TRÍPTICO DQP – O
reino do imaginário - Ao som de An
imaginary landscape, for orchestra (1971), do compositor britânico Harrison Birtwistle, com a BBC Symphony Orchestra, regência Paul
Daniel. – Não tenho a mínima ideia de como cheguei ao cenário. Sei
que estava diante de um palco e era eu, ou melhor, o meu duplo em cena apresentando o primeiro
manifesto da crueldade de Artaud.
Não só. Também trechos dos Escritos de um louco e as aspirações
anarquistas, porque havia queimado todos os versos para se tornar o poeta sem
palavras. Mais ainda: do neutro feminino masculino nas
delirantes internações por manicômios com tratamentos duvidosos, entre
eletrochoques para perder o último dente que restava na boca, fratura das
costelas e perda intermitente da memória, pensamento e corpo. E a voz era o
gesto e ato: tremia, cavava, batia, espetava, agia. Era a manifestação da
poesia e o exercício da técnica teatral no meio da guerra, do isolamento, do
rebaixamento, da dependência desumana de um hospital psiquiátrico. Era para
acabar com o juízo de Deus e da perda de si, diante de Van Gogh, o suicidado da sociedade. Afora trechos da linguagem e
vida, de Heliogábalo ou o anarquista coroado, de textos surrealistas, dos
Tarahumaras, da correspondência com Jacques Rivière e Aqui jaz. Ao final, os
presentes aplaudiram a performance. Meio que desconfortável com aquilo tudo, olhei
ao redor e vi o autor que veio, sentou-se ao meu lado e me disse do Nouveaux Ecrits de Rodez (Editorial
Fundamentos, 1980): ... E assim é que a
vida atual, por mais delirante que possa parecer esta afirmação, mantém sua
velha atmosfera de depravação, anarquia, desordem, delírio, perturbação, loucura
crônica, inércia burguesa, anomalia psíquica (pois não é o homem, mas sim o
mundo que se tornou anormal), proposital desonestidade e notória hipocrisia,
absoluto desprezo por tudo que tem uma linhagem e reivindicação de uma ordem inteiramente
baseada no cumprimento de uma primitiva injustiça; em suma, de crime organizado. Olhei-o e tudo fazia para não perder a lucidez: Não quero que ninguém ignore meus gritos de
dor e quero que eles sejam ouvidos. Afinal, estava recluso no quarto de Ivry-sur-Seine
e o peyote no corpo sem órgãos:
mímica, gritos e onomatopeias: ... de
todo o modo, é preciso que essas chaves estejam aí, e isso nos diz respeito.
De repente a luz apagou-se e era o meu país revolvendo as minhas entranhas como
se a vida à deriva na imensidão sideral.
Das coisas do Brazil...- Com o retorno do fornecimento da energia
elétrica, era outra pessoa sentada ao meu lado: o John Updike. Ele me sorriu e passou a mão um volume com o título Brazil: a
novel (Orbis Fabri, 1994) e uma
página com grifos no trecho: O Brasil
tem poucos líderes; os portugueses não trouxeram a mesma disciplina e
austeridade que os espanhóis. Até nós não fomos cruéis com eles, fomos somente
brutais, sem dizer que éramos demasiados folgados para termos ideologia. A igreja
foi demasiado indulgente e havia que os conventos eram bordeis. Esta era a
síntese, a maneira de um professor ao que havia naquele tempo, a lição que
havia dado no avião... Ao terminar de ler o trecho, virei-me
para ele que deu de ombros e disse apenas tratar-se de uma versão abrasileirada
de Tristão
& Isolda nos anos 1960 a 1980, na verdade 22 anos de relacionamento
entre uma jovem branca da classe alta e um jovem favelado de cor: privações,
violências, cativeiro e reviravoltas da fortuna. Não entendi bem o que queria
dizer com isso, mas não questionei, disse-lhe apenas que leria seu livro, a
exemplo de outras das suas publicações. Despediu-se sorridente com uma frase: Os sonhos tornam-se realidade. Sem essa
possibilidade, a natureza não nos incentivaria a tê-los. Do que me resta
disso tudo são interrogações as quais não posso perder tempo em decifrá-las. Apenas
me levantei e segui tentando encontrar o caminho de volta.
Quem se fantasia tem o direito de escolher o disfarce... - Imagem:
arte da fotógrafa, modelo e artista visual canadense Petra Collins – A saída dali foi um tanto atrapalhada. Ao descer a
escadaria do salão, havia muito gente dificultando o meu trajeto. Era que o
memorável Barbosa Lima Sobrinho
estava contando uma de suas histórias. Foi uma surpresa agradável porque dele
já registrei Por amor às crianças pernambucanas e outro a
respeito da Revolução Praieira. Desta
feita, era um relato registrado do conto A
supremacia feminina (Escrituras, 2007), no qual ele foi instado por um
desses sujeitos do tipo “de Bem” que invadiu as dependências da redação e aboletou-se
na sua frente para sapecar: Eu estava
parado diante da Galeria Cruzeiro quando passou um cordão, um grupo de moças
encantadoras. Lembravam-me as carnavalescas de outrora, promotoras da hegemonia
do Brasil no continente. Considerei-as, por isso, cuidadosamente e descobri,
entre elas, uma que era toda feita de graciosidade e sedução. Resolvi acompanhá-la,
no desejo de verificar se merecia, da Liga dos bons costumes, a medalha de
honra, prêmio de benemerência excepcional. Juro que era formosa e tinha a pele
fina, olhos lânguidos e sorriso diabólico, um sorriso que descobria dentes alvíssimos
e uma ânsia enorme de pecado. Movia-se o corpo flexuosamente; e os braços
tinham contornos de que se adivinhava a suavidade; o colo fazia pensar em
vertigens ardentes... Acompanhei-a duas horas, marcando sobre asfalto e
paralelepípedo, sobre calçada e areia. Em toda a minha vida, nunca tinha visto
jogo mais harmonioso de quadris! Quando lhe indaguei o nome, para inscrição no
livro benemérito a que a Liga dos bons costumes desse homenagem... Ah! Água! Água!
Que eu morro! (?!?) ...- Joãozinho La
Garçonne! As gargalhadas soaram por todo ambiente folgando a passagem para
que eu ganhasse a rua ainda com essa história ecoando no juízo para trazê-la
aqui. Coisas do Brasil. Até mais ver.