terça-feira, dezembro 15, 2015

MOZART, MALINOWSKI, MALASARTES, JACI, ÁFRICA, IVONEIDE & MUITO MAIS!!!

VAMOS APRUMAR A CONVERSA? SANHA, A HISTÓRIA DA CANÇÃO - Isso era lá pelo inicio dos anos 1990, período de inquietações, mudanças e muita incerteza. O país degustava a promulgação da Carta Cidadã de 1988 e meu coração retomava a esperança perdida e quase desmoronada no período turbulento de redemocratização. Muitos os anseios, muitas as decepções. Aí quando eu resolvi fazer uma releitura programada dos livros História da riqueza do homem, do Leo Huberman, As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e Anatomia da destrutividade humana, de Erich Fromm. Resultado disso, me inspiraram a escrever o texto O lamentável expediente da guerra, que anos depois publiquei em diversos jornais e alternativos, inclusive no Guia de Poesia do Projeto SobreSites (RJ). Achei pouco. E a leitura dessas obras me sobrecarregou de indignação, a ponto de começar a questionar até onde vai a sanidade humana. E a ruindade, também. O desvario humano é por demais reprovável, decepcionante. Foi exatamente a partir desse texto que nasceram os acordes da música Sanha. Ela não tinha esse nome de cara, só chegando a isso depois de um suor exagerado para concluir a música e mais outra transpiração medonha para letrar. Ei-la: Não há valia para apreço vale nada Não há vergonha para cara lavada Toda lisura que se espreme para viver E que viver Cadê a honra para quem não tem mais nada Não há guarida para alma penada Toda usura que sublima o querer E que poder Mandar não seja nobre ter rigor assim Pisar, varrer da frente algoz e querubim Quem doma a sanha não sabe dormir E mais se ganha para coibir Usar do relho para mais pesar Suor vermelho vibra no cantar Não há mais lance para ser carta marcada A dura sorte já está lançada Toda estatura que se arrasta pelo chão Tal qual anão Há riso oculto para ser face velada A traição devora a madrugada Toda espessura que comove o histrião No coração Privar da sede o pote de quem quer sorrir Traçar a sina o rito de quem vai partir Quem doma a sanha não sabe dormir E mais se ganha para coibir Usar do relho para mais pesar Suor vermelho vibra no cantar. (Sanha. Primeira Reunião. Bagaço, 1992). Veja os clipes da canção aqui e aqui, mais aqui e aqui. E vamos aprumar a conversa aqui.


Imagem: Siren Tears, da artista plástica estadunidense Anna Wakitsch.

Curtindo: Flute Concertos, Rondo, Andante (Bis, 2008), do compositor alemão Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) com a flautista israelense Sharon Bezaly & Ostrobothnian Chamber Orchestra & Juha Kangas.

ARGONAUTAS DO PACÍFICO OCIDENTAL – A obra Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné (Abril, 1978), do antropólogo polaco Bronislaw Malinowski (1884-1942), tece considerações acerca das populações costeiras das ilhas do sul do Pacífico, descrevendo o Kula, entre outros assuntos. Da obra destaco os trechos: Com raras exceções, as populações costeiras do Pacífico são – ou foram, antes da extinção – constituídas de hábeis navegadores e comerciantes. Muitas delas produziram excelentes variedades de canoas grandes para navegação marítima, usadas em expedições comerciais a lugares distantes ou incursões de guerra ou conquistas. Os papua-melanésios, habitante da costa e das ilhas periféricas da Nova Guiné, não são exceção a esta regra. São todos, de maneira geral, navegadores destemidos, artesãos laboriosos, comerciantes perspicazes. Os centos de manufatura de artigos importantes – tais como artefatos de cerâmica, implementos de pedra, canoas, cestas finas e ornamentos de valor – encontram-se em localidades diversas, de acordo com a habilidade dos habitantes, a tradição herdada por cada tribo e as facilidades especiais existentes em cada distrito. Destes centros os artigos manufaturados são transportados a diversos locais, por vezes a centenas de milhas de distancia, a fim de serem comerciados. [...] um trabalho etnográfico só terá valor científico se nos permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica [...] O tratamento científico difere do senso comum, primeiro, pelo fato de que o cientista se empenha em continuar sua pesquisa sistemática e metodicamente, até que ela esteja completa e contenha, assim, o maior número possível de detalhes; segundo, porque, dispondo de um cabedal científico, o investigador tem a capacidade de conduzir a pesquisa através de linhas de efetiva relevância e a objetivos realmente importantes. [...]. Veja mais aqui.

HISTÓRIA DE DOIS MOÇOS E QUATRO MOÇAS – No O Reino dos homens (Cultrix, 1962), organizado por Fernando Correia da Silva, encontro o relato História de dois moços e quatro moças, o qual transcrevo a seguir: Amavam-se e passavam as noites divertindo-se. Uma noite, falando de um rezzu que tencionava surpreender a aldeia ao raiar do dia, o galã disse: - Se, como dizem, o rezzu vier amanhã, matarei o chefe. Sua noiva respondeu: - Não acredito, mas se fosse teu amigo a dizê-lo, acreditaria. O amigo, por sua vez, disse: - Amanhã não montarei a cavalo para combater o ressu. – Então, - disse o outro – empresta-me a tua lança. 0 Oh! – respondeu o amigo – pouca coisa é uma lança; eu ta dou. Enquanto dormiam, chegou o rezzu; o jovem saiu com a lança do seu amigo; fez tombar no campo muita gente e atravessou o chefe, que fugiu com a lança cravada no corpo. Os guerreiros voltaram para sua casa. Então, em homenagem ao jovem, fizeram um batuque, tocando os tambores e soprando as trombetas e o jovem foi para sua casa. E os habitantes da aldeia disseram ao chefe: - Que pensa fazer em favor desse jovem, para recompensar sua brilhante valentia? O rei respondeu: - Eu sei muito bem o que hei de fazer. Mandou que trouxessem albornozes e lhos pôs nos ombros até por cima do pescoço. Mandou que trouxessem um milhão de caurins e lhos deu. Mandou que trouxessem cem bois e lhe fez presente deles. Então, seu amigo, movido pela inveja, perguntou-lhe: - Onde está a minha lança? – Tua lança está no corpo do chefe que fugiu. – Ora, - disse o amigo – quero que me devolvas a minha lança. – Dar-te-ei cem mil caurins – disse o jovem. – Não me interessam os cem mil caurins – respondeu o outro. – O que quero é a minha lança. – Bem, repartiremos os bois e te darei a metade. – Não te invejo a riqueza, só te peço a lança. Então o jovem disse à noiva: - Amanhã, com a ajuda de Deus, lhe trarei a lança. A jovem respondeu: - Iremos juntos; visto que, por causa de uma lança, se pretende manchar a tua reputação, quero ir contigo. Ao romper o dia, ele já estava a caminho; saiu de madrugada, para que sua noiva não o seguisse. Mas ela, que o tinha visto e seguido, exclamou: - Pára. Põe-me na garupa para eu ir contigo, porque se tiveres de morrer, quero que morramos juntos. E assim foram ambos até à aldeia inimiga. Muito perto da aldeia, encontraram uma porção de mocinhas que se estavam banhando num charco e que eram as filhas do rei. A mais velha, por quem seu pai tinha uma predileção especial, disse: - Jovem, de onde vens? Ela respondeu: - E tu, de quem és filha? – Sou a filha do rei. – Não me conheces? Fui eu quem atravessou teu pai e venho buscar a minha lança. Ela respondeu: - Segue-me, eu te darei a lança. Então o jovem fez apear a que tinha ido com ele e deixou-a fora da aldeia; seguiu a filha do rei e juntos foram até à porta da casa do rei. Os cortesãos disseram: - De onde vem este estrangeiro? O jovem não respondeu; ela também não falou mas entrou em casa, onde pegou em muitas lanças e disse-lhe: - Vê se está aqui a lança com que atravessaste meu pai. Ele respondeu: - Não está. A jovem levou-as e trouxe outras, e assim fez por três vezes. – Está aí. E pegou-a. Então ela disse: - Espera que eu as coloque no lugar e volte. Quando voltou, disse: - Eu te quero; leva-me contigo, iremos juntos; mas quando me puseres no cavalo, começarei a gritar: Ihu! Ihu! E direi: Este homem foi aquele que atravessou meu pai, que veio agora para me raptar. Depressa, depressa a cavalo. Ele pô-la na garupa e ela começou a gritar. – Ihu! Ihu! Este homem foi o que atravessou meu pai; leva-me na garupa, leva-me na garupa. O jovem deixou a aldeia, recolheu a que tinha ido com ele e pô-la na sua frente. Então o povo da aldeia montou a cavalo, perseguiu-o e o alcançou. Ele os repeliu. Voltaram e ele, os repeliu novamente. Voltaram outra vez para o surpreenderem junto ao rio. Então, ele disse ao barqueiro: - Depressa, depressa, põe-me a salvo; depressa, depressa, põe-me a salvo. E o barqueiro respondeu: - Só te porei a salvo se me deres uma dessas jovens. Mas a filha do barqueiro matou o pai e salvou o jovem e suas duas amigas; depois disse: - Eu te quero e, para te salvar, matei meu pai. Eu te quero. – E acrescentou: - Vamos, leva-me contigo. Mais tarde o jovem abrigou-se sob uma arvore frondosa e deitou-se; o mesmo fizeram as três jovens; então ele começou a sonhar e morreu. As jovens começaram a chorar por ele. Apareceu, então, uma fada jovem e disse: - Por que chorais? Elas responderam: - Veja, morreu-nos o marido. Ela disse-lhes: - Se ele ressuscitar, ficará para nós quatro? Elas responderam: - Aceitamos que nosso marido seja para as quatro. Então a fada umedeceu-o com saliva e o jovem se levantou. – Saibamos uma coisa: destas quatro jovens, qual escolherias como primeira mulher, como favorita? Desde então discutem o assunto e, até agora, não se pôde saber qual deve ser a favorita. Veja mais aqui e aqui.

QUATRO: ROSA DELUX – No livro Lavradouro (EdUFPE, 1973), do poeta alagoano radicado no Recife, Jaci Bezerra, destaco alguns poemas da parte Quatro – Rosa delux: 1: Amor aceso dá-se / ouro brasa ouro ramo / cedo não o amordace / engano e desengano / não queixo amor se nasce / doido doce dano / rubro auroreça arda / o amor no olhar da amada. 2: Alumbra alumiando / morno moroso rio / na pedra cascantando / quixoso, fio a fio, / água rosa abrandando / endurecido milho ; púrpuro azul inflama / madruga se derrama. 3: Noturna rosa inversa / areia amor encanta / atado o rio encerra / o amor e aceso canta / em serra, não em terra, / solução água mais branca / rubro amor adivinha / desata as andorinhas. 4: Claro ramo de música / ourada rosa orvalha / a pedra chora, a angústia / ameaça amealha / árida flor enxuta / desabrocha cascalha / áspera canta, medra / brasa da flor, a pedra. 5: Acesa pedra cega / o rio não o mar / doendo amor entrega / a mando deixa amar / nunca pedra renega / amor se amor se dá / água do rio cante / acenda cada amante. 6: Crepuscula de aves / o ácido sol, guarda / a pedra o rio a tarde / rosa amor rosa amada / corado rubi arde / vermelha madrugada / o amor doado inteiro / é um ar de moça um cheiro. 7: Cedo a rosa incendeia / o amanhecido bem / água enxugando a areia / afaga o amor de quem / aceita não receia / o amor, se é amor, e vem / trança de rosa e mágoa / ardendo dentro d’agua. 8: A pedra, rubra mancha, / acesa verde grama / amor não é mudança / aérea é áurea chama / feixe, sol de lembrança, / derrama quando ama / prenda manhã lavrada / a rosa a pedra a amada [...] Veja mais aqui e aqui. 

PEDRO MALASARTE – Na peça teatral Pedro Malasarte (Recife, 1961), de Silvio Rabelo, destaco o primeiro quadro: Durante a cena que inicia o terceiro ato, quase um ano depois, o pano não sobe. Pedro Malasarte, Pascoal e Balduíno acham-se no próprio proscênio. Parecem vir de viagem, a considerar os surrões que trazem. Contudo Pedro Malasarte não vem de longe, mas das redondezas de Catolé, onde montou o seu quartel por alguns dias. Encontram-se eles em caminho e fizeram camaradagem. Agora descansam quase ao escurecer, para retomarem a viagem, de manhãzinha cedo. Sentados sobre os surrões, enrolam os cigarros, prontos para a parolagem. Pascoal é um magrela alegre e fanfarrão. Como alfaiate, diz que foi chamado pelos grandes do lugar: vai tentar a vida em Catolé. Balduíno, baixote e grosso, tem o mesmo destino, pois que vai tomar conta da padaria cujo dono há pouco morrera. É astuto e ladrão. Pedro Malasarte: - Digam vosmecês o que quiserem, mas o tempo bom já se foi. Não é que os malucos estejam se acabando; os ajuizados, sim, é que estão fingindo maluquice. Balduíno: - É uma vantagem. Ninguém engana os outros. Pedro Malasarte: - Eu posso contar porque já tenho corrido muita terra. (Pascoal parece preocupado com alguma coisa muito sua e não ouve o que os companheiros estão conversando. Balduíno bate no seu pé). Balduíno: - A gente estava falando do tempo. Pascoal, estendendo o braço: - Quem disse que vai chover? Só mesmo chuva... Pedro Malasarte: - Os tempos fáceis... Ainda me lembro de um cavalo castanho-escuro que comprei pela metade do dinheiro estipulado. Aquilo é que era animal. Eu cheguei, reparei, reparei e botei preço. O dono emperrou nos vinte e quatro dobrões. - "Pois eu lhe dou agora doze - disse eu - e os outros doze fico devendo". Ele respondeu: - "‘Se gostou, leve o cavalo e leve com o cabresto..." Depois de anos, tornando ao lugar, quis pagar o restante, mas o quê? - Não houve jeito. - "Se vosmecê paga - explicou - quebra o contrato: não fica devendo os doze dobrões!" Pascoal: - Mas quem disse isso foi o homem ou foi o cavalo? Pedro Malasarte: - Assim era tudo o mais. Já comi em muito rancho, do bom e do melhor, só dizendo: - "Um almoço à altura do meu dinheiro". O dono trazia cozido, assado e frito; boi, porco e galinha, às vezes vinho. Na hora de pagar, a moeda de cobre que trouxesse, eu botava na mão dele. - "Esse almoço não se paga com vintém" - dizia. - "Meu senhor: pedi comida à altura de meu dinheiro!" E acabava tudo numa boa risada. Balduíno: - Na casa de meu pai, nem mesmo vintém eu pagava. Pascoal: - E era o pai de vosmecê, seu Balduíno? Pedro Malasarte: - Hoje em dia, não há mais larguezas, não. Só se vê apego às coisas, o que se tem na mão e até no bestunto, mesmo que seja uma bobagem. E quem quiser mudar o mundo, cuidado com a cruz! Um dia em Chã Pelada, sentei-me na porta de um hotel, doido para comer o cozido que estava recendendo cá fora. Enquanto esperava, fiz uma boquinha comendo um taco de pão. Pois não é que o hoteleiro veio cobrar, dizendo que o cheiro era mais difícil de fazer do que o gosto? Também não tive dúvida, puxei uma prata e com ela bati no chão. - "Está aí, meu senhor, fica o tinido pelo cheirado! Pascoal: - Espero em Catolé cobrar até os alinhavos. Se me chamaram é porque podem pagar alfaiate. Também não é todo dia que se encomenda roupa nova. Tem de se aproveitar. Balduíno: - Como padeiro, o que posso fazer é cortar no peso. O finado que lá estava caiu na besteira de diminuir tanto no peso como no tamanho. E foi de praga que morreu. Pascoal: - Não é hora mais de conversa, minha gente. Vamos tratar de comer. (A essa voz, todos se levantaram e abrem os surrões, à cata de alguma coisa de comer). Pascoal: - Está o que resta da viagem: uma quarta de carne. E seca que nem sola. (tira a carne) Balduíno: - Eu só tenho farinha. E um punhado grande. (Tira a sacola de farinha) Pedro Malasarte: - Com a franqueza que vosmecês conhecem: não vejo mais nada. Também uma noite só não chega para matar. Pascoal: - Dá para todos: o pão de um sempre é comido por dois... Pedro Malasarte: - Somos três. Balduíno: - Temos ainda a farinha. E para não haver queixa, faz-se um acordo. Nós dois, eu e seu Pascoal, damos a bóia, e seu Pedro prepara. Assim ninguém come de caridade. Pedro Malasarte: - Está direito, seu Balduíno. Vosmecê é um cristão. (Pedro Malasarte começa a procurar as três pedras da trempe. Arma-se. Depois vai por longe, à cata de gravetos. Sai da cena, ficando sós os outros companheiros de viagem) Balduíno, baixando a voz: - Escute, seu Pascoal: essa bóia chega muito mal para dois. Para três, contando esse maldito do Pedro, ficamos a nenhum. Pascoal:- Eu tinha visto, seu Balduíno. Mas o homem estava aqui e fazendo cruz... Balduíno: - Deixe por minha conta que eu embrulho esse sujeito. (Pedro Malasarte volta trazendo os gravetos que são arrumados na trempe. Logo mais o fogo é ateado fazendo chama. Espera um tempo que se vejam brasas. Enquanto isso, Balduíno faz uma proposta). Balduíno: - Seu Pedro: Eu estava pensando que o melhor é assar a carne e guardá-la para amanhã. Já imaginou vosmecê cada um comendo agora um taquinho de nada e caindo no caminho de manhãzinha com a barriga vazia? Vamos dormir o nosso sono primeiro. Vosmecê está de acordo? (Pedro Malasarte toma de Pascoal a carne, mete-a num espeto de pau e começa a assar. Faz que não ouve a Balduíno) Pascoal: - Seu Balduíno está falando, seu Pedro! Balduíno: - Indago se está de acordo com a idéia que disse a vosmecê. Pedro Malasarte: - É mesmo: amanhã é melhor. A gente come com mais vontade. Balduíno: - Mas tem isso, seu Pedro: só come da carne quem sonhar o sonho mais bonito. Cada um que durma bem e sonhe melhor. Está direito? Pedro Malasarte: - Idéia grande, seu Balduíno. (Ainda Pedro Malasarte continua a assar, enquanto os companheiros se preparam para dormir, fazendo dos surrões os próprios travesseiros. Acabado o trabalho, Pedro Malasarte cobre a carne com uma coité. Depois vai, por sua vez, deitar-se. Escurece. Durante um tempo há um grande silêncio. Logo ouvem-se roncos de quem dorme. Então Pedro Malasarte levanta a cabeça, apura o ouvido. Não há dúvida: Pascoal e Balduíno estão ferrados no sono. Com cautela Pedro Malasarte senta-se e ali mesmo estende o braço até alcançar a carne que ele come regaladamente com farinha. Ainda bebe uns goles d’água do cantil. Feito isso, com toda a tranqüilidade vira-se para o outro lado e dorme. Ouvem-se agora não dois e sim três, roncando. Um novo silêncio. É de se supor que já é de madrugadinha pela claridade que faz no proscênio. Pascoal e Balduíno põem-se de pé ao mesmo tempo. Vêem Pedro Malasarte dormindo e riem gostosamente) Balduíno: - De qualquer jeito nós dois repartimos a carne. Não garanto que o sonho de vosmecê seja mais bonito. (Pedro Malasarte acorda e senta-se disposto a escutar os sonhos dos companheiros). Balduíno: - Vá, seu Pascoal: conte o sonho. Pascoal: - Custei a sonhar, seu Balduíno. Agorinha de manhã é que meu anjo da guarda veio e disse que o Santo Pai estava esperando por mim. Então o Anjo abriu as asas e me levou para o céu... Pedro Malasarte: - E vosmecê não ficou com uma peninha da asa do anjo? Balduíno: - Que foi bonito, foi, sendo sonho de zeladora das almas. O meu não foi assim. Sonhei que o chifrudo chegava e dizia: - "Balduíno, meu negro, está na hora; vamos que a corte do inferno está em festa para receber mais um condenado..." Sem nenhum medo peguei-me pelo rabo dele e lá fui. Pedro Malasarte: - Sonho bem sonhado para padeiro. Costume da fornalha acesa... Balduíno: - Agora o de vosmecê. Pedro Malasarte, levantando-se: - Pelo que ouvi já me acho sem a carne. Mas sonhei, e é bom que eu conte também o sonho que tive. Mas o meu abarcou o céu, a terra e o inferno e por isso fiquei tão assombrado que ainda as pernas me tremem. Pois foi assim: sonhei que tinha perdido os amigos e estava sozinho neste mundo de Cristo. Seu Pascoal tinha ido para o céu, mas não foi o anjo da guarda que o carregou para as alturas. Foi mesmo o Padre Eterno que se lembrou dele e chamou Jacó. - "Vem cá, Jacó, vai buscar aquela tua escada e desce para procurar Pascoal" Jacó mais que depressa botou a escada de nuvem abaixo até chegar neste cantinho onde Pascoal estava dormindo. Aí é que os anjos vieram e arrebataram Pascoal que mal pisava nos degraus daquela escada de floco de neve... Lá do topo, estava esperando o Padre Eterno, que abriu os braços e recebeu Pascoal: - "Chega, Pascoal, teu lugar é aqui. Para teus filhos e netos eu dou a terra onde tu dormias". E então seu Pascoal ficou no céu. Balduíno: - Até no céu há proteção. Seu Pascoal merece lá tudo isso? Pascoal: - Vosmecê está mas é com inveja. Pedro Malasarte: - Ninguém pode mandar na vontade de Deus Nosso Senhor, seu Balduíno. Já com vosmecê (Aponta para Balduíno) foi diferente. O chifrudo veio, não a pé, mas no carro de fogo que uma vez serviu a Elias. Não sei como Belzebu achou esse carro tão antigo, juntamente com as parelhas dos animais. Mas achou e levou nele seu Balduíno, que estava um pouco espantado com aquele calorão. Então o chifrudo disse: - "Balduíno, você não parece padeiro! Esse foguinho não é nada comparando com o das caldeiras". Nas profundezas, seu Balduíno encontrou o pai e a mãe e foi como se estivesse mesmo em casa. Se Eliseu ficou com a capa de Elias, seu Balduíno recebeu de presente um espeto de três pontas para espetar o próprio traseiro. Assim, perdi os dois. E agora, meu São Serafim, o que vai ser de mim? Pascoal: - Está aí seu Balduíno com um espeto bem empregado. Cada um pena por onde peca... Balduíno: - Sai daí, safado! Pedro Malasarte: - Foi então que me lembrei da carne. Não havera de comer sozinho. Gritei para cima: - "E a carne, seu Pascoal?" - "Carne coisa nenhuma, seu Pedro. Quem tem um pedaço do céu tem tudo"’. Depois virei-me para as profundas: "Seu Balduíno, que destino dou à carne?" - "Não estás besta, não, seu Pedro? O maná aqui dá para empanzinar". Então não tive outro jeito: peguei da carne e fui comendo. Comendo e chorando por ter ficado sozinho... Pascoal: - Foi no sonho? Pedro Malasarte, levantando a coité: - No sonho mesmo! Balduíno: - E a gente vê que os tempos, como lá diz seu Pedro, estão mesmo ruins. Pedro Malasarte: - Muito ruins, O povo se acostuma com os possuídos, seja um caroço chupado, seja um bicho de pé. O melhor é não se ter nada de seu. (Os viajantes retomam o caminho e desaparecem do proscênio. Com a saída deles, o pano levanta imediatamente e continua o terceiro ato, em cenário convenientemente ajustado às novas cenas). [...]. Veja mais aqui.

TIRESIA – O filme Tiresia (2003), do cineasta francês Bertrand Bonello, é baseado na lenda de Tirésias que conta a história de um transexual que é sequestrado por um homem e deixado para morrer na floresta, sendo guardado por uma família que o recebe com o dom de prever o futuro. Contudo, o filme conta a história de um padre que trancafia um travesti em uma fazenda distante e, à medida que fica sem hormônios, vai tornando à forma masculina. Num momento de ira, ele cega o rapaz que desenvolve poderes mediúnicos e torna-se uma celebridade local. O destaque do filme vai para a atriz franco-brasileira Clara Choveaux que já participou de várias produções internacionais e concorreu ao festival de Cannes. Veja mais aqui.


ENTREVISTA IVONEIDE LOPES – A radialista e blogueira Ivoneide Lopes apresenta de segunda a sábado, das 8hs às 11hs, na Rádio Líder FM, em Sousa, na Paraíba, o programa 97 Mix. Nesse programa a apresentadora e comunicadora leva entretenimento, notícias e muito alto astral para seus ouvintes, apresentando o Uma dica, um sessão de muito sucesso e informação. Ela também edita o blog que é o espelho do programa e que sigo há bastante tempo, para me atualizar com as novidades, além escrever para a sua coluna no Sertão Informado e atuar como cerimonialista. Trata-se de uma competente guerreira que mantém com dedicação e afinco as suas atividades profissionais, sem deixar de ser uma pessoa simpática, inteligente e generosa. Tanto é que hoje ela gentilmente concedeu uma entrevista falando do seu trabalho, suas várias atividades, seu sucesso e perspectivas. Para conferir a entrevista clique aqui.

IMAGEM DO DIA:
A arte do pintor, desenhista e ilustrador francês Paul Gustave Doré (1832-1883). Veja mais aqui.

DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada à cantoramiga, compositora e radialista carioca radicada em Pernambuco, Ju Mota. Veja aqui, aqui e aqui.


KARIMA ZIALI, ANA JAKA, AMIN MAALOUF & JOÃO PERNAMBUCO

  Poemagem – Acervo ArtLAM . Veja mais abaixo & aqui . Ao som de Sonho de magia (1930), do compositor João Pernambuco (1883-1947), ...