sou o que
fui há uma hora. – Sei que estou desqualificado e por isso devo estourar os
miolos... Que vexame! E me sentia como se eu fosse ele diante daquilo tudo
e não conseguia concatenar direito. Não sabia onde por os pés, as mãos, nem
para onde ir. Da mesma forma aquela outra deplorável circunstância em que me vi
na pele do Marlow da Juventude
de Conrad a perorar: Lembro da minha
juventude e de um sentimento que nunca mais haverá de voltar – o sentimento que
eu poderia durar para sempre, mais do que o mar, do que a terra, do que todos
os homens; o ilusório sentimento que nos atrai para alegrias, para perigos,
para o amor, para o vão esforço – para a morte... O sentimento da desolação
me trazia aqueles versos da Tamara Kamenszain: Quem por palavra fala de
seus sonhos / quando a vigília os está vigiando ou / quando na tela do lençol
se grafa / o que com esses sonhos vai envolto? Tudo me ocorria ao mesmo tempo, como se em mim outras
pessoas trafegassem e ora eu me via na misériade Abel ou nos relampejos da borboleta Dinalva. Tudo me dava conta de que viver é muito difícil. Ou
melhor, como repetia Guimarães Rosa:
Viver é muito perigoso. Para mim nunca
foi possível viver alheio ao horror, como se arrancasse os olhos, perdesse a audição,
nenhum tato, paladar ou olfato, vivesse ao vento como se caísse no poço para nadar
pelas águas, entre ondas e abismos oceânicos, alcançando grandes alturas
atmosféricas, percorrendo distâncias de tudo isso. Não, não é possível, a
tentação das contradições do mundo e as minhas instâncias se engalfinhavam, eu
sabia, a vida é luta...
O último dia... – Não sei onde fui parar, sei que ouvi uma estrofe de
Antero de Quental que eu esquecera
com o tempo e tudo mudava claroscuramente para que eu visse uma porta e,
atrás dela, um palco. Ao atravessá-la, cochichos nas coxias, agucei as ouças: Que
nada, meu! Do pescoço pra baixo tudo é canela, deu-se as costas às punhaladas.
Quem o otário para levar vantagem, o sabido pronto para a rasteira e a
cama-de-gato! Não entendia direito a que se referiam e muito menos me dei conta
da morte a rondar dançante com seus tamancos enormes. Êpa! Mais adiante mulheres
solfejavam e eu não conseguia atinar. Uma voz irrompeu, era de um morto. O que
ele disse era de si e de seus infortúnios. Ao silenciar, percebi os resmungos
de uma mulher: o brasileiro só é
solidário... Quem? Logo deu pra perceber que não era apenas uma mulher, mais. Sim,
mais de uma, porque a morte passou por perto, acompanhei seus passos até um trio
cantatriz que carpia - terços, novenas, lamúrias, o que Freud viu na festa dos sacrifícios. O defunto então se mexeu, eu
vi, ninguém mais, acho. Depois se levantou e depôs: Todo mundo é bom, apesar do
lulixo! Todos ouviram e se entreolharam questionadores. Nem eu, nem ninguém, quem
explicasse. Logo a saudação dos que ali estavam era um misto de espanto e asco,
razão pela qual comemoraram hesitantes: Ele está vivo, viva! Vivôoooo! Afetos e
antipatias se deram, era o último dia
e a paráfrase nelsonrodrigueana: o
brasileiro só é solidário na desgraça! Tanto já era carnaval desde não sei quando. Assim, todo dia passa,
evoé. Até mais ver.