CADÊ O MAESTRO?
- Dé de Duda ficou órfão aos dez anos de idade, coitado. Situação horrível:
sem pai, nem mãe, parentes ou aderentes, todos pereceram num incêndio na comunidade
de lona, ele o único sobrevivente no meio das cinzas. Pra sorte dele, logo um
casal francês passava para ver a tragédia e comiserou dele num burocrático
processo de adoção, quase um ano de lengalenga e, finalmente, foi embora. Cinquenta
anos depois, lá estava ele: um retorno às raízes. Agora não mais Dé de Duda,
era o afamado maestro Denilson Lawrence, conhecido no mundo todo, menos ali. Agora
com sua coleção de fraques, cartolas, piteiras, bengalas, suspensórios, adorava
vestir-se assim, pra lá e pra cá. Adquiriu de pronto a casa que supunha ter
nascido e fez negócio com outras duas vizinhas de cada lado. Um casarão para morada,
com um amplo espaço, cheio de instrumentos, estantes e partituras. Larali lará.
Queria dar aulas, oportunidades praquela gente. Ao ver a mocinha sonsa passar,
ei, seus olhos quase pularam fora. Como é seu nome? Dudinha. Quantos anos você
tem? Dezessete. Quer trabalhar para mim? Sim. Cadê seus pais? Tão ali. E
dirigiu-se a ele: É o senhor o pai dela? Sim. E daí? Quero contratá-la para
trabalhar lá em casa, pode ser? Pago adiantado. E foi logo sacando dos bolsos
um molho de dinheiro. O pai estava pronto para obstar com briga e tudo, mas
quando deu fé das cédulas contadas no pau da venta, só notas de cem, arregalou
os olhos. Pronto, está aqui, tome, um mês adiantado. Ah, pode levar, ela é toda
sua. Todo mês, em dia de hoje, estarei aqui! Dito e apalavrado. Mais do que
certo, patrão, o senhor manda. Vamos. E levou a mocinha. Sabe onde é minha
casa? Sei. Vá pra lá, volto já. Ela foi e ele dirigiu-se à loja mais próxima, comprou
vestidos, cosméticos, produtos de higiene pessoal e saiu cheios dos pacotes.
Ela lá, sentada no batente da casa. Vamos! Entraram. Já pro banheiro, tire a
roupa, tome sabonete, passe shampu, assim, assado, ela mal sabia usar aquilo,
ele foi lá, excitado, ela embaixo do chuveiro, esfregou os cabelos, as costas,
os braços, os seios, as partes pudendas, lave-se bem, quero arrumada e cheirosa,
viu? Aprendeu? Ah, assim. E banhava de novo ensinando a como se lavar. Pronto! Deu-lhe
o vestido, apalpou, rodopiou, ajeitou, penteou e deixou-la toda arrumadinha. Agora
sim. Passou a rotina da casa, como queria isso e aquilo, varrição, limpeza, não
mexa nisso nem naquilo, comida assim e assado. Agora vá. Foi até a varanda e
saiu juntando uns meninos da comunidade para que aprendessem a tocar alguma
coisa, aulas e nada, até um deles chamar sua atenção e, ao dispensar os demais
no final da aula, pegou-lo pelo braço e levou pro banho. Vamos, se banhe, tire
a roupa, vá! Lave a cabeça, tire os grudes, esfregue o couro. Ah, não sabe! Peraí
que vou ensinar. Foi aí que viu que o menino era pintudo. Como é seu nome? Zé.
Quantos anos? Treze. Quero falar com seu pai! Ele morreu. Sua mãe, também. Teve
piedade, como ele, órfão. Ah, você vai ficar para ajudar Dudinha. E lavava e
esfregava o menino todo, principalmente o pênis bem expressivo. Bora, já pras
obrigações, chispa! Assim, os dias, as aulas, o tempo, dormiam na mesma cama de
casal dele: os três nus, ele às costas dela, Zé às costas dele, tudo encangado.
Ensinava pacientemente a todos a ouvirem Mozart, Beethoven, Dvorak, aos
beliscões, demonstrava paixão pela obra de Mahler, morria de amores pela Jocy
de Oliveira, mas ela nunca deu bola pra ele, e quem passasse ele chamava para
ouvir Villa-Lobos, Stravinsky, uma vez até me pegou pelo braço e me fez ouvir o
Pierrot Lunaire de Schönberg, ou o Klang do Stockhausen ou as Paisagens imaginárias de Cage, sempre
olhando pra mim: Hem? Não entendia nada. Aquilo era um horror e ele
maravilhado. Era assim, meio doidão, e tinha paroxismos ejaculatórios com o Le Poème de L’Extase de Scriabin, tantas
vezes lavado de suor e completamente arrebatado. Aliás, regia sozinho tudo que
ouvia e entrava em transe, descabelado, enlevado. Durante o dia quebrava muita
cabeça com os alunos e nada deles aprenderem, nem na marra,contudo persistia,
até descobrir que só Zé se insinuava indo bem na coisa de lidar com música e um
outro claudicante. Estafante, todavia, feliz da vida. Durante a noite, o sossego
entre os dois amores praticamente adotados, crescendo irmanados. Foi, então, já
próximo ao carnaval, ouviu duma orquestra desleixada no frevo rua abaixo. Saiu
chorando, aos gritos: Não é assim que se toca! Pararam, assutados. Quem é o
maestro desse troço? Morreu. Então agora sou eu, entrem. Não sabia ele quem
eram Os Assassinos do Frevo. Pronto,
danou-se tudo. Mas organizou a turba. Ano após ano ele lá na frente, regendo, a
cada folia de carnaval. Fizeram até um coreto para ele se apresentar todo final
de semana com a sua orquestra de meninos. Era ele a principal atração de todos
os festejos, suas estranhices, pulinhos, soberba, agito. Todos queriam ver dele
as maiores presepadas. Só que no último carnaval, tudo pronto, fantasias,
músicos, o povão todo esperando, cadê o maestro? Havia um alvoroço no ar, todos
queriam saber o que ele aprontaria dessa vez, prefeito, bispo, delegado, tudo
apinhado embaixo do coreto, cadê o homem, hem? A espera, os cambitos, a
inquietação. Lá vem um na carreira e dá a notícia. Como? Achou de bater as
botas justo hoje, terça-feira de carnaval, meu? Como é que pode? Ah, não! Acorda,
ele tem que reviver pra festa, ora! Sacode o homem, vai. Adianta não, babau. Dá
uns sopapos que ele acorda! Morreu mesmo? Mortinho da silva. E agora? O desejo
dele: cortejo com frevo e muita folia. Não deu outra, assim foi sepultado. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] hoje em dia, apressamo-nos a renunciar à
noção de ideologia: acaso a crítica da ideologia não implica um lugar
privilegiado, como que isento das perturbações da vida social, que faculta a um
sujeito-agente perceber o mecanismo oculto que regula a visibilidade e a
invisibilidade sociais? A pretenção de podermos aceder a esse lugar não será o
exemplo mais patente de ideologia? Por conseguinte, no que se refere ao estado
atual da reflexão epistemológica, a noção de ideologia não será
auto-invalidante? Assim, por que havemos de nos apegar a uma ideia de
implicações epistemológicas tão patentemente ultrapassadas (a relação de
“representação” entre o pensamento e a realidade etc)? [...]. “Ideologia” pode designar qualquer coisa,
desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à
realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio
essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social
até as ideias falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos
evitá-la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse.
[...].
Trechos
extraídos da obra Um mapa da ideologia
(Contraponto, 1996), do filósofo, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj Žižek. Veja mais aqui, aqui,
aqui, aqui e aqui.
O REI DA VELA
[...] Os
mesmos e Abelardo II - ABELARDO I - Meu alter ego! Foi um
suicídio autêntico. Abelardo matou Abelardo. ABELARDO II (Fingindo-se
possesso de surpresa, deixa rolar a lanterna, enquanto Heloísa, na mesma
posição, recomeça os soluços intérminos) - Mas que houve? Que foi? O que
é isso? Meu Deus. (Aperta o botão da luz) Curto-circuito! ABELARDO I - Não. Foi você que quebrou
ladrão de primeira viagem! Fez bem! Pouparemos a luz elétrica. A conta do mês
passado foi alta demais! Acenda todas as velas! Economia em regressão. As
grandes empresas estão voltando á tração animal! Estamos ficando um país
modesto. De carroça e vela! Também já hipotecamos tudo ao estrangeiro, até a
paisagem! Era o país mais lindo do mundo. Não tem agora uma nuvem desonerada...
Mas não irá ao suicídio... Isso é para mim. ABELARDO II - Por que fez essa loucura? ABELARDO I - Um homem não têm importância a classe fica. Resiste.
O poder do espiritualismo. Metempsicose social... ABELARDO II - Quer que chame um médico? ABELARDO I - Para quê? Para constatar que eu revivo em você? E
portanto que Abelardo o rico não pagará a conta de Abelardo suicida? ABELARDO II - Pode salvar-se ainda.
Como fica essa pobre moça... No desamparo. (Heloísa soluça fortíssimo) Quer um padre? Pode ainda realizar o
casamento... ABELARDO I - Que
necessidade tem você de casar com a minha viúva... Vai tê-la virgem! e de
branco... ABELARDO II - Virgem!
Heloísa virgem!(Heloísa diminui os
soluços) ABELARDO I - Se
o Americano desisti do direito de pernada... ABELARDO II - De pernada? ABELARDO
I - Sim, o direito á primeira noite. È a tradição! Não se afobe,
pequeno-burguês sexual imaginoso! Não se esqueça que estamos num país
semicolonial. Que depende do capital estrangeiro. E que você me substitui nessa
copa nacional! Diga, onde escondeu o dinheiro que abafou?... ABELARDO II - Que dinheiro? ABELARDO I - O nosso. O que sacou ás
dez horas precisas da manhã.O dinheiro de Abelardo. O que troca de dono
individual mas não sai da classe. O que, através da herança e do roubo, se
conserva nas mãos fechadas do ricos... Eu te conheço e identifico, homem
recalcado do Brasil! Produto do clima, da economia escrava e da moral desumana
que faz milhões de onanistas desesperados e de pederastas... Com esse sol e
essas mulheres!... Para manter o imperialismo e a família reacionária.
Conheço-te, fera solta, capaz dos piores propósitos. Febrônio dissimulado das
ruas do Brasil! Amanhã, quando entrares na posse da tua fortuna, defenderás
também e sagrada instituição da família, a virgindade e ao pudor, para que o
dinheiro permaneça através dos filhos legítimos, numa classe só... ABELARDO II - Eu sempre defendi a
tradição... e a moral... ABELARDO I
- E defende também a casa
feudal!... Se salvares a fazenda das unhas militarizadas do Perdigoto, conserva
a Casa da família. Não reformes nada! A casa feita para ter muitos criados, um
resto de mucamas e negras velhas, lembrando o tronco! E um grande quarto frio
para dois seres que se traem e se detestam dormindo na mesma cama e orando no
mesmo oratório. A casa antiga, colonial, um mundo que resiste! Mais que eu...
Foi a bala do cano que penetrou profundamente, a primeira... As outras rodearam
o coração! Que dor... Decerto é porque o coração ficou intacto... O coração,
esse útero do homem, onde a gente gera os filhos mais caros... a ambição, o
amor, o desespero, a vontade de viver... a literatura... Escuta, Abelardo!
Abandonaste o socialismo? ABELARDO II -
Faço-lhe presente dele! ABELARDO I - Mas
eu não aceito. Neste momento eu quero a destruição universal... O socialismo
conserva... ABELARDO II - Virou
Bolchevista! São todos assim... Quando era o grande milionário e emprestava a
15% os mês e eu lhe falava dos ideais humanitários e moderados do socialismo,
caçoava. Conhecia tudo, lia tudo, mas se ria... Agora... ABELARDO I - Sempre soube que só a violência
é fecunda... Por isso desprezei essa contrafação. Cheguei a preferir o facismo
do Perdigoto. Mas agora eu queria outra coisa... ABELARDO II - O comunismo... ABELARDO I - Para te deixar um veneno pelomenos misturado com
Heloísa e os meus cheques. Deixo vocês ao Americano... E o Americano aos
comunistas. Que tal o meu testamento? ABELARDO
II - São todos assim como você, passam para o outro lado quando estão
arruinados! ABELARDO I - È um
erro teu! Se todos fossem como o oportunista cínico que sou eu, a revolução
social nunca se faria! Mas existe a fidelidade a miséria! Eu estou saindo da
luta de classes... Já está ai a marca onde o meu corpo vestido e inerte
substituirá o corpo voluptuoso de Heloísa.. Mas se sarasse... regressava à
arena na posição que ocupei. Não aderia... Talvez mudasse de dono. Voltava a
trabalhar para o imperialismo inglês... ABELARDO
II - Pão- duro... ABELARDO I -
Pão amanhecido! ABELARDO II - Eu
fui o teu obstáculo! ABELARDO I -
Mas a tua vida não irá muito além desta peça... ABELARDO II - Ma matas? ABELARDO
I - Para quê? Outro abafaria a banca. Somos... uma barricada de
Abelardos! Um cai, outro substitui, enquanto houver imperialismo e diferenças
de classes... ABELARDO II - Ora,
que sujeito! Fazendo visagem na hora da morte! ABELARDO I - Não sou nem sequer um demagogo. Esta cena é ainda um
episódio da concorrência. Uma briga burguesa. Eu quero, mesmo depois da morte,
te suplantar na memória dela que vai ser tua mulher. ABELARDO II - Minha mulher? ABELARDO I - Como meu irmão será o teu advogado! (Silêncio) [...] UMA VOZ (Grossa, terrificante, da porta
escancarada que mostra a jaula vazia) - Eu sou o corifeu dos devedores
relapsos! Dos maus pagadores! Dos desonrados da sociedade capitalista! Os que
têm nome tingido para sempre pela má tinta dos protestos! Os que mandam dizer
que não estão em casa aos oficiais da justiça! Os que pedem envergonhadamente
tostões para dar de comer aos filhos! Os desocupados que esperam sem esperança!
Os aflitos que não dormem, pensando nas penhoras. (Grita) A Amé-ri-ca - é - um - ble-fe!!! Nós todos mudamos de
continente para enriquecer. Só encontramos aqui escravidão e trabalho! Sob as
garras do imperialismo! Hoje morremos de miséria e de vergonha! Somos os
recrutas da pobreza! Milhões de falidos transatlânticos! Para as nossas famílias,
educadas na ilusão da Amé-ri-ca, só há a escolher a cadeia ou o rendez-vouz! Há
o sui-cí-dio também! O Sui-cí-dio... ABELARDO
I - É a revolução... Fogo! façam fogo... Silêncio pesado. Os soluços de Heloísa aumentam. [...].
Trecho extraído do 3º Ato da peça teatral O rei
da vela (Globo, 1998), do escritor, ensaísta e dramaturgo do
Modernismo brasileiro, Oswald de Andrade (1890-1954). Veja mais aqui,
aqui, aqui e aqui.
A FOTOGRAFIA DE CHICO LUDERMIR
A arte do jornalista, escritor e artista visual Chico Ludermir. Veja mais aqui.
&
A obra do escritor, jornalista e professor João
Ubaldo Ribeiro (1941-2014) aqui, aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.