TODO
DIA, A PRIMEIRA VEZ – Quando
abriu os olhos naquele amanhecer, ele teve um primeiro pensamento: hoje será o
dia. Hoje, o dia de realizar todos os seus anseios e desejos. E pensou como,
começou pelas decisões que nunca tomou: hoje será diferente. E viveria cada
segundo e cada coisa, cada momento. Precisava. Levantou-se decidido. E enquanto
se dirigia para o asseio, uma imensa sensação de vida tomou conta do seu ser.
Cada ato com a consciência de sua realização, vivia completamente cada momento.
Ao espelho, viu-se outro. Quantas lembranças, era o passado. Dentro dele a
criança que teimava; a efigie refletida, não era o mesmo. Os anos se passaram.
Viu-se outro, ou quase. Agora, só presente. E resolveu: sou uma criança que a
idade desaprendeu. Com isso, respostas irrespondíveis se desfizeram. Pela
primeira vez estava cônscio de quem era. O presente. E fizou em paz. Cada
passo, uma nova experiência. À janela o Sol rompia a escuridão no horizonte.
Parecia que era a primeira vez que via o alvorecer: um lindo espetáculo. E
sentiu-se integrante desse espetáculo: - Eu sou o Sol. E encheu-se de alegria e
de uma poderosa satisfação. Fez-se grato pela oportunidade de testemunhar tão maravilhoso
momento na vida, nunca antes sentido. Era o incentivo que precisava.
Maravilhado, girou em torno de si. E um segundo pensamento aflorou: este
poderia ser o seu dia ou o seu último dia. Uma razão ainda maior para o que
determinara fazer e ser. Olhou ao seu redor e tomara pé do ambiente: coisas que
nunca se dera conta. Realizações que se foram e que estão ali, pro seu conforto
não desfrutado. E cada centímetro do seu lar fora explorado e reconhecido como
nunca fizera: os quartos, o corredor, a cozinha, o quintal, a sala de estar, a
varanda, a rua. Percebeu-se como se o dentro fosse maior que o mundo lá fora. Na
verdade, não sabia que havia um lado de dentro que poderia ser maior que o lado
de fora, a rua e o mundo. Isso é inconcebível, mas era. E foi até o portão,
olhou a rua que jamais vira daquela forma, deu a volta e entrou em casa como se
fosse pela primeira vez. Era tudo diferente. Iniciático. Fez questão, então, de
conferir e reviver cada coisa que havia obtido e que, por mera acumulação, realmente
nunca desfrutara. E saiu conferindo um a um de cada centímetro da sua residência,
até chegar à cozinha, café da manhã servido na mesa. Ingeriu como se fora a
primeira vez: cada gosto, um a um dos sabores devidamente degustado.
Satisfeito, agradeceu à vida a oportunidade da primeira alimentação do dia.
Levantou-se, foi até o quintal e ficou extasiado com essa parte da casa que só
estivera viva na sua infância: outras tantas lembranças. Hoje, um outro
sentido, um novo momento naquele reconhecimento: ontem ele era uma criança
feliz nessa parte da casa. Hoje ele revive cada momento feliz da sua infância.
E como o Sol que seguia no aclive do dia, ele se pôs a realizar tudo que não
tivera tempo de viver. E se dispôs a viver cada minuto da sua manhã, quando se
deu conta que era o meio dia, o Sol no alto do céu e o almoço posto à mesa.
Pela primeira vez teve o prazer de saborear cada alimento, mastigando
consciente do papel daquela refeição para sua vida. E sentiu-se agradecido pela
oportunidade de viver o imenso prazer daquela refeição. E retomou suas
providências pela tarde toda, cada minuto uma decisão a ser refletida,
ponderada, decidida e tomada. Assim o fez pela tarde inteira até chegar à janela
oposta a da manhã, qual não fora a sua surpresa de presenciar o crepúsculo. O
Sol nasceu logo cedo; agora se punha e com ele a satisfação do dever cumprido.
A noite viera e ele mais que agradecido, ceou como se fosse pela primeira vez
na vida, agradecendo a oportunidade de viver aquele dia. Ao deitar-se, mais uma
decisão tomada: a partir daquele dia ele resolveu ser ele mesmo e viver tão
intensamente quanto fosse possível. Afinal, era a vida dele: merecia viver. O
presente se instalara construindo um outro futuro. Assim o fez. Todo dia, a
primeira vez. © Luiz Alberto
Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui.
Imagem: a arte do pintor, desenhista e
gravurista Gilvan Samico
(1928-2013).
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CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem: Female nude, de Paul
Mathiopoulos.