DESABAFO
DO DR. ZÉ GULU: A CIVILIZAÇÃO DOS EQUÍVOCOS – Naquela tarde quando adentrei nas dependências do bar do
Dudé, esperava apenas manter a costumeira bebericagem do final de semana. Não,
não foi. A surpresa me pegou de cheio! Era que o Dr. Ze Gulu que sempre fora
apenas uma presença que ocupava lugar por ali, nunca se envolvendo em conversas
com ninguém - só quando instado ou perturbado por algum xué que buscasse esclarecimentos
dele -, e que sempre se mostrara em seu mutismo solitário, na sua de eremita da
maior sabedoria, empelicado e feliz que só filho de frade, sentado na mesa de
sempre, agarrado na leitura de um livro qualquer e dando as suas talagadas,
sorvendo de uma cerveja bem gelada, ou de um uísque com bastante gelo, ou de
uma bebida qualquer que lhe desse na veneta, fosse vinho, gin, vermute,
cachaça, licor, ou o que fosse, naquela tarde, não estava no seu modo peculiar.
O homem saíra da sua forma introspectiva, para expectorar suas ideias no
recinto. Além de se mostrar fora do seu normal, ao que parece, estava mordido
do porco, inclemente e aos berros: - Nietzsche estava certo: a Filosofia só
teve graça até os pré-socráticos! Depois disso, nasceu a civilização dos
equívocos! -, era ele injuriado, falando pras paredes. Sim, um silêncio
tumular, ninguém entendia nada, contudo, respeitava-se a erudição daquele
intelectual de Alagoinhanduba. Sabia-se que na casa dele era livro do portão de
entrada até os fundos, e do piso ao teto. Diziam até que na casa dele só tinha mesmo
livros pra todo lado, tudo aos montes, abertos, marcados, riscados, pra onde se
virasse era publicações de todo tipo nas estantes – que eram muitas e
desarrumadas -, em cima da mesa, pelos cantos, de fato um homem letrado. Nesse dia
ele estava com o pau nos galhos: - Não que Sócrates estivesse errado, mas o que
se entendeu depois do pensamento dele do que foi interpretado de Platão e
Aristóteles, nasceu, então, a rede de todos os equívocos e a chatura da
racionalidade. Até ali, o planeta era um só, um todo. Depois disso, cortaram o
corpo caloso dos hemisférios e um muro de ignorância dividiu o planeta,
principalmente depois que se nomeou a Grécia como o berço da civilização
equivocada do ocidente, como se não mais existisse oriente e só o pensamento
dessa banda do mundo que valesse. Até Jesus foi engalobado nesse equívoco todo:
entenderam tudo errado e o Cristianismo tornou-se um equívoco milenar até hoje.
E foram se acumulando os sectarismos, os maniqueísmos, fabricando engodos, embustes
e falácias que se avolumaram na Idade Média e quando se deu o Renascimento e o
surgimento do Iluminismo, foi que a desgraceira logrou espalhafatosamente ar de
verdade: o cartesianismo que ardilosamente passaram a manta e não entenderam
Descartes e, então, só trocaram canhanha por corcoroca, porque mantiveram só as
dicotomias: apolíneo ou dionisíaco, idealista ou materialista, fisicalista ou
animista, sempre o dualismo psicofísico cultuado até hoje. Santo desacerto! E
hoje, mesmo que Einstein tenha ampliado Newton e validado a quântica de Planc, enterrando
as incorreções vesgas da ciência e da filosofia, ainda hoje, deu tudo em
vasa-barris com o mal-entendido que é mantido nas universidades, criado por uma
academia positivista, mecanicista. Isso é que é uma desgraceira dos diabos, só
deu em pantanas, em águas de bacalhau! -, o homem estava virado da breca e
ninguém entendia o português que ele falava, era um grego feito o padre na
missa toda só em latim. Mas todos com as cabeças em nuto, sobrancelhas arqueadas
e bocas fazendo bico de espanto. Para todos, aquele homem falava verdades
oraculares, indiscutíveis. – E manda outra lapada que hoje eu tô virado na
gota! – gritou pro Dudé. Foi nessa hora que Fubamba, mais bicado que nunca,
mais pra lá do que pra cá, entrou na conversa: - Isso é que é doutô, devia de
ser o prefeito daqui! Todos aplaudiram. O Dr. Zé Gulu, porém, levou isso na
conta do desaforo, mas relevou devido o estado etílico de sempre do beócio. Não
se contendo, Fubamba afinal abriu os olhos e com a língua engrolada dos bebuns
falou pra ele: - Ô, doutô, que mal li pregunte: o sinhô é doutô de que mermo,
hem? Das ideias. Vixe! Já vi doutô dos óio, dos dente, do bucho, mas da ideia
nunca vi não. Isso servi pra que mermo, douto? Ah, aí passou da conta. – Sai
desse imprensado, Fubamba! -, gritou alguém em sinal de apoio ao sábio.
Todavia, o Dr. Zé Gulu bufou, respirou fundo e arretou-se: - Quem não come
surucucu-pico-de-jaca, não almoça! Ou se investe maciçamente na Educação ou
este país será sempre essa meleca troncha e arrevirada de sempre! Tenho dito!
-, e saiu danado como quem foi pruma guerra, arrastando no peito as
adversidades de suas ideias revolucionárias. Aí a mundiça ficou em polvorosa: -
Que coisa?!? -, todos reprovando a insolência do Fubamba que já amarrava o bode
na mesa, sem nem se dar conta do mundo ou do que estivesse acontecendo. Aos
poucos o ambiente foi adquirindo a normalidade e os cochichos foram se tornando
algaravias que retomavam os assuntos apropriados das mesas, regados a papos de
futebol, infidelidade, trambicagem, envultamentos e outras baboseiras tão
comuns em qualquer lugar, principalmente ali onde tudo é possível. Foi quando
alguém se levantou e disse: - A gente veio aqui pra beber ou conversar? Ora,
quem tem seu vintém bebe logo. A gente se garante porque tudo passa e o baião
fica. E vamos aprumar a conversa & tataritaritatá! © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais
aqui.
Imagem:
a arte do pintor do
Romantismo francês Henri Fantin-Latour (1836-1904). Veja mais aqui.
Curtindo
o álbum (cd, livro e dvd duplo) Um sopro
de Brasil (Núcleo
Contemporâneo), organizado por Myriam
Taubkin para o Projeto Memória Brasileira.
LEITURA
Livro Pedro Páramo & Chão Em Chamas (Record, 2004), do
escritor mexicano Juan Rulfo
(1917-1986).
PENSAMENTO DO DIA
Mesmo que você
todo dia pise na merda, só encontre porta fechada, leve marretada como a peste,
sofra que só sovaco de aleijado, se lasque todo, mesmo assim, saiba de uma
coisa: você mesmo é a merda que desgraça sua própria vida. Guarde isso. (LAM).
POEMIUDINHO
FESTA
Imagem:
foto do acervo de Valkirya Freya.
Quando
ela dá o ar da sua graça
A
paixão grassa de montão
E
o mundo noitedia é só festa
Na
praça do meu coração.
(LAM).
Veja mais aqui.
Veja mais Leonardo
da Vinci, Charlie Chaplin, Anatole France, Tristan Tzara, Edson Natale, Nalá e Damaianti, Henri
Fantin-Latour & Meimei Corrêa aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem: Bachante, da pintora francesa Élisabeth-Louise
Vigée-Le Brun (1755-1842)