PARECE
QUE FOI ONTEM SER PAI NO ANIVERSÁRIO DA FILHA - Parece que foi ontem. Nem tinha tirado
direito a catinga do mijo e já me achava o bafafá de todas performances!
Pudera, já autossustentado travesso com trabalho e salário desde os dez anos de
idade, cheio das pregas com um bigodinho ralo embaixo das ventas e pêlos em
partes do corpo aos onze, todo metido com as fuças nos livros e passeios
noturnos na zona do baixo meretrício aos doze, um poetastro prepotente e cheio
das razões com amostramentos amalucados aos treze, pintando o sete no violão e
se achando o cara do sucesso sem o menor preparo pras artes aos catorze,
carimbando a adulteza antecipada com um casório às pressas aos quinze e a coroação
de homem feito ao me tornar pai pela primeira vez na vida aos dezesseis, diga-se
de passagem, é ou não uma vida atribuladíssima de tresloucadas experiências
tantas dum calouro do rabo fino, que se metia na vida como se fosse o herói da
capa de revista. Nesse tempo eu não tinha a menor consciência dos meus defeitos.
E como me achava dono do meu próprio umbigo, levava tudo no peito, sem enxergar
um palmo além do nariz e já me preparando pra faculdade ser alguém na vida. E como
não tinha futuro algum, contrariei logo meu pai que me queria advogado e minha
mãe um médico: fui fazer Letras. O revestrés das voltas que a vida dá pra eles.
Eu queria era ser escritor, avalie. Menos pior, ora, no mínimo não ia
desequilibrar o senso de justiça da humanidade, nem ia colocar em risco a vida
de qualquer paciente, principalmente porque eu não podia ver seringa que
desmaiava na hora. Que coisa! Por isso, a opção de ser escritor caía como uma
luva na minha vida destemperada de mitômano incorrigível. E como não sabia o
que fazer diante de todos esses acontecimentos, eu levava a minha adolescência
nos anos 1970/80 com a transição da modernidade, a ditadura militar e toda a
previsão de decadência moral e cultural desse tempo, saboreando a infância de
bicho solto, libertino, indisciplinado e desobediente, com toda a sorte de
excesso e sem reconhecer a privação da liberdade de expressão e ação. Não
obstante, tinha de mudar de jeito para me tornar num exemplo que fosse modelo
capaz de promover o desenvolvimento de uma criança saudável e ética. E como não
tinha ninguém nem nada para me orientar, segui o aprendido nos livros e
passando por experiências, muitas não deram certo, quase todas serviram apenas
de lições que, aqui e ali, acertava a levar a vida da forma que fosse possível.
Correndo atrás do futuro, ocupado e ausente por conta da luta pela
sobrevivência, no final de semana, eu me investia das travessuras de criança e
cantávamos alto e em bom som a nossa infantilidade. Para me poupar de maiores
preocupações na posteridade e não criar expectativas nela, a gente brincava: -
Seu pai é um homem ou um prato de papa? E ela, em cima da bucha, respondia: -
Um prato de papa! E a gente às gargalhadas. Para quem sempre foi descuidado, desequilibrado, sem a mínima noção do certo ou errado, confundindo
tudo e sem saber como repreender ou punir, aprendi da pior forma possível.
Segui, então, como se diz na minha terra: aprendendo sem se ensinar. Ou seja,
da forma mais difícil, porque foi a escola da vida que me deu todas as
bofetadas, puxões de orelha, safanões e banguelas pro regramento necessário no
aprendizado do que é viver no mundo. Foi essa escola da vida que me disse
raivosamente: - Você toma jeito, seu cabra! Aí, fui escapando, me espremendo
todo e aprendendo na marra o impacto de conciliar os contrários e harmonizar a
contradição, distinguindo o agora do amanhã, reelaborando a forma de pensar na
compreensão do que estava acontecendo e, ao mesmo tempo, a necessidade de saber
renunciar de sonhos e desejos, sem ter que ficar frustrado nem me martirizando
pro resto dos séculos, amém. Numa trajetória de altos e baixos, mais de
decepções, privações e sacrifícios entremeados por fugazes alegrias que foram
marcantes e que ainda alimentam minha alma numa trajetória rica de experiência,
passaram-se os anos. O que eu aprendia, ensinava pra ela que chegara ao mundo
para me encher de empáfia, a ponto de mostrar pra tudo e todos: - Olhe eu aqui,
sou o pai dela. Na verdade, aprendíamos juntos. Então, ela crescia e eu
administrava a minha nova condição, mantendo viva a infância que jamais
desertara de mim até hoje. Refiz o caminho: ela crescendo e eu revivendo tudo
com as brincadeiras infantis, as leituras de Lobato, Andersen, La Fontaine; brincávamos
de teatro, adivinhações, trava-línguas, cantorias, e quando ela se cansava, eu
saía escondido da mãe, altas horas da noite e me sentava ao lado da sua caminha,
contando historinhas ou escolhendo relatos das experiências maravilhosas que eu
havia passado durante toda a minha vida. Quando dei fé, nem havia percebido que
ela crescia e foi se fazendo mulher feita, enquanto eu ainda reinava da criança
que insistia permanecer viva em mim. O melhor de tudo é que de todas as besteiras,
papeladas e desatinos que cometi na minha vida de prato de papa, a única que se
diga digna de nota em tudo que fiz de valia até hoje, é ter ela por obra-prima,
a minha filha. Feliz aniversário. ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
Imagem:
a arte do
pintor do Simbolismo belga Fernand
Khnoff (1858 - 1921).
Curtindo
o álbum Música Plural (SESC, 2009), do grupo independente Percorso
Ensemble, fundado em
2002 pelo maestro e percussionista Ricardo
Bolongna e formado por instrumentistas que se dedicam à execução de obras
do século XX e de hoje.
PESQUISA
Relendo
a obra ABC da Literatura (Cultrix,
1977), do
poeta, músico e
crítico literário estadunidense Ezra
Pound (1885-1972). Veja mais aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
LEITURA
Releitura do livro
Enterrem meu coração na curva do rio
(Bury My Heart at Wounded Knee -1970 / L&PM, 2003), do escritor e
historiador estadunidense Dee Brown
(1908-2002). Veja mais aqui.
PENSAMENTO DO DIA
Por
trás de um pai tristonho
Há
sempre uma filha feliz
Suspirando
com seus sonhos.
Veja mais o Projeto
de Extensão Infância, Imagem e Literatura: uma experiência psicossocial na
comunidade do Jacaré – AL, Ítalo Calvino, Serge
Gainsbourg, Guy de Maupassant, Nicolau
Maquiavel, Cole Porter, Maria de Medeiros, Odilon Redon, Jane Birkin, Quasar Cia de Dança & Ivo Korytowski aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Imagem: a arte do pintor do Simbolismo
belga Fernand Khnoff (1858 - 1921).
CANTARAU:
VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital Musical Tataritaritatá