O NORDESTINO
POETA PICA PAU – Lá pelo início
dos anos 1970, conheci aquele que vinha zambeta de venta empinada pela Rua
Nova, carregando baldes atrás de lavagem pra porcos. De casa em casa gritava:
Tem lavagem? De dentro vinha resposta, postiva ou negativa e, dependendo disso
ele se ria ou saia maldizendo tudo. Era, então, Zé Pilintra e não arriava na
beca, prumode o quê?: Prumode que é que
é, qui nós home mata a mata? / Se a mata nus encanta, lugar onde o pássaro
canta / com a lenda do Pai da Mata. / Quanto mais se mata a mata, a mata se
consome / o home matando a mata, a mata ao home faz falta / e o mundo sentindo
fome. / A mata senta a falta do grande potencial / da madeira do angico, e
também do tico-tico / do bico do Pica Pau. Isso prova que mesmo parecendo um
chato arengueiro, era cabra, no fundo, gente boa, só que se amostrava com a
peste: Sou cria da mesma praça / que
criou-se Giramundo / da terra sou oriundo / de um trovador de raça / eu sou pão
da mesma massa / de um cantador esperto / sou troncho, torto sou certo / sou
leso e não sou banana / mas sou a Besta Fubana / do escritor Luiz Berto. Era
os tempos de estudante do Ginário Municipal, das estripulias licenciosas e
maloqueragens adolescentes. Pois bem, tempo vai, tempo vem, a gente se danou na
buraqueira do mundo e, uma década depois, se reencontra: pinga, meiota, cajá,
caju, siriguela, bunda de tanajura e lavando tudo com cerveja, pilhéria,
versejada e uma viola de 12 cordas Del Vecchio no meio da camaradagem. Diz ele
que eu afanei o instrumento desencordoado, não foi, na verdade. Queria mesmo dar
umas cipoadas boas no instrumento pra ver se aprendia direito. Não deu, nunca
passei de poetastro, mas graças a ela, um dia depois de uma tocada boa, lá ia
eu desprevenido pela rua e um cão que parecia um leão me atacou e nela me
protegi. Resultado: do medo e quase que cagado, o ataque torou o braço da viola
no meio que até hoje está num canto da casa de um consertador amigo. Por conta
disso, a gente manga um do outro até hoje: eu das minhas besteiras de bestão
tapado sem competência no métie; ele, da sabedoria, não perde uma, desaforo que
seja, na ponta da língua arrelia de cima sem arriar no badalo: Guará gago não gagueja, e gato gago não mia.
Eu que sempre fui um poeta de água doce, nunca acompanhei os motejos poéticos
dele: Um grande furacão eu enfrentei / me
deparei sem querer com um vulcão / antes de entrar em erupção / nas entranhas
da terra emburaquei / quando nas placas tectônicas passei / o segredo já estava
desvendado / os minérios que foram encontrados / são riquezas do poder da
natureza / observando assim toda beleza / quando dei fé já tava do outro lado.
De tão metido, vez em quando, no meio das pinoias e trocas de ofensas, ele
sapecava no pau da minha venta um acrótisco: Não há dinheiro que pague / o valor que a gente tem, / ricos de
literatura / dádiva de Deus amém, / ensinamento divino / sapiência do além, /
talento cabra da peste / inspiração com encanto / nunca sentimos tanto /
orgulho deste Nordeste. Jogava mais na minha lata o quanto honrava a
tradição instaurada pelo poeta Manuel Bentevi: Me criei com o Pai da Mata / e Cumade Fulosinha / levei a vida todinha
/ vendo o Saci Pererê / Bumba meu boi pra se ver / tem a Mula sem Cabeça / espero
que não esqueça / do meu tempo de menino / vou seguindo meu destino / levando a
lenda às alturas / o folclore é a cultura / de um povo nordestino. / Baião de
Luis Gonzaga / xaxado de Lampião / são danças da região / que deixa a gente
animado / pastoril coco de roda / maracatu e reisado / lá na festa do Divino /
se ouve o bater do sino / convidando as criaturas / o folclore é a cultura / de
um povo nordestino. Pra você ter uma ideia, o sujeito não cabe em si de tão
folgado, não deixando qualquer loa sem os respectivos bregues: Encontrei uma aguardente / cana boa de
Sergipe / curava tosse e gripe / até tristeza da gente / com uma dose somente /
suavizava um rouco / pra quem bebesse pouco / era remédio e curava / mas pra
quem exagerava / era pô bôrocotôco. Feito pinto no lixo em qualquer
faustoso repasto, o enxerido solta uma lapa de língua e saçarica ineivado: Chapéu de otário é marreta / comer de
esperto é mingau / quem é otimista sonha / o realista é quem faz / quem
trabalha Deus ajuda / cochichou cachimbo cai [...] Tristeza traz depressão / e toda dúvida é incerta / a chuva fina não
molha / depois da curva vem reta / com rimas de faz poesias / inspiração d’um
poeta. E para mais me humilhar, arruma a gola no vinco e a fivela nos
quartos, enche o pulmão com afinco e se amostra todo ancho cheio do Tataritaritatá:
Joaninha a filha mais nova / de Gregório
cabra danado / que quando ficava zangado / leva 1, 2,3 pra cova / eu quis tirar
essa prova / lhe chamei pra namorar / ela disse vou aceitar / mas tenho quase
certeza / que meu pai vai te matar / eu fiz uma festa daquelas / embriaguei o
pai dela / me agarrei com a donzela / e tari, tari, tari, tatá. Não para
por aí, afina o gogó e pisa forte no martelo: Uma casa de taipa chão batido / o terreiro arrudiado de fulô / na
janela uma cortina de tricô / uma cerca de arame retorcido / uns cabritos no
pasto distraídos / no alpendre alguém bate o pilão / no roçado a dibúia de
feijão / no fogão a panela à cuziar / e sem ter como isso registrar / tirei
foto com a imaginação. Pois bem, esse alagoano de Passo de Camaragibe
chegou menino em Palmares, fincou os pés no chão proseando descarado: O tum, tum tum no pilão / de longe se escutava
/ na chaleira mão botava / o pó e água
no fogão / com fartura de montão / para mesa ela trazia / a gente se reunia /
pro alimento primeiro / ainda hoje eu sinto o cheiro / do café que mão fazia.
Montado numa lapa de bigode não para no amostramento: Alerto as autoridades, / e doutores competentes / para voltasse ao
sistema / que já salbou muita gente / porém com estilo ótico / vi no
diagnóstico / que o SUS está doente. Com o tempo, como um bom embeiçador da
tirana, tornou-se técnico em produção de açúcar e álcool e, também, em
logística e gestão de pessoas. Graduou-se em Teologia para ampliar seu
arcabouço intelectual: afinal, pro cabra ser bom tem que entender de tudo, até
das coisas do outro mundo que ele se diz doutor. Publicou uns livros. Destes, eu
tenho um livro e um cd: Feitos d’versos
(Outras Palavras, 1995) e Umas & outras. O restante deles, não
sei se por pirangagem da sua mão de figa, nem eu tenho, nem na biblioteca ou na
Academia onde ele ocupa uma das cadeiras de imortal, podem ser encontrados: Sussurros da mata (Bagaço,
1986), Num
rio de poesias (Universitária, 1987), Despertar no
rincão, Matutando na literatura e
Prosa de terreiro. S’assente, meu
véio, faça isso não. Agora ele reaparece com a obra Nordestino sim senhor (JC, 2018): Tinha um rio, uma pedra, e um peixe / o rio corria, a pedra crescia, o
peixe nadava / a agua batia e a pedra molhava / e na correnteza a peixe subia /
o rio foi poluído / a pedra explodida / e o peixe sumido / puta que pariu, quem
diria! Só tenho agora uma coisa a dizer: esse é dos bons, afianço (quem sou
eu? Ah, bicho besta metido às pregas), esse José Maria Sales, o poetamigo Pica
Pau. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais abaixo e aqui.
DITOS & DESDITOS: O QUE É SER BRASILEIRO
[...] e não me senti brasileiro. O que é ser
brasileiro? Tomar deste sorvete? Falar português? Levar vantagem, guardar dólar
para valorizar, aceitar passivamente a inflação, aplicar no open, invejar a
corrupção impune, usar tanga minúscula exibindo os pentelhos, saber estourar
pipoca, jogar na loto, saber com quem está falando, procurar mordomia, assistir
ao Fantástico, ter caderneta de poupança, tomar rabo de galo, achar caipirinha
de vodca o máximo, fritar linguiça de porco, não pagar prestação da casa
própria, se pendurar num emprego público, ter sucesso, adorar voleibol, ter
todos os cartões de crédito, comer abobrinha, mandioca frita, dar um jeitinho,
ter um contrabandista amigo para as bebidas, curtir o carnaval, usar jeans com
grife estrangeira, fingir que não se incomoda com o que Roberta Close tem no
meio das pernas, ter fé em Nossa Senhora Aparecida, ser doutor, mentir como o
governo, acreditar na macumba, sacanear, desmentir como o governo, devorar
dobradinha às quartas-feiras e feijoada aos sábados, adorar bundonas, dizer que
come todas as mulheres, acreditar que ninguém pode com o brasileiro? [...].
Trecho
extradído da obra O beijo não vem da boca
(Global, 1985), do escritor e jornalista Ignácio
de Loyola Brandão, Veja mais aqui, aqui e aqui.
A ARTE DE DAREL VALENÇA LINS
É a cor que muda as sensações e o clima do
acontecimento. Pode atribuir um clima dramático, ou poético, ou sombrio. Pensamento
de Darel Valença Lins
As
prostitutas [...] dizem coisas
através da maneira como se vestem, o que traduz o interior de cada uma delas [...]
Não é por necessidade erótica que fico
atraído pelo tema, mas pela forma, pelo sensualismo das roupas, do penteado, da
maquilagem. Esses aspectos me causam grande interesse visual e muito pouco
sensual. Muita gente procura fazer sensacionalismo, como se eu fosse um cara
que frequentasse habitualmente os bordéis, tomasse absinto e enchesse a cara [...]
Trechos de uma entrevista de Darel Valença Lins ao Jornal Auxiliar, São
Paulo, 01/07/1985.
[...] As cidades inexistentes que ele cria e que
parecem despovoadas, os seres humanos esmagados pela máquina – e tudo isso na
atmosfera penumbrosa do sonho, um realismo que nós reconhecemos como se fosse
nosso: beleza e pesadelo marcam a obra de Darel. Como se podem unir estas duas
palavras – só Darel sabe porque ele vive seus sonhos, não como homem irreal,
mas como um homem. Quem habita as enormes cidades, senão o próprio Darel que as
sonha e idealiza? Sonhar e idealizar são o ideal de um homem, de uma mulher. Em
Darel, além da parte artística propriamente, há uma preocupação com a
totalidade do ser humano em sua plenitude. O choque impotente do indivíduo
diante da máquina. As cidades escuras onde uma ou outra janela de luz acesa
atestam que elas são habitadas. Psicanalisando ou não, trata-se de um grande
artista e tenho que falar no resplandecente mistério de sua obra. Dela emana,
tanto da gravura, quanto do óleo e do desenho o grande mistério de viver
[...] Palavras da escritora Clarice
Lispector, em Diálogos Possíveis.
Darel, revsita Manchete, São
Paulo 07/1978.
A arte
do premiado gravurista, pintor, desenhista, ilustrador e professor Darel
Valença Lins (1924-2017), que foi professor
da Enba, Faap e Masp, atuou como ilustrador em diversos periódicos, como a
revista Manchete, Senhor e Playboy, e os jornais Última Hora e Diário de
Notícias, entre outros. Foi encarregado das publicações da Sociedade dos Cem
Bibliófilos do Brasil, ilustrou livros dos maiores escritores da literatura
brasileira, como Graciliano Ramos, Dalton Trevisan, Antonio Maria e Clarice
Lispector. Conviveu com Iberê Camargo, Cândido Portinari e Oswaldo Goeldi,
entre outros. Fonte: GORINO, Vitor Hugo. Litografia artística brasileira: Lotus
Lobo e Darel Valença Lins (Universidade Estadual Campinas, 2014). Veja mais
aqui, aqui e aqui.
A MÚSICA DE CHELPA FERRO
O coletivo
Chelpa Ferro foi criado em 1995 e reúne
a trajetória de renomados profissionais, como o pintor Luiz Zerbini, o escultor
Barrão e o editor de cinema Sérgio Mekler, aliando experiências pessoais que
exploram possibilidades na produção de arte contemporânea brasileira,
utilizando elementos sonoros justapostos aos visuais em suas obras. A abordagem
interdisciplinar é revelada pela aparente desorganização meticulosamente
orquestrada, criando espaço de fronteira entre os objetos articulados, o
público e o som em suas performances,
instalações e shows. Na obra Maracanã (2003), realizada no Museu
de Arte Moderna (MAM), do Rio de Janeiro, replica por meio de música eletrônica
experimental a emoção de um jogo de futebol e apropria-se do espaço com a
grandeza da arena construída. Assim, na obra de Chelpa Ferro, a percepção
convencional de música é desconstruída, criando uma nova linguagem sonora que,
ao ser equalizada em função escultórica, assinala correspondências ativadas
pela disposição e curiosidade do espectador. Já Acqua
Falsa (2005), apresentada na 51a Bienal de Veneza, a
obra incorpora a apresentação ao vivo com o improviso e interação com o
público. A performance Autobang, na 27a Bienal de
São Paulo (2002), o batuque gerado pelos porretes em ação é amplificado pelas
caixas de som, produzindo distorções que se revelam na construção de fronteiras
entre ruído e música, processo e resultados, espaço e escultura orienta a
poética deste coletivo, a reflexão sobre o improviso, o reprocessamento e a
criatividade da cultura brasileira. Já se apresentou em Havana (2003), em Porto
Alegre, e possui 4 álbuns lançados nos anos de 1997, 2011, 2012 e 2013. A discografia
do coletivo registra experimentações sonoras em shows ao vivo e publicado um
livro com um panorama das criações do grupo. Veja mais aqui.
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VALE DO
UNA - CAPOEIRAS, ONDE NASCE O RIO UNA
&
IBA.VALE:
ARTE EM IGARAPEBA
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