ROMPENDO
O PASSADO PRO FUTURO - Marcialita
acordou-se inheta, algo bulia por dentro dela. Não podia mais viver daquele
jeito, tinha de fazer alguma coisa. E levantou-se decidida e pronta para mudar
sua vida a partir daquele instante. Foi pra cozinha, conferiu o que tinha na
petisqueira, arrumou a frigideira com uns pedaços de galinha de granja no
fogão, com duas outras panelas nas quais colocou arroz e feijão em cada uma, e
foi lavar os pratos. Depois arrumou a mesa pro café da manhã do marido e dos
filhos, passou a vassoura na casa, arrumou a roupa no varal e foi acordar a garotada
pra escola, deixando apenas o mais velho e a caçula para acordá-los depois.
Empurrou os bruguelos pro banheiro, deu banho em tudo, arrumou a roupinha de
cada, fez sentá-los à mesa e comerem pra zarparem logo dali. Foi quando ouviu o
pigarro e o arrastado do chinelo do marido que se espreguiçava em direção ao
quintal. Lá ele ficou cantarolando e conferindo uma a uma das suas plantações.
Trouxe umas pimentas malaguetas pra mesa, junto com umas carambolas, dois
cajus, umas acerolas e uma manga que roubou do pé do vizinho, colocou tudo
sobre a mesa e soltou a primeira pilhéria do dia: - Eita, hoje a mulé começou
cedo, deu furmiga na cama, foi? Ela não respondeu. – Ih, achu quela tá naqueles
dia! Fez-se de mouca e manteve-se arrumando os meninos, passando perfurme,
penteando os cabelos, e reclamando: - S’aprume, camboio de malavados, seje
homi, s’ajeite, vá! Tomi jeito de gente, sinão o pau come logo cedo, s’avie.
Tudo aprumado, fila indiana, obedientes porque sabiam que se assim não fosse
tabefe e beliscões comiam no centro. Tudo engomadinho nos trinques, lancheiras
e bisacas com cadernos e livros. – Vão-se pra escola, arreda, simbora! Um
pegado na mão do outro! Rico, tome jeito, cuidi dos seus irmão e num deixi
queles se inrolem cum briga no coléjo. Chispa! Saíam um pegado na mão do outro,
não antes passarem em fileirinha pra pedir a bênção do pai, e ele: - Deus-tabençoi!
Ela levou-os até a porta, empurrou-los casa afora, fez uma oração pra que Deus
guardasse seus filhos, ficou olhando até dobrarem a esquina e trancou-se dentro
de casa. O marido digladiava com os talheres fazendo barulho. Ela foi lavar os
pratos sujos dos que saíram sem dizer uma palavra. – Ih, começou cedo -, zoou o
marido. – Arrumi o que fazê, seu traste. E vê se chega cum dinhêro pra fera que
já s’acabou tudo! Certo. Num precisa fica embirrada assim. Vancê num faiz nada
que preste! Mulé, sô artista e vô sê prisidente! Prisidente? Do quê? Ora, os
homi são todo assim: vive de sonho, s’amuntam nele e num enxergam a rialidade!
Seja hômi, arrumi um serviço qui preste! Doro logo esquentou as orelhas, foi
pro quarto, vestiu-se, calçou a bota e até tentou fazer um carinho na mulher
antes de sair, mas ela estava com cara de poucos amigos, ingicada com a
situação. Foi-se pisando nos cascos. Quando ele saiu que dobrou a esquina, ela
fechou a porta e foi acordar o mais velho: - Chau, acorda! Vamos, s’alevanta. A
caçula fazia festa no berçário: - Mama, mama, mama! Ela bejou-lhe, fez-lhe um
mimo, abraçou apertadamente, encheu os olhos d’água. – Bora, Chau. O menino já
estava de pé e ao seu lado, sabia que ali era lei braba, não levantasse, a
lamborada cobria. – Vá tomá café, cuide da sua irmã, fique atento, não abra a
porta, num deixi ninguém entrá aqui e quano fô meio dia, trate de botá seus
irmão pra cumê, cuidi de tudo, vancê é o hômi da casa hoje. – Vai pra onde,
mãe? Vou ali arrisolvê um negóço. Tomi conta da casa, seja hômi e s’assunte,
viu? Ela beijou o filho, deu um abraço apertado na caçula e foi até a porta, os
olhos rasos d’água. Estava revestida de uma força interior, virado Coretta
Scott King naquele dia e ia dar um rumo na sua vida. Fechou a porta, encarou o
mundo, respirou fundo e saiu. Ouvi umas batidas na minha porta. Quando abri,
Marcialita estava com uma cara atarantada. – Marcialita, bom dia! Cadê o Doro?
Foi trabaiá. Quéqui manda, Marcialita, tá precisando dalguma coisa? Tô! Diga
lá, quanto? Num é dinhêro, quero imprego. Emprego? Trabaiá. De que? Quero fazê
faxina. E quero começá aqui na sua casa. Eita! Entre. Coçei a cabeça sem saber
o que fazer, mas minha casa estava realmente precisando de um ajeitado bom. Acho
que quando ela encarasse a bronca, desistiria logo. Não tive dúvidas, virei-me
pra ela e disse: - A casa é sua. E logo ela se dirigiu pra cozinha, arrumou os
pratos, ajeitou a mesa, passou pelos quartos, ouvi vassouradas e ajeitados de
todo jeito pela casa toda, quando, ao meio dia, levantei-me dos meus afazeres e
fui até ela: - Você quer o que pra almoçar, Marcialita? O almoço já tá na mesa.
Quando me virei, estava tudo pronto sobre a mesa. Ela havia obrado um
verdadeiro milagre. – Então vamos almoçar -, disse-lhe. – Não posso, vô dá um
pulo in casa pra vê os minino cumestão, e volto logo pra findar a faxina. E
zarpou. Nem bem meia hora depois ela retornou e novamente as vassouradas,
aguaceiro, barulho de arrumações pela casa toda. Lá pelas cinco da tarde, ela
entrou no meu escritório: - Pronto, tá tudo arrumado, vá vê si gostô!
Levantei-me só pra dar-lhe atenção e quando fui saindo da sala, logo vi que
milagres acontecem mesmo. – Nossa, tudo perfeito, Marcilita. Brigada. Quanto é
sua faxina? Vinte. Quanto? Tá caro, pague dez. Não, não é isso. Peguei a
carteira e peguei uma cédula de cinquenta e lhe entreguei. Era o mínimo pra ser
justo. Não tenho troco. Não quero troco, é isso que você deve no mínimo cobrar
pra começo. Brigada. - Agora vômimbora qui os minino pricisa da janta. Tudo
bem. E saiu. Chegou em casa chorosa, as crianças ficaram assustadas,
silenciosas, não era hora para travessuras, sua mãe estava tristonha. Nem bem
deu o anúncio da Hora do Ângelus, Doro adentrou meio invocado, reclamando da
vida e do mundo e que rodara o dia todo e não conseguira nada de dinheiro pra
feira. A meninada já estava jantada, asseada e revirando a casa de pernas pro ar,
enquanto ela no terceiro tempo de sua jornada laboral diária. – O qui tem pru
jantá, mulé? Ela, então, vingativa e corajosamente, meteu a mão no sutiã e
tirou os cinquenta reais que eu havia lhe dado. – Olhaqui, seu traste, tá aqui
dinhero pra feira qui eu arrumei! Eita, arrumou como? Fez ponto na esquina,
foi? Rodou a bolsinha adonde? Fiz faxina hoje e arrecebi na hora. Mulé minha
não faz faxina na casa de seu ninguém! Faxina não é serviço pra mulé dereita!
Fiz e faço, a partí de hoje. Pela primeira vez ela enfrentou o marido e os seus
próprios medos: o fantasma do pai que lhe perseguia o dia todo com cara de
reprovação durante os seus dias. Pra onde se virava era ele lá em pé, severo,
inexorável, como se dissesse: - Mulé é pra sirvir e vivê pru marido! Mulé tem
qui fazê o qui marido manda e só! Era a hora de dar um basta no fantasma do pai
e nos mandos do marido. Ela era dona de suas ventas e ia trabalhar daquele dia
em diante, como podia, para trazer dinheiro pra casa e sustentar da forma que
puder os seus filhos. Ela acreditava nisso! E tinha a sua dignidade, fosse
chamada de piniqueira ou do que fosse, que sofresse preconceito ou reprovação
do marido ou de quem quer que seja. Era o trabalho dela, digno e honesto. E
virou-se pro marido e berrou: - O que faz um hômi sê um hômi, num é o qui ele
diz ou que o ele diz qui faiz. É a honra e a humildade de trabaiá honestamente,
tê seu denhero, sustentá sua famía, seja qui profissão qui for, digna e séria. Isso
sim, si vancê num é hômi pra isso, sô mulé di verdade e num tenho vergonha de
nada. Sô mulé e honro minhas saia. Seje hômi! E daquele dia em diante, nunca
mais o fantasma do pai lhe apareceu para atanazar sua vida, estava enterrado de
vez, agora só na memória. © Luiz
Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui, aqui e aqui.
Imagem:
a arte do pintor,
gravador e designer francês Armand Point
(1860-1932).
Curtindo
o álbum Dançando nas nuvens (2001), do grupo Mauro Senise Quarteto, formado pelo saxofonista,
flautista, arranjador e professor de música Mauro Senise, Paulo Russo (baixo),
Mamão (bateria) e o Itamar Acieri (piano).
PESQUISA
História da riqueza do homem (LTC/Guanabara, 1996),
do jornalista e escritor marxista estadunidense Leo Huberman (1903-1968). Veja mais aqui e aqui.
LEITURA
O general está pintando (Globo, 1973), do escritor,
romancista e dramaturgo Hermilo Borba Filho. Veja mais aqui.
PENSAMENTO DO DIA
Pra quem
precisa e não tem o que fazer, basta começar por si próprio a mudar de vida e
seguir adiante pra tudo se ajeitar nos conformes. (LAM)
Veja mais Ayn Rand, Bossa Nova, Agar, Jean-Louis Barrault, Adalgisa Nery, Marilyn Monrow, Anita Loos, Cláudia Riccitelli, Jose
Gutierrez de la Vega & Delasnieve Daspet aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Liegender Frauenakt, do pintor alemão Otto Lingner (1856-1917).
CANTARAU:
VAMOS APRUMAR A CONVERSA
Recital Musical Tataritaritatá
Veja aqui.