quarta-feira, março 20, 2019

GRACILIANO, BATESON, LENDA AFRICANA, CANTOCHÃO, CIRANDA & LIA DE ITAMARACÁ


CANTOCHÃO – Um diácono palestrava sobre o cantochão para uma plateia atenta. Falava das origens e transformações dos cantos moçárabe, ambrosiano ou gregoriano, desenvolvidos pelos monges reginaldinos, lá nos primórdios medievais. Empolgado em sua exposição, alguém da plateia fez sinal e ficou com a mão levantada, até interrompê-lo. Pois, não? O solicitante mencionou ao orador haver nas imediações da rodovia, uma placa com a inscrição cantochão no acostamento. O conferencista admirou-se da informação, alegando a possibilidade de um sinal de algum mosteiro existente nas proximidades o que, para ele, seria salutar se pudessem depois levá-lo até lá. O discurso prossegue e, ao término da conferência, um volumoso grupo se ofereceu de levá-lo ao local indicado, vez que todos mais ou menos sabiam onde era tal localização, muito embora desconhecessem a presença de monges pela redondeza. Isso não era problema, pois, providenciaram uma condução e na noite seguinte se dirigiram pela rodovia até a placa indicadora. Lá chegando, entraram na rodagem e deram num casarão aparentemente suspeito, com uma luz vermelha e, ao que parece, segundo comentário de um dos ocupantes, mariposas famélicas seminuas na entrada. Aqui não, com certeza. Realmente, não pode ser. Vamos adiante. Limítrofe ao suspicaz ambiente, havia uma outra edificação que dava ideia de uma mansão abandonada e em ruínas, que poderia ser sinal da austeridade dos monges que ali podiam viver, imaginavam. É, pode ser. Estacionaram o veículo e um deles desceu até a porteira e logo avistaram uma anciã inquieta de um lado a outro da janela, como se brincando de lá e cá, observando-os. É aqui a casa de Jesus? Hem? Um deles falou e ela não ouvia, como também não ouviam o que ela dizia. Quando mais ou menos entenderam: Aquele safado é ladrão, me roubou aqui e se vierem pra me matar, eu atiro em vocês. Estranharam o linguajar dela e dois outros desceram, o que fez com que a senhora da janela ficasse mais inquieta. Minha senhora, estamos falando de Jesus? O José? Jesus! Ah, o salafrário tá aí no cantochão com as safadas da laia dele. E apontava para o local que haviam passado. Jesus? Sim, esse safado mesmo, vão lá, ele tá lá e vejam! Entreolharam-se, essa velha deve ser louca. E ela repetia: Está aí mesmo, o safado tá aí, vão lá! E foram poque notaram que a macróbia já assustada empunhava uma espingarda. Entraram todos no veículo às pressas, fizeram a volta rapidamente e foram até a área duvidosa mencionada, onde, segundo a doidona, Jesus estava. Aproximaram-se desconfiados e logo avistaram lá dentro a placa “Cantochão”, manuscrita no interior do salão numa rústica placa de madeira. Será que estão com algum ritual que desconhecemos lá dentro? Estacionaram e logo três das aparentes vulgívagas seminuas se aproximaram, recepcionando a comitiva. Cantochão? Sim, aqui mesmo, podem entrar, a função acontece lá dentro e Monge aparece já já. Ah, tudo bem! É aqui mesmo, vamos conhecer o monge. Uma das madames dirigiu-se a uma delas: E vocês quem são? Somos as Vestais de Monge. Ah, tá. Virou-se para outra madame e sussurrou: Deve ser de algum ritual antigo mesmo, são vestais, por isso essa vestimenta estranha. A outra sorriu e nem entendeu direito, nem perceberam os demais quando uma delas gritou lá pra dentro: Organiza o puteiro aí que chegou uns casacudos com umas granfinas no pedaço, mundiça! Estavam os visitantes completamente exultantes, quando uma das fiéis perguntou para outra delas: E a senhora aí do lado? Ah, ela é a velha doida, é tia de Monge, ela tem mania de que é roubada, piração total. Nem ligue pra ela. Ah, tá. Então todos desembarcaram, ajeitaram suas vestes, esticaram as canelas e subiram calmamente e com certa algazarra a escadaria que dava para um amplo salão com uma luz vermelha ao centro. Quase nem dava direito para ver o que havia ali de tão escuro. As anfitriãs encaminharam todos para os assentos ao lado, perguntando se queriam beber alguma coisa. Vinho! É pra já. Enquanto eram servidos, relaxavam e brindavam. Nem deu tempo do vinho queimar as orelhas dos presentes, o levita impaciente cochichou no ouvido de um que estava ao seu lado: Parecem mais marafonas essas vestais, não acha? Hem? Mais parecem pécoras! Hem? Rascoas, não acha? Hem? Putas, ouviu? Gritou e todos ouviram. Era a senha, eles não sabiam. Imediatamente um holofote se acendeu e apareceu uma ruma de dançarinas sensuais ao som estridente de uma radiola de ficha com o maior jogo de luz, e o fuá comeu no centro. As odaliscas faziam mesuras para todos, sentavam nos colos dos homens, ou puxavam as mulheres para desatacá-las blusas e vestidos dos seios à mostra, fazendo-as remexer os quadris de forma sensualmente deliberada. Os homens pareciam uns donzelões de primeira vez e com a língua de fora. As mulheres nunca se viram tão exaltadas, a ponto de dançarem com as saias na cabeça, um espetáculo. O que o vinho não faz a um cristão, isso depois de umas duas ou três garrafas esvaziadas, avalie. A coisa arrepiou. Um dos convivas virou-se pro eclesiástico: Isso é que é mosteiro, homem, um paraíso! O céu existe! Foi aí que adentrou ao recinto o Monge, isso embaixo do maior zoadeiro: Quem é o chefe da comitiva? Hem? Que é o chefe? Eu! Como é que é: vai comer as que trouxe ou vai torar as minhas? Hem? Que horas começa a suruba, porra? Bem moderninho esse monge, diz cada coisa! Monge virou-se e chamou um dos capangas: Fica aí de olho nesse povinho embecado, organiza essa putaria e se saírem da linha, já viu né? Sim, senhor. A orgia soltou-se de virar a madrugada, o dia já amanhecia. Aos olhos cristãos deles, na vera, nem deram fé que o céu poderia ser um inferninho. Hem? Quem diria. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.

DITOS & DESDITOS:
[...] Nada – aquilo que não é – pode ser uma causa... Lembre que zero é diferente de um e porque zero é diferente de um, zero pode ser uma c a usa no mundo psicológico, o mundo da comunicação. A carta que você não escreve pode receber uma resposta zangada e o imposto de renda que você não declara pode iniciar uma ação energética dos técnicos da Receita Federal, porque eles também tomam seu café da manhã, comem seu almoço, chá e jantam e podem reagir com a energia que deriva de seu metabolismo. [...] É compreensível que, em uma civilização que separa mente e corpo, nós deveríamos tentar esquecer a morte ou fazer mitologias a respeito da sobrevivência da mente transcendental. Mas se a mente é intrínseca não apenas naqueles caminhos da informação que estão localizados dentro do corpo, mas também em caminhos externos, então morte toma um aspecto diferente. O nexo do indivíduo de caminhos que eu chamo “mim” não é mais tão precioso, porque este nexo é somente parte de uma mente maior. As idéias que pareciam ser podem também se tornar intrínsecas em você. Elas podem sobreviver – se for verdade. [...].
Trechos extraídos da obra Passos para uma ecologia da mente (Steps to na ecology of mind. Ballantine,1972), do biólogo, pensador sistêmico, epistemólogo da comunicação e antropólogo inglês Gregory Bateson (1904 – 1980). Veja mais aqui e aqui.

A CIRANDA
Estava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das águas do mar
Esta ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na ilha de Itamaracá
A ciranda é uma dança típica das praias do litoral pernambucano e que surgiu simultaneamente no interior da Zona da Mata, pois neste estado é uma dança de roda comunitária que conta com a participação das mais diversas faixas etárias, os quais são denominados de cirandeiros. Entre os participantes também contam o mestre, o contra-mestre e os músicos, utilizando instrumentos como bom ou zabumba, mineiro ou ganzá, maracá, caracaxá ou chocalho, a caixa ou tarol, cuíca, pandeiro, sanfona e algum instrumento de sopro. A origem do nome é atribuído ao vocábulo espanhol zaranda, que significa instrumento de peneirar farinha, uma evolução da palavra árabe çarand. O mestre “tira as cantigas”, improvisa versos, toca o ganzá e preside a brincadeira, utilizando um apito pendurado no pescoço para organizar as funções. Os passos mais difundidos são a onda, o sacudidinho e o machucadinho, afora criação de passos e movimentos de corpo obedecendo a marcação. Uma das cirandeiras mais famosas é a dançarina, cantora e compositora Lia de Itamaracá (Maria Madalena Correia do Nascimento) que, em seu aniversário, 12 de janeiro, por força da Lei Municipal 1.213/2012, passou a ser comemorado o Dia Municipal da Ciranda e a ilha a Capital da Ciranda. Extraído do estudo Ciranda (Fundaj, 2004), de Lúcia Gaspar. Veja mais aqui, aqui & aqui.

A CIDADE ONDE NINGUÉM PODE DORMIR
Uma mulher tinha duas filhas. Uma delas desposou um homem que vivia numa cidade onde não era permitido dormir; a outra casou com um de uma cidade onde ninguém podia cuspir. Um dia a mulher preparou um prato de doce para levar à filha que vivia na cidade onde não era permitido dormir. [...] a filha saiu, a mãe, durante algum tempo, conseguiu reavivar o fogo, mas por fim, vencida pela sonolência, deitou-se e adormeceu profundamente. Justamente nesse instante, uma vizinha veio pedir um pouco de fogo e, quando viu a mulher adormecida, exclamou: - Ai de mim! A sogra de fulano-de-tal está morta. Então chamaram os tocadores de tambor, e em breve toda a cidade se juntou diante da casa e abriram uma cova. [...] E, quando chegou a casa, sacudiu a mãe e disse: - Acorda, acorda! – Então a mãe acordou de sobressalto e todos ficaram aterrados, mas logo viram que não tinham de que ter medo, e toda cidade começou a aprender como se dormia. [...].
Trecho extraído das Lendas africanas: o reino do homem (Cultrix, 1967), organizadas por Fernado Correia da Silva. Veja mais aqui e aqui.
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A obra do escritor e jornalista Graciliano Ramos (1892-1953) aqui, aqui, aqui, aqui & aqui.