quarta-feira, abril 06, 2016

TODO DIA, A PRIMEIRA VEZ

TODO DIA, A PRIMEIRA VEZ – Quando abriu os olhos naquele amanhecer, ele teve um primeiro pensamento: hoje será o dia. Hoje, o dia de realizar todos os seus anseios e desejos. E pensou como, começou pelas decisões que nunca tomou: hoje será diferente. E viveria cada segundo e cada coisa, cada momento. Precisava. Levantou-se decidido. E enquanto se dirigia para o asseio, uma imensa sensação de vida tomou conta do seu ser. Cada ato com a consciência de sua realização, vivia completamente cada momento. Ao espelho, viu-se outro. Quantas lembranças, era o passado. Dentro dele a criança que teimava; a efigie refletida, não era o mesmo. Os anos se passaram. Viu-se outro, ou quase. Agora, só presente. E resolveu: sou uma criança que a idade desaprendeu. Com isso, respostas irrespondíveis se desfizeram. Pela primeira vez estava cônscio de quem era. O presente. E fizou em paz. Cada passo, uma nova experiência. À janela o Sol rompia a escuridão no horizonte. Parecia que era a primeira vez que via o alvorecer: um lindo espetáculo. E sentiu-se integrante desse espetáculo: - Eu sou o Sol. E encheu-se de alegria e de uma poderosa satisfação. Fez-se grato pela oportunidade de testemunhar tão maravilhoso momento na vida, nunca antes sentido. Era o incentivo que precisava. Maravilhado, girou em torno de si. E um segundo pensamento aflorou: este poderia ser o seu dia ou o seu último dia. Uma razão ainda maior para o que determinara fazer e ser. Olhou ao seu redor e tomara pé do ambiente: coisas que nunca se dera conta. Realizações que se foram e que estão ali, pro seu conforto não desfrutado. E cada centímetro do seu lar fora explorado e reconhecido como nunca fizera: os quartos, o corredor, a cozinha, o quintal, a sala de estar, a varanda, a rua. Percebeu-se como se o dentro fosse maior que o mundo lá fora. Na verdade, não sabia que havia um lado de dentro que poderia ser maior que o lado de fora, a rua e o mundo. Isso é inconcebível, mas era. E foi até o portão, olhou a rua que jamais vira daquela forma, deu a volta e entrou em casa como se fosse pela primeira vez. Era tudo diferente. Iniciático. Fez questão, então, de conferir e reviver cada coisa que havia obtido e que, por mera acumulação, realmente nunca desfrutara. E saiu conferindo um a um de cada centímetro da sua residência, até chegar à cozinha, café da manhã servido na mesa. Ingeriu como se fora a primeira vez: cada gosto, um a um dos sabores devidamente degustado. Satisfeito, agradeceu à vida a oportunidade da primeira alimentação do dia. Levantou-se, foi até o quintal e ficou extasiado com essa parte da casa que só estivera viva na sua infância: outras tantas lembranças. Hoje, um outro sentido, um novo momento naquele reconhecimento: ontem ele era uma criança feliz nessa parte da casa. Hoje ele revive cada momento feliz da sua infância. E como o Sol que seguia no aclive do dia, ele se pôs a realizar tudo que não tivera tempo de viver. E se dispôs a viver cada minuto da sua manhã, quando se deu conta que era o meio dia, o Sol no alto do céu e o almoço posto à mesa. Pela primeira vez teve o prazer de saborear cada alimento, mastigando consciente do papel daquela refeição para sua vida. E sentiu-se agradecido pela oportunidade de viver o imenso prazer daquela refeição. E retomou suas providências pela tarde toda, cada minuto uma decisão a ser refletida, ponderada, decidida e tomada. Assim o fez pela tarde inteira até chegar à janela oposta a da manhã, qual não fora a sua surpresa de presenciar o crepúsculo. O Sol nasceu logo cedo; agora se punha e com ele a satisfação do dever cumprido. A noite viera e ele mais que agradecido, ceou como se fosse pela primeira vez na vida, agradecendo a oportunidade de viver aquele dia. Ao deitar-se, mais uma decisão tomada: a partir daquele dia ele resolveu ser ele mesmo e viver tão intensamente quanto fosse possível. Afinal, era a vida dele: merecia viver. O presente se instalara construindo um outro futuro. Assim o fez. Todo dia, a primeira vez. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.


Imagem: a arte do pintor, desenhista e gravurista Gilvan Samico (1928-2013).

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Imagem: Female nude, de Paul Mathiopoulos.
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