VAMOS
APRUMAR A CONVERSA? CORAÇÕES SOLITÁRIOS - É Natal. Da janela, o meu minúsculo mundo se reduz a
telhados, ruas, janelas, antenas e a imensidão de nuvens sem estrelas e lua –
cadê o céu? -, no mais, a minha solidão. E ela é insuportável, tornando a noite
em uma grande odisseia com suas luzes, sirenes, amores desfeitos, desejos
adiados. O trâmite da solidão. Na solidão noturna, os olhos e ouvidos
atentos, a sensibilidade à flor da pele e a constatação de que tudo é transitório,
só que recomponho minhas lacunas por todas minhas errâncias e interstícios, e
sinto a chuva, os trovões e relâmpagos que não me deixam sair de casa. Ah,
preciso sair só – cantarolando Lenine -, fechar a porta e cair na cidade, andar
sem saber de nada, viver o imprevisível. Bordejar nas calçadas com olhar distraído
para ver que a cidade é a mesma e muda a cada momento, embora a mesma vizinhança,
os prédios, árvores, as plantas que colorem os jardins, os vasos nas janelas e
varandas, os pedestres que vão e vem pelas poças, meio fio e triz. E o trânsito
me atordoa com os seus luminosos, tapumes, terrenos baldios e quase tropeço em mendigos
no meio das demolições, da fachada em reforma, do desnível no acesso da padaria
da esquina, nos paralelepípedos dos blocos residenciais, a topada no gelo
baiano, o medo do assalto, as balas perdidas, as festas animadas, os cartazes
de cinema, a linda moça que passa belamente vestida e triste, o teatro fechado,
as filas nos restaurantes, os indesejáveis que nos rondam, o casarão quase
demolido, o arranha-céu abandonado, o filme que não assisti, o asfalto
esburacado, a calçada cheia de cascalhos, a erosão, a corrosão de tudo, os
apodrecimentos nas impressões, o caminhão do lixo quebrando o silêncio, a
conversa boba. Nos vãos da noite posso sentir o desgaste do tempo e que aqui
tudo é passado. Preciso ir adiante, sou transeunte nessa a cidade que guardei
na memória e me esqueci, só quando revejo para ver-lhe não mais a mesma e que
até nem reconheço, como do que não me lembro e se parece novo. É nela que
coabito apenas com minhas lembranças e finitude. Ah, já que não posso sair, pelo
menos uma assombração aparecesse para quebrar essa monotonia. Ou quem dera voar
e estar por todos os lugares e perceber o quão a realidade é invertida e que,
por isso, poderia sanar a ausência e desdém. Poderia olhar em volta, com o
ensimesmamento de ter ao mesmo tempo a sensação de platitude, de ubiquidade, dos
interstícios, da incomunicabilidade, do vazio. Ah, mas eu preciso encontrar um
coração solidário nessa hora. Não posso ir à rua, os solitários estão na Rede, acessar
a internet e sacar no meio de muita veleidade em exposição, muita frivolidade
narcisista, alguma mão amiga que entoe comigo Entrega. Preciso de
alguém acessível e que como eu não tenha temores nem rubores para expor a alma
nua, mais interativa para preencher minhas lacunas e repaginar minhas ideias e
pensamentos. Tudo é muito instantâneo, descartável. Ler um livro talvez seja
melhor. Assim, quem sabe, eu possa viajar por outras paragens mais divertidas e
reconhecer-me entre os protagonistas e coadjuvantes numa aventura errante sem
que me cobre culpa ou arrependimento. É sim, é melhor. Então veja as dicas
abaixo e aprume, depois, a conversa aqui.
PICADINHO
Imagem: A mulher nua, da artista plástica Cristina Salgado.
Curtindo a Laureate Series Guitar (1995), da violonista grega Elena Papandreou.
EPÍGRAFE – Do sábio grego Hipócrates: Ad extremos
morbos, extrema remedia exquisite optima. Tradução: A grandes males,
grandes remédios. Veja mais aqui e aqui.
A
BELA SOBRINHA PREDILETA DE NEWTON
– O físico e matemático inglês Isaac
Newton (1642-1727) convivia com uma belíssima sobrinha, a espirituosa,
brilhante e inteligente Catherine Barton
Conduitt (1679-1739), que foi a responsável
por espalhar a lenda da maçã que lhe caiu sobre a cabeça para criar a teoria da
gravitação. Essa sobrinha não só atraiu a atenção do tio, como de pessoas
famosas como Janathah Swift e Voltaire. Segundo este último, Newton encontrava nela uma útil auxiliar para a
satisfação de suas ambições, ao mencionar que: “Quando eu era moço, imaginava que a corte e a cidade de Londres haviam
nomeado Isaac Newton diretor da Casa da Moeda por aclamação. Mas enganava-me.
Ele tinha uma sobrinha encantadora... a sobrinha agradava muito ao chanceler do
erário... o cálculo infinitesimal e a gravitação, de nada teriam servido a
Newton sem uma linda sobrinha”. Também é fluente que graças aos encantos de
sua sobrinha, Newton recebeu o título de cavaleiro e foi introduzido na
sociedade do Príncipe Consorte. Veja mais aqui e aqui.
O
HOMEM E O PÓS-HOMEM – No
artigo Membranas e interfaces (Que
corpo é esse? Mauad, 1999), da doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e
professora pesquisadora, Fernanda Bruno,
encontro que: As novas potencias dos
homens contemporâneos parecem estar marcando uma ruptura, que muitos começam a
apontar como o fim da humanidade (seja celebrando-o ou condenando-o) e o início
de uma era: a pós-modernidade. Pois somente agora a criatura humana passaria a
dispor, de fato, das condições técnicas necessárias para se autocriticar,
tornando-se um gestor de si na administração do seu próprio capital privado e
na escolha das opções disponíveis no mercado para modelar seu corpo e sua alma.
Outro corte radical emerge da dissolução das velhas fronteiras entre o
organismo natural – o corpo biológico – e os artifícios que a tecnociência
coloca nas mãos do novo demiurgo humano para que ele conduza sua pós-evolução,
não apenas em nível individual como também quanto à espécie, hibridizando-se
com as diversas próteses bioinformáticas que já estão à venda. Veja mais
aqui.
A
ERVA DO DIABO - No livro
A erva do diabo (Record, 1968), do
escritor e antropólogo estadunidense Carlos
Castañeda (1925-1998), destaco o trecho: Resolvi
fazer uma última tentativa. Levantei-me e, devagar aproximei-me do lugar
marcado pelo paletó e tornei a sentir a mesma apreensão. Dessa vez, fiz um
grande esforço para me controlar. Sentei-me e depois ajoelhei-me para deitar de
bruços, mas, a despeito de minha vontade, não consegui deitar-me. Pus as mãos
no chão em frente de mim. Minha respiração estava ofegante; meu estômago estava
embrulhado. Tive uma nítida sensação de pânico, e lutei para não fugir. Pensei
que talvez DomJuan me estivesse vigiando. Devagar, rastejei até o outro ponto e
encostei as costas na pedra. Queria repousar um pouco para arrumar as ideias,
mas adormeci. Ouvi Dom Juan falando e rindo por cima de minha cabeça. Acordei.-
Você encontrou o ponto – disse ele. A principio, não entendi, mas ele me garantiu
de novo que o lugar em que eu adormecera era o ponto certo. Tornou a me perguntar
como é que eu me sentia deitado ali. Respondi que realmente não notava nenhuma diferença.
Disse-me que comparasse minhas sensações daquele momento com o que eu tinha sentido
deitado no outro ponto. Pela primeira vez, ocorreu-me que eu não poderia explicar
minha apreensão da noite. Incitou-me, numa espécie de desafio, a me sentar no outro
ponto. Por algum motivo explicável eu chegava a ter medo do outro lugar, e não me
sentei lá. Declarou que só um tolo podia deixar de perceber a diferença. Perguntei-lhe
se cada um dos dois pontos tinha um nome especial. Ele disse que o mero chamado
o sitio e o mau o inimigo: disse que os dois lugares era marca do bem-estar do homem,
especialmente para uma pessoa que buscava o conhecimento. [...]. Veja
mais aqui.
A
CEIFEIRA SOLITÁRIA & OUTROS POEMAS
– No livro The Laurel Poetry Series
(Dell Publishing, 1960), do poeta romântico inglês William Wordsworth (1770-1850), destaco inicialmente A ceifeira
solitária: Só ela no campo vi: / solitária
de altas serras, / ceifa e canta para si. / Não digas nada, que a aterras! / Sozinha
ceifa no mundo / E canta melancolia. / Escuta: o vale profundo / Transborda à
de harmonia. / Nunca um rouxinol cantou / em sombras da Arábia ardente / ao que
exausto repousou / mais grata canção dolente; / ou gorjeio tão extremado / se
escutou na Primavera, / cortando o Oceano calado / entre ilhas de Além-Quimera.
/ Quem me dirá do que canta? / Será que o que ela deplora / é antigo, triste e
distante, / como batalhas de outrora? / Ou coisas simples são / do quotidiano
viver? / Essas dores de coração, / que já foram e hão-de ser? / Seja o que for
que cantara / é como infindo cantar, / que a vi cantando na seara, / no trabalho
de ceifar. / Sem falar, quieto, eu escutava / e, quando o monte subia, / no
coração transportava / o canto que não se ouvia. Também o poema sem
título: A poesia é o transbordamento espontâneo de sentimentos
intensos: tem a sua origem na emoção recordada num estado de tranquilidade. Também um segundo poema sem título: A verdadeira beleza vive em refúgios
profundos, cujo véu é irremovível, até que coração e coração em concordância
batam. E o amor é amado. Veja mais aqui.
O TEATRO NO BHARATA – No épico da
mitologia hindu Ramáiana denominado Bharata
(Natya Çastra), na tradução de Renê Daumal, encontro que: [...] Brahmâ
disse ao Fazedor-de-todas-as-Coisas, voltando-se para ele: “Constroi uma casa
para o Teatro, de acordo com as regras canônicas, ó Grande-inteligência!”. E,
sem perder tempo, o Fazedor-de-todas-as-Coisas construiu uma sala de teatro,
clara, grande, de acordo com todas as figuras canônicas. Foi à torre do
Construtor, mãos juntas e disse-lhe: “A sala de teatro está pronta, senhor;
digna-te poisar nela o teu olhar”. Então, com o grande Indra e todos os outros
Deuses, o Construtor apressou-se a vir ver o templo do teatro. A seguir o
Grande-Pai disse aos Deuses reunidos: “Fazei um sacrifício ritual neste tempo
de teatro”. [...] O teatro descreve as
manifestações deste Triplo mundo total. Descreve que a lei, quer o jogo, quer a
riqueza, a quietude, o riso, a guerra, a paixão, quer a morte violenta. A Lei
para os que o seguem, paixão para os que a ele se entregam, a disciplina dos
que se comportal mal, exemplo para aqueles que se sabem conduzir. Veja mais
aqui.
FILME
DE AMOR – O longa-metragem Filme de amor
(2003), do diretor Júlio Bressane, coloca em cena o mito da três graças – o
Amor, A Beleza e o Prazer, onde duas mulheres e um homem dão um intervalo em
suas vidas de cotidiano medíocre para um hiato de alegria, paixão, libertação e
transcendência. No mito original são três mulheres, Tália, Abgail e Eufrosina,
mas Bressane optou por escalar um homem levando em conta esses “novos tempos
híbridos e heterogêneos”; e no filme eles encarnam os personagens Hilda,
Matilda e Gaspar sob a lente Bressaniana. São três amigos que vivem no subúrbio
e que decidem se encontrar em um pequeno apartamento num final de semana, com o
objetivo de beber, conversar, sentir prazer e, principalmente, estarem juntos.
Lá eles entram num estado de sonho, devido à embriaguez, que os leva a esquecer
o que ocorre fora do apartamento. O destaque do filme vai para a atriz Josie
Antello, especialmente naquela cena que ela sai completamente nua da
banheira. Imperdível. Veja mais aqui.
IMAGEM DO DIA
Charge do escritor, cartunista, tradutor, roteirista e
autor teatral Luis Fernando Veríssimo. Veja
mais aqui.
DEDICATÓRIA
A edição de hoje é dedicada à cantora e
compositora Claudia Telles. Veja
aqui.
AS PREVISÕES DO DORO PARA 2016
CRÔNICAS NATALINAS
Confira aqui.
LEITORA TATARITARITATÁ