AS DEZ VIDAS E A CABEÇA ROUBADA (Imagem:
Tiradentes, do pintor Pedro Américo) – Todo dia é possível ver
os olhos do órfão menino que tinha por madrinha Nossa Senhora da Ajuda e que
ouvia as histórias do Capão da Traição, em que as mulheres revoltosas
derrotaram os bandeirantes e os obrigaram à Guerra dos Emboabas. Com efeito, todo
dia torna-se possível ver que o menino cresce e fica rapaz aprendendo que o ouro
do nosso chão nunca fora nosso, só servia para ostentação da coroa e da Rainha
Louca, enquanto todos os nossos condenados à pobreza e à ignorância. Ele via a
cena: a vila rica, o povo pobre. E todo ouro que um dia foi abundante e
traficado e levado para a coroa e a manutenção dos prazeres da corte, a despeito
de uma colônia empobrecida e o seu sonho de liberdade, doía mais a submissão do
povo à opressão dos governantes. Vai-se a vida e ele tornou-se tropeiro
promissor que, ao defender um escravo sob tortura, foi preso e condenado. Essa
enrascada custou-lhe o que tinha e o que não tinha, quem mandou se meter entre
escravo e senhor! Ah, um minerador desafortunado, retomando a vida a arrancar dentes
e fazer curativos. Mas como nunca é sempre tempestade, abriu-se-lhe o horizonte
e ingressou nas armas como oficial, por ser branco e filho de português,
torna-se alferes, para defender as tiranias dos reis que governavam por
determinação divina. E mais percebia o conflito de interesses entre a colônia e
a metrópole, as minas esgotadas, o sonho de ser livre e pensar o que quisesse,
valia-se das Cartas Chilenas de Critilo, açoitando o povo e alertando pra derrama
e o batizado. E as saudades de Eugenia, Antonia e da filha do padre prometida a
outro. Sabia que todos somos mazombos, mas sabemos governar! E cartas pras
ameaças, a sedição contra a derrama, a devassa contra a sedição. Era o batizado
quando empunhariam uma bandeira com o triângulo da Santíssima Trindade e o
verso de Virgílio: Libertas quae sera
tamen! Não dura muito, o batizado que gorou, a derrama foi-se com a delação
de Silvério dos Reis alimentada e imortalizada todos os dias até os dias de hoje
então, quando é identificado o crime infame pra coação moral, isolamento, inquisição
e a forca com a cabeça pronta para ser consumida pela vida. A condenação com
seu lamento: Se Deus me ouvisse, só eu
morreria e não eles. Todos tiveram sua pena comutada e festejaram e ficaram
felizes e esqueceram Silvério dos Reis, esqueceram da causa, livraram-se da
pena capital. Alguns outros, o degredo. E ao abominável e hediondo réu condenado
pelo horroroso crime de rebelião e alta traição, descalço de camisola pelas vias
públicas até a forca, para que morra e lhe cortem a cabeça para levá-la pra
Vila Rica e lá pregada em alto poste até que o tempo a consuma, e esquartejem
seu corpo e pregadas as suas partes pelos caminhos de Minas, no sítio da
Varginha e das Cebolas e nos demais locais de sua infâmia, e que sua casa seja
arrasada e salgada para que nunca mais no chão se edifique e sua infâmia lhe
cubra filhos e netos, e todos os seus bens confiscados, tudo por graça da
Rainha Louca! E ao subir os degraus do patíbulo, o carrasco pede-lhe perdão enquanto
o frei grita para todos que não se trata de uma cena cruel, mas de um ato de
justiça e de bondade da Rainha Nossa Senhora, a Raínha Louca, e que lhe passem
a corda ao pescoço, e o suspendam e morra de morte natural, e lhe decepem a
cabeça pra Vila Rica, e lhe esquartejem o corpo pras partes seguir pros lugares
de seu hediondo crime e que todos saibam o preço para quem se torna
inconfidente e sejam testemunhas do que espera por quem se mete com alta traição.
O tempo passa, até que lhe roubaram a cabeça como sinal sinistro de nova
conspiração, ecoando nos ares: Dez vidas
eu daria, se as tivesse, para salvar as deles. O que veio depois, todos
sabem. E o tempo, o povo, a História. O que é feito hoje, será a História de
amanhã. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. Veja mais aqui e aqui.
Imagem:
Aurora, do pintor e artista gráfico
francês Odilon Redon (1840-1916)
Curtindo
o álbum Piano presente (SESC, 2013),
da pianista e professora Joana Holanda.
LEITURA
Lendo a obra De Rerum Natura luxta Propria Principia
(As natureza das coisas conforme seus princípios, 1586 – A. F. Formiggini,
1923), do filósofo e cientista natural italiano Bernardino
Telesio (1509-1588).
PENSAMENTO DO DIA
Passa o tempo e novos e
indisfarçáveis patíbulos pros Tiradentes de hoje são armados e festejados e
comemorados todos os dias no Brasil do Fecamepa.
Veja mais Hilda Hilst,
Antonin Artaud, Al Di Meola, Silvio Romero, Max Weber, Ludovico Carracci, Russ
Meyer, Barbara Popejoy, Lorna Maitland, Cynthia Makris & Iramar Freire
Guimarães aqui.
CRÔNICA
DE AMOR POR ELA
Woman
nude,
do artista plástico Kevin Taylor.