CANTOCHÃO – Um diácono
palestrava sobre o cantochão para uma plateia atenta. Falava das origens e
transformações dos cantos moçárabe, ambrosiano ou gregoriano, desenvolvidos
pelos monges reginaldinos, lá nos primórdios medievais. Empolgado em sua exposição,
alguém da plateia fez sinal e ficou com a mão levantada, até interrompê-lo.
Pois, não? O solicitante mencionou ao orador haver nas imediações da rodovia,
uma placa com a inscrição cantochão no acostamento. O conferencista admirou-se
da informação, alegando a possibilidade de um sinal de algum mosteiro existente
nas proximidades o que, para ele, seria salutar se pudessem depois levá-lo até
lá. O discurso prossegue e, ao término da conferência, um volumoso grupo se
ofereceu de levá-lo ao local indicado, vez que todos mais ou menos sabiam onde
era tal localização, muito embora desconhecessem a presença de monges pela
redondeza. Isso não era problema, pois, providenciaram uma condução e na noite
seguinte se dirigiram pela rodovia até a placa indicadora. Lá chegando, entraram
na rodagem e deram num casarão aparentemente suspeito, com uma luz vermelha e,
ao que parece, segundo comentário de um dos ocupantes, mariposas famélicas
seminuas na entrada. Aqui não, com certeza. Realmente, não pode ser. Vamos
adiante. Limítrofe ao suspicaz ambiente, havia uma outra edificação que dava
ideia de uma mansão abandonada e em ruínas, que poderia ser sinal da
austeridade dos monges que ali podiam viver, imaginavam. É, pode ser. Estacionaram
o veículo e um deles desceu até a porteira e logo avistaram uma anciã inquieta de
um lado a outro da janela, como se brincando de lá e cá, observando-os. É aqui
a casa de Jesus? Hem? Um deles falou e ela não ouvia, como também não ouviam o
que ela dizia. Quando mais ou menos entenderam: Aquele safado é ladrão, me
roubou aqui e se vierem pra me matar, eu atiro em vocês. Estranharam o
linguajar dela e dois outros desceram, o que fez com que a senhora da janela
ficasse mais inquieta. Minha senhora, estamos falando de Jesus? O José? Jesus!
Ah, o salafrário tá aí no cantochão com as safadas da laia dele. E apontava
para o local que haviam passado. Jesus? Sim, esse safado mesmo, vão lá, ele tá
lá e vejam! Entreolharam-se, essa velha deve ser louca. E ela repetia: Está aí
mesmo, o safado tá aí, vão lá! E foram poque notaram que a macróbia já assustada
empunhava uma espingarda. Entraram todos no veículo às pressas, fizeram a volta
rapidamente e foram até a área duvidosa mencionada, onde, segundo a doidona,
Jesus estava. Aproximaram-se desconfiados e logo avistaram lá dentro a placa
“Cantochão”, manuscrita no interior do salão numa rústica placa de madeira.
Será que estão com algum ritual que desconhecemos lá dentro? Estacionaram e
logo três das aparentes vulgívagas seminuas se aproximaram, recepcionando a
comitiva. Cantochão? Sim, aqui mesmo, podem entrar, a função acontece lá dentro
e Monge aparece já já. Ah, tudo bem! É aqui mesmo, vamos conhecer o monge. Uma
das madames dirigiu-se a uma delas: E vocês quem são? Somos as Vestais de
Monge. Ah, tá. Virou-se para outra madame e sussurrou: Deve ser de algum ritual
antigo mesmo, são vestais, por isso essa vestimenta estranha. A outra sorriu e
nem entendeu direito, nem perceberam os demais quando uma delas gritou lá pra
dentro: Organiza o puteiro aí que chegou uns casacudos com umas granfinas no
pedaço, mundiça! Estavam os visitantes completamente exultantes, quando uma das
fiéis perguntou para outra delas: E a senhora aí do lado? Ah, ela é a velha doida,
é tia de Monge, ela tem mania de que é roubada, piração total. Nem ligue pra
ela. Ah, tá. Então todos desembarcaram, ajeitaram suas vestes, esticaram as canelas
e subiram calmamente e com certa algazarra a escadaria que dava para um amplo
salão com uma luz vermelha ao centro. Quase nem dava direito para ver o que
havia ali de tão escuro. As anfitriãs encaminharam todos para os assentos ao
lado, perguntando se queriam beber alguma coisa. Vinho! É pra já. Enquanto eram
servidos, relaxavam e brindavam. Nem deu tempo do vinho queimar as orelhas dos
presentes, o levita impaciente cochichou no ouvido de um que estava ao seu lado:
Parecem mais marafonas essas vestais, não acha? Hem? Mais parecem pécoras! Hem?
Rascoas, não acha? Hem? Putas, ouviu? Gritou e todos ouviram. Era a senha, eles
não sabiam. Imediatamente um holofote se acendeu e apareceu uma ruma de
dançarinas sensuais ao som estridente de uma radiola de ficha com o maior jogo
de luz, e o fuá comeu no centro. As odaliscas faziam mesuras para todos, sentavam
nos colos dos homens, ou puxavam as mulheres para desatacá-las blusas e
vestidos dos seios à mostra, fazendo-as remexer os quadris de forma
sensualmente deliberada. Os homens pareciam uns donzelões de primeira vez e com
a língua de fora. As mulheres nunca se viram tão exaltadas, a ponto de dançarem
com as saias na cabeça, um espetáculo. O que o vinho não faz a um cristão, isso
depois de umas duas ou três garrafas esvaziadas, avalie. A coisa arrepiou. Um
dos convivas virou-se pro eclesiástico: Isso é que é mosteiro, homem, um
paraíso! O céu existe! Foi aí que adentrou ao recinto o Monge, isso embaixo do maior
zoadeiro: Quem é o chefe da comitiva? Hem? Que é o chefe? Eu! Como é que é: vai
comer as que trouxe ou vai torar as minhas? Hem? Que horas começa a suruba,
porra? Bem moderninho esse monge, diz cada coisa! Monge virou-se e chamou um
dos capangas: Fica aí de olho nesse povinho embecado, organiza essa putaria e se
saírem da linha, já viu né? Sim, senhor. A orgia soltou-se de virar a
madrugada, o dia já amanhecia. Aos olhos cristãos deles, na vera, nem deram fé que
o céu poderia ser um inferninho. Hem? Quem diria. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja
mais aqui.
DITOS & DESDITOS:
[...] Nada – aquilo que não é – pode ser uma causa...
Lembre que zero é diferente de um e porque zero é diferente de um, zero pode ser
uma c a usa no mundo psicológico, o mundo da comunicação. A carta que você não
escreve pode receber uma resposta zangada e o imposto de renda que você não
declara pode iniciar uma ação energética dos técnicos da Receita Federal,
porque eles também tomam seu café da manhã, comem seu almoço, chá e jantam e
podem reagir com a energia que deriva de seu metabolismo. [...] É compreensível que, em uma civilização que
separa mente e corpo, nós deveríamos tentar esquecer a morte ou fazer
mitologias a respeito da sobrevivência da mente transcendental. Mas se a mente
é intrínseca não apenas naqueles caminhos da informação que estão localizados
dentro do corpo, mas também em caminhos externos, então morte toma um aspecto
diferente. O nexo do indivíduo de caminhos que eu chamo “mim” não é mais tão
precioso, porque este nexo é somente parte de uma mente maior. As idéias que
pareciam ser podem também se tornar intrínsecas em você. Elas podem sobreviver –
se for verdade. [...].
Trechos
extraídos da obra Passos para uma
ecologia da mente (Steps to na
ecology of mind. Ballantine,1972), do biólogo, pensador sistêmico,
epistemólogo da comunicação e antropólogo inglês Gregory Bateson (1904 –
1980). Veja mais aqui e aqui.
A CIRANDA
Estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das águas do mar
Esta ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na ilha de Itamaracá
A ciranda
é uma dança típica das praias do litoral pernambucano e que surgiu
simultaneamente no interior da Zona da Mata, pois neste estado é uma dança de
roda comunitária que conta com a participação das mais diversas faixas etárias,
os quais são denominados de cirandeiros. Entre os participantes também contam o
mestre, o contra-mestre e os músicos, utilizando instrumentos como bom ou
zabumba, mineiro ou ganzá, maracá, caracaxá ou chocalho, a caixa ou tarol,
cuíca, pandeiro, sanfona e algum instrumento de sopro. A origem do nome é atribuído
ao vocábulo espanhol zaranda, que
significa instrumento de peneirar farinha, uma evolução da palavra árabe çarand. O mestre “tira as cantigas”,
improvisa versos, toca o ganzá e preside a brincadeira, utilizando um apito
pendurado no pescoço para organizar as funções. Os passos mais difundidos são a
onda, o sacudidinho e o machucadinho, afora criação de passos e movimentos de
corpo obedecendo a marcação. Uma das cirandeiras mais famosas é a dançarina,
cantora e compositora Lia de Itamaracá
(Maria Madalena Correia do Nascimento) que, em seu aniversário, 12 de janeiro,
por força da Lei Municipal 1.213/2012, passou a ser comemorado o Dia Municipal
da Ciranda e a ilha a Capital da Ciranda. Extraído do estudo Ciranda (Fundaj,
2004), de Lúcia Gaspar. Veja mais aqui, aqui & aqui.
A CIDADE ONDE NINGUÉM PODE
DORMIR
Uma mulher tinha duas
filhas. Uma delas desposou um homem que vivia numa cidade onde não era
permitido dormir; a outra casou com um de uma cidade onde ninguém podia cuspir.
Um dia a mulher preparou um prato de doce para levar à filha que vivia na
cidade onde não era permitido dormir. [...] a filha saiu, a mãe, durante algum tempo, conseguiu reavivar o fogo,
mas por fim, vencida pela sonolência, deitou-se e adormeceu profundamente. Justamente
nesse instante, uma vizinha veio pedir um pouco de fogo e, quando viu a mulher
adormecida, exclamou: - Ai de mim! A sogra de fulano-de-tal está morta. Então chamaram
os tocadores de tambor, e em breve toda a cidade se juntou diante da casa e
abriram uma cova. [...] E, quando
chegou a casa, sacudiu a mãe e disse: - Acorda, acorda! – Então a mãe acordou
de sobressalto e todos ficaram aterrados, mas logo viram que não tinham de que
ter medo, e toda cidade começou a aprender como se dormia. [...].
Trecho extraído das Lendas
africanas: o reino do homem (Cultrix, 1967), organizadas por Fernado
Correia da Silva. Veja mais aqui e aqui.
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