TRÍPTICO DQP –- Poesia
etcétera... - Ao som da Sinfonia
nº 1 - Fiat Lux op. 21 (2017), do compositor, arranjador e maestro
estadunidense Daniel Farrell, witch Jacksonville
University Orchestra, conductor Marguerite
Richardson. - A hora era aquela que eu não sabia, nem razão, triunfos
ou fracasso. Era a minha íntima solitude e entre as linhas das minhas mãos se
formaram imagens do Olho de Hórus, ampliadas e reproduzidas na parede em frente,
como se o Udyat se tornasse o Olho-que-a-tudo-vê. Tive a
sensação de ali se desvelarem registros acásicos, entre imagens caleidoscópicas.
Identifiquei o I-Chin que logo deu lugar a imagens cabalísticas
e superpostas do Sefer Yatzirah. Uma espiral
diminuta foi crescendo e no centro dela a Ars
magna de Lull, como se a mim fosse dada a oportunidade da sua experiência
lucificadora. Uma voz invisível começou a ditar a doutrina Hokhmath ha-Tseruf de Abulafia, e logo se imprimia de forma
crescente o Zairjat al’alam, que se
iluminava com trigramas recombinados e formavam hexagramas alternados como boustrophedon e eu a discernir o que
havia estudado da linguística filosófica de Derrida. Logo vi-me imerso em ambiguidades, anagramas recombinados
como Temurah e acrósticos feito Notarikon. Como eu sabia da palavra
perdida esperava Schechina. De repente
tudo escureceu e ouvi os versos finais de um poema de Jacques Roubaud: ...Sob os ângulos. Quase uma poeira: / Imagem sem espessura /
voz sem espessura / A terra / que te esfrega / O mundo / do qual nada mais te
separa / Sob a lâmpada. Na noite. Cercado de preto. Contra a porta. Em meu peito entendia o que tudo ali se mostrava, abri
os olhos e era a vida.
E o coração às voltas com a paixão... – Imagem: arte da pintora
cubana Amelia Pelaez (1896 - 1968),
ao som da Symphony No.
6 in B minor, Op. 74 Pathétique, de Tchaikovsky, witch Mariinsky
Theatre Orchestra, conductor Valery Gergiev, from the Salle
Pleyel in Paris, 2010. - O que me aconteceu antes foi tão
inexplicável, na verdade supus que só saberia o significado muito tempo depois.
E assim foi. Acontece que fui envolvido pelos secretos sentimentos de Piotr, aquele mesmo de Votkinsk, que
perdeu a mãe por conta da peste e aos catorze anos de idade, a profunda
depressão. Ao se recuperar, tornou-se escriturário, diplomado advogado e,
sentindo-se rejeitado por todos, licenciou-se para se tornar tradutor e viajar.
O retorno levou ao pedido de demissão e o ingresso no mundo dos seus sonhos: a
música. Vieram os Sonhos de Inverno, A tempestade, uma carreira promissora
que começa como professor para fracassar com o bailado de Ondine e a abertura-fantasia Romeu
e Julieta. Exilou-se. E ao ouviu o jardineiro: um quarteto que até Tolstoi chorou. Então, vieram mais o Lago dos Cisnes e, entre escritos e
aulas, um colapso nervoso. Era chegado o inverno, prostrado até uma carta com a
surpresa: era Nadezhda, uma aristocrata
e ateia confessa, independente: A
distribuição de direitos e obrigações, conforme determinado pelas leis sociais,
é especulativa e imoral. Era a sua redenção: ... nas minhas relações com você há sempre a desconfortável circunstância
de que, toda vez que escrevemos um para o outro, o dinheiro aparece em cena.
Dias de dedicação sem outras preocupações. Contudo, dissabores e atordoamento,
Antonina e os outros, o casamento rompido em 15 dias, a tentativa de suicídio e
o exílio. Apesar disso, algum tempo depois, estava consagrado. Retomou as
atividades e uma outra carta surpreendente: O
conto de fadas acabou. Treze anos de correspondência e eles nunca poderiam ter
a dádiva do encontro, este o trato. Para ela, a Quarta. Depois, episódios dramáticos enredados e a inaceitável ausência,
tudo estava lá, naquela partitura da Sexta e nas entrelinhas evocava uma paixão
de emoções exacerbadas, levada até as últimas consequências. Ali estavam seus
mais plenos sofrimentos: a autoconfiança arreada, o desespero e a desolação, a
relação íntima recôndita pela intolerância, a peste e o precoce envelhecimento,
a exaustão profunda e a misteriosa morte repentina. Era, enfim, a libertação. Fiquei
bastante comovido com a história e logo me apareceu Bergson: Criamos e recriamos
a todo momento... o progresso da atenção tem por efeito criar de novo não
apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais ele
pode se associar. Não entendi direito, a ponto de questionar o que havia
entre uma coisa e outra. Foi quando apareceu tentando esclarecer, o escritor
francês Michel Deguy: Os homens contam histórias que acontecem aos
deuses (ou a Deus) e aos homens, e acontecem aos homens porque acontecem aos
deuses e nas cosmogonias e antropogonias... A humanidade continua a transmitir
a memória nas grandes narrativas, a se bater dentro dessas narrativas, a
reinventar a história do mundo. Nisso era eu que precisava me reinventar,
estranhices abundantes ao meu redor.
A vida nos cacos de vidros... - E no meio disso tudo, de repente uma voz
feminina de longe apareceu e sou surpreendido. Uma voz da minha terra e ecoavam
em minhas entranhas. Dela, primeiro: Tristeza
não existe! Que bom! E me animei. Depois uma cachoeira com todas as
ventanias e poeiras que envolvem meus dias e noites: Meu Céu, Meu Ar, Meu Chão & Seus Cacos de Vidro. E choveu
baiões e forrós nas violadas de quem já Avoada
juntou os amigos e cantou no Pé de Cachimbo, no Malunguim e em casa mesmo, e
era Dia de João, Vasudeva, e A Vida no Cariri Demora, na Alvorada,
e Estou Desocupado Com Outras Coisas Desimportantes, e a Viagenzinha de Verão, Eu
Quero Ver o Cão Mas Não Quero Ver Você, e o Amor, Disco Voador. Quem? É ela a
cantora e compositora Marília Parente: A única coisa permanente na cultura popular é sua inevitável e
necessária transformação, porque ela é pulsante, viva, cotidiana. Tentar
aprisioná-la a um olhar de exotismo, a essa bandeira difusa de ‘preservação do
forró’, é matá-la, porque ela acaba se traduzindo em produções ‘caretas’.
Exaltar nossa nordestinidade, recebendo a influência do contexto em que vivemos
é uma atitude política de resistência. E com a voz dela lavei a alma. Tudo
muito bom! Mas agora tenho que fazer umas ginásticas para dar umas carreiras:
tempos difíceis. Preciso ir lá fora para se da pedra dá leite, porque cansei de
cravar as unhas na parede à cata de moeda que seja. Já rapei o tacho e as
contas estão pra chegar. Vou ali, volto daqui uns dias, tá? Tomara. Até mais
ver.