UMA
LEMBRANÇA PERDIDA NO HORIZONTE
(Imagem: As horas, da artista
plástica Inês Dourado)- Manoel
Solidão odiava os livros: - Se soubesse quem inventou escola, eu matava! Não há
vantagem alguma em estudar! Não vale nada; o que vale é dinheiro no bolso e só!
Essa a sua ideia de vida. Fez o primário e concluiu o ginasial a pulso.
Escolheu o curso de torneiro mecânico, seu sonho: operário da usina de
Alagoianduba. Ah, já se via no macacão, capacete, maleta de ferramentas e
assediado pela Mulher da Sombrinha. Não deu: perdeu o polegar da mão esquerda,
na hora de um descuido na guilhotina. – Que é que fui fazer naquela guilhotina?
Arrependia-se. Não perdoava Deus nem ninguém. Amargo, tudo na base da Lei de
Talião: - Se desaforo vier, volta no mesmo tanto. Brinque não! -, ameaçava. Se
alguém sorrisse: - Que alegria é essa? Segura o cacarejo, ora! Se ouvisse uma
oração: - Pra que isso? Se Deus existisse atendia seus pedidos na hora! Se
visse felicidade por algo: - Nunca vi nada que chegue e num se acabe! De tão
chato de galocha, ninguém suportava o seu estraga prazeres. A antipatia fê-lo
só. Nesse meio tempo, não se sabe como, enamorou-se por Dordília. Já na meia
idade, intragável como era, inimaginável conquistar o coração de mulher que
fosse. - Qual doida aguentaria uma trepeça dessa? -, apontavam. Mas foi. – Só
uma desalmada que não tivesse um pingo de amor próprio pra viver com um cara
desse! -, asseveravam. Pois é, pra tudo no mundo existe jeito. E ela, de tão
calada, parecia muda. Só nos afazeres de casa e pronta pra satisfação dele.
Nunca um reclamo, uma careta, sequer um muxoxo, pigarro, tosse, ou coisa do
tipo. Do jeito que acordava, ela ralava o dia todo e quando a noite imperava, dormia
o sono dos anjos sem esboçar qualquer reação que fosse de ser vivo. Parecia
invisível, não opinava, sempre ocupada e só. Pariu do mesmo jeito que
engravidou: sem um suspiro, sem carinho, nem palavra. Só se soube porque o
menino chorou na hora do parto. Ela sozinha, a criança nos braços. Ocupado em
seus afazeres e a arengar com o mundo, Manoel nem viu o bruguelo crescer e
chegar a hora de ir pra escola. – Esse menino não precisa de estudar, tem que
ser feito o pai: bruto de nascença. Escola é perda de tempo. E nessa pacutia
não viu nem o garoto crescer, de chegar o dia de sua formatura na faculdade. –
Que faculdade? -, perguntou o pai quando viu o convite. Puxando a mãe, o menino
nem falava. Por isso o pai nem dera conta de que já era um rapaz formado em
Pedagogia, se preparando para um mestrado na universidade da capital. – Pra
onde? Alguns finais de semana o pai só via o menino pelas costas. – E já foi? A
mulher não perdia tempo em responder, sempre ocupada nas lides domésticas. Um
dia Manoel viu um sorriso nela: abraçada com o filho. – Olhe esses mimos! Não
quero viadagem aqui em casa, esse menino tem que ser homem que nem o pai!
Negócio de abraços e beijos, é coisa de viado. Nem deu tempo dele saber que o
menino estava se doutorando na Europa. Só chegou a vê-lo quatro anos depois. –
Cabeludo? Isso é coisa de viado! Logo que desconfiei que essa mulé estava
botando esse menino a perder. E saiu. Lá pras tantas quando retornou ao lar,
procurou a mulher e o canto estava mais limpo. Não havia sinal dela. Chamou por
ela pela primeira vez, perda de tempo, ora, se nos últimos quase trinta anos
ela nunca deu um pio, não haveria de responder ao seu chamado agora. Vasculhou
a casa. – Essa mulé tá brincando de se esconder comigo, é? Foi no quintal,
atravessou a cozinha, entrou no quarto das catrevagens, passou no quarto do
filho, abriu a porta do banheiro, pelo quarto do casal, na sala e foi até a
rua. – Alguém viu minha mulher? Ninguém viu, ninguém sabia. É possível que pelo
gênio dele, mesmo que soubessem, nada diriam. Ele mesmo não deixava ninguém
falar, rechaçando qualquer diálogo com quem quer que fosse. Saiu cheirando a
casa, aguçando o faro, ver se descobria o paradeiro dela. Sentiu-se só pela
primeira vez na vida. Não sabia do paradeiro, nem de familiares, nem de nada
além do nome da mulher. Quase trinta anos de convivência e nunca procurou saber
nem do sobrenome dela. Não tinha do que reclamar: roupa passada, comida sempre
pronta na hora que chegasse, casa limpíssima, tudo organizado e disponível
antes até dele imaginar qualquer solicitação pra ela. Sem ninguém, ele nem se
lembrava mais que dia é hoje. Tanto faz se ontem ou amanhã. Pra ele, é tudo a
mesma coisa. Aliás, sempre foi. Agora, de diferente, só a ausência dela, uma
lembrança perdida no horizonte. ©
Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui, aqui e aqui.
Imagem: a arte da pintora chinesa Mary Qian.
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