CARTA DE MARÇO -
As lembranças passam, a vida como um cata-vento
armada sobre aterros: uma masmorra dilacerando o ventre de animal selvagem, entre
amáveis ocultos e indesejáveis presentes espumando de raiva. Não há como
ignorar certas coisas, o inevitável. O vento sopra meus desertos como se eu
tivesse que atravessar um sétimo período que não fosse meu, como se eu tivesse
que passar de casa em casa de uma vez por todas e sucumbir pelas canções que
fiz coração aberto. Sou grato pelo que tenho e nunca tive, pela solidão
reveladora e iluminada, pelos caminhos percorridos na escuridão. Em troco, sinto
as dores dos que foram executados sumariamente, os que perderam tudo arrasados
por nada, os que tiveram a negação dos deuses, os que arriaram transidos de
vergonha porque aprenderam a amar. Como um foragido, não encontro lugar algum
por abrigo, viajei todo planeta nas ideias e extravagâncias. Apesar de andejo,
reduzi todo universo ao meu reduto, era mais seguro e podia seguir confiante, o
que podia acontecer de melhor na dor quase infinita. Era de dia discípulo da experiência
e na descoberta das esquinas solitárias e sombrias da noite, inventava ser
outro no meio de embaraçosas situações de largos silêncios. O que renunciei não
me diminui nem me joga ao léu, o que se tira de mim, me recompleta: sou feito
de sonhos recorrentes. Presto muita atenção, cada olhar um flagra, mesmo que
siga descuidado réu entre confuso e rastejante, atrás do que não tem sentido, aprendi
com disparatados desleixes. Sempre fui caso perdido, quanta parvoíce sem
solução, deveras. Sou faminto de rio e de horizontes, não obstante, muitos
braços no meu punho. Ainda é possível viver, morrer de pé. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
DITOS & DESDITOS
[...] A manipulação da
informação, portanto, não tem nada de surpreendente. É tão velha quanto os
conflitos humanos. [...] Se todas as
condições estão presentes – intensidade do conflito, irritação nos meios de
comunicação, desinformação organizada -, há pouca chance de evitar uma dessas
catástrofes informativas das quais a revolução romena é o modelo. [...] A crise da credibilidade que atravessam há
vários anos os torna hoje frágeis. [...] A suspeita que envolve os jornalistas decorre também do fato de estes
não disporem mais de um estatuto profissional claro e reconhecido. [...] De fato, os jornalistas enfrentam vários problemas ao mesmo tempo. O primeiro é o ingresso de seus suportes em um ciclo
de rápidas mutações. [...] O segundo
problema é a emergência de assessores de comunicação. [...] O terceiro perigo é interno. Se a
reconquista da credibilidade deve passar por um estatuto, então pode fundamentar-se
senão sobre uma deontologia estrita. [...].
Trechos extraídos da obra A
culpa é da imprensa! – ensaio sobre a fabricação da informação (Marco Zeo,
1992), do jornalista francês Yves Mamou.
DOIS POEMAS DE JORGE LUIS BORGES
FRAGMENTOS DE UM EVANGELHO APÓCRIFO - Desventurado
o pobre de espírito, porque sob a terra será o que agora é na terra. / Desventurado
aquele que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto. / Felizes os que
sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória. Não basta ser o último para
ser alguma vez o primeiro. / Feliz aquele que não insiste em ter razão, porque
ninguém a tem ou todos a têm. Feliz aquele que perdoa aos outros e aquele que
perdoa a si mesmo. Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a
discórdia. / Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que nossa
sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável. / Bem-aventurados
os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e
não na esperança de um prêmio. / Bem-aventurados os de coração puro, porque
veem Deus. / Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque
lhes importa mais a justiça que seu destino humano. / Ninguém é o sal da terra,
ninguém, em algum momento de sua vida, não o é. / Que a luz de uma lâmpada se
acenda, ainda que nenhum homem a veja. Deus a verá. / Não há mandamento que não
possa ser infringido, e também os que digo e os que os profetas disseram. Aquele
que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele acredita ser justa, não
tem culpa. / Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus. / Não
odeies teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio
nunca será melhor que tua paz. / Não exageres o culto da verdade; não há homem
que no final de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes. / Não jures,
porque todo juramento é uma ênfase. / Resiste ao mal, mas sem assombro e sem
ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer a outra, sempre que não te
mova o temor. / Não falo de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única
vingança e o único perdão. / Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra de justiça
e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens. / Fazer o bem a teu
inimigo é o melhor modo de satisfazer tua vaidade. / Não acumules ouro na
terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio. / Pensa
que os outros são justos ou o serão, e, se não for assim, não é teu o erro. / Deus
é mais generoso que os homens e os medirá com outra medida. / Dá o santo aos
cães, atira tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar. / Procura pelo prazer
de procurar, não pelo de encontrar…/ A porta é a que escolhe, não o homem. / Não
julgues a árvore por seus frutos nem o homem por suas obras; podem ser piores
ou melhores. / Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso
dever é edificar como se fosse pedra a areia… / Feliz o pobre sem amargura ou o
rico sem soberba. / Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo similar a
derrota ou as palmas./ Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio
ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias. / Felizes os amados e os
amantes e os que podem prescindir do amor. / Felizes os felizes.
MILONGA DE MANUEL FLORES - Manuel Flores vai
morrer / Isso é moeda corrente / Morrer é um costume / Que sabe ter toda a
gente / Amanhã virá a bala / E com a bala o olvido / Disse o sábio Merlin / Morrer
é haver nascido / Apesar disso me dói / Despedir-me da vida / Essa coisa tão de
sempre / Tão doce e tão conhecida / Olho na alba minhas mãos / Olha nas mãos as
veias / Com estranheza as contemplo / Como se fossem alheias / Quanta coisa em
seu caminho / Esses olhos terão visto / Quem sabe o que verão / Depois que me
julgue Cristo / Manuel Flores vai morrer / Isso é moeda corrente / Morrer é um
costume / Que sabe ter toda a gente.
Poemas
extraídos da obra Elogio da sombra
(poemas) / Perfis (um ensaio autobiográfico) (Globo, 1977), do
escritor, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino Jorge
Luis Borges (1899-1986). Veja mais aqui e aqui.
A ARTE DE RITA WAINER
A arte
poética da artista plástica e ilustradora Rita
Wainer. Veja mais aqui.
&
A
vasta maioria dos crimes coletivos sempre foi cometida em nome do bem… As
causas nobres não justificam os atos ignóbeis.
A obra do filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017) aqui.