TRÍPTICO DQC: QUINTA FEIRA, O TRÂMITE DA
SOLIDÃO – A lua voltou-se para o leste e capturo a noite na
constelação do ermo. Já é quarto-minguante, indelével prodígio, gozo preciso do
ilimitado. O isolamento me angustia, o ponto perfeito do desvalido, um morrer
queimando vísceras: é o pânico da solidão, o fascínio pelo perigo. A culpa se
confessa e o coração neste instante homicida, nesta noite abissal, não sabe de
nada nem de mim. Vou só.
O TEATRO DE OKLAHOMA & O ESCÂNDALO DE ÉVE – Imagem:
arte do fotógrafo e fotojornalista francês Édouard
Boubat (1923-1999). - Não sei explicar, mas estava perdido diante de um
palco de pedras. Ali fiquei extasiado admirando o ambiente. Ao longe, em um
areal, uma mulher nua esparramada. Era ela, enfim reencontrei. O que houve?
Escondeu o rosto como se chorasse escondido. Toquei seus cabelos, ela virou-se
de repente: era ela Ève entristecida com os últimos acontecimentos. Tirei meu
casaco e dei-lhe para vestir. Ao remover minha camisa, ela rejeitou, preferiu
guardar-se apenas do frio, nada mais, enquanto lamentava o ocorrido: um escândalo
por ter ido à cerimônia e, ao regressar, encontrou suas filhas aterrorizadas
por manifestações diante de sua casa. Não deveria ter ido, repetia, mas nunca
temeu consequência alguma. Agora queria esquecer tudo. Falou do que sempre
dizia sua mãe: Era uma fonte de
desilusões deixar todo interesse da vida depender de sentimentos tão tempestuosos
quanto o amor. Ah, o amor! E cantarolou a minha Serenar... Beijei sua face e a abracei com afeto. Ficamos um tempo
assim, abraçados. Disse-me apaixonada Leconte de Lisle: Só há poesia no desejo do
impossível ou na dor do irreparável. E mais se achegou num abraço apertado,
demoradamente, como se nada mais houvesse no mundo. E era mesmo o que restava a
mim abraçado na sua nudez, nada mais. O tempo passava e ela resolveu caminhar e
saímos de mãos dadas pela localidade. Foi aí que soube tratar-se de um teatro
natural, cenário da obra Amerika
(1927), que no Brasil foi publicado com o título de O desaparecido (34, 2012), de Kafka.
Contou-me do local e só muito mais tarde ao ler o livro que obtive mais
detalhes a respeito, inclusive esta descrição: Na entrada da pista, sobre uma grande plataforma, centenas de mulheres,
trajadas como anjos, com vestes brancas e asas pregadas aos ombros, tocam
longas trombetas que brilham como ouro. Na verdade, as mulheres estão em cima
de pedestais, os quais não podem ser vistos porque estão cobertos pelas pregas
dos longos vestidos. Como os pedestais são muito altos, alguns com quase dois
metros de altura, as mulheres parecem gigantescas, mas o tamanho de suas
cabeças destoa do conjunto, bem como os cabelos, que parecem ínfimos
caindo-lhes sobre as asas e emoldurando-lhes o rosto. Para evitar a monotonia,
os pedestais são de vários tamanhos: nos mais baixos, as mulheres parecem de
estatura normal, mas ao seu lado há outras que estão tão alto que dão a
impressão de que qualquer vento pode carregá-las. Era assim mesmo, tal como
vi. E caminhávamos até chegarmos a um local onde suas vestes estavam
espalhadas. Recolheu uma a uma e reunidas puxou-me para si e ali nos beijamos e
nos amamos até escurecer. Vi-lhe a face num relance da lua, era ela mesma: a
escritora, a pianista concertista e crítica musical, a guerreira das Forças
Livres, a jornalista e humanista francesa, Ève
Curie (1904-2007), ela mesma, sim, em carne e osso, a que também era Denise
de Labouisse, filha do casal cientista Curie
e a única a não receber um Prêmio Nobel. Ao falar do prêmio, disfarçou o
desapontamento: não era o não ter recebido o prêmio, mas ter ido à cerimônia,
só isso. Logo mudou de assunto e contou-me da sua viagem Amon Warriors (1943), e de coisas sobre Gandhi e do Iraque onde: Admiram a força e querem ser governados com
firmeza. Nós, as democracias, não oferecemos aos iraquianos nem liberdade
(porque ocupamos o seu país) nem chefia (porque nos metemos pouco nas suas
questões internas) e assim eles desprezam-nos e odeiam-nos. E muitas outras
contadas por sua tagarelice e mais lamentou a perda da mãe e a irmã levadas por
doenças radioativas e das filhas sofredoras e da sua vida perdida por amor. Ali
amávamos um ao outro e nada mais importava noite adentro.
A CADA TRÊS HORAS ELA ERA OUTRA - Imagem: a arte do pintor, fotógrafo,
ilustrador e designer gráfico checo Alphonse Maria Mucha (1860-1939) - Ao amanhecer, era ela Sarah mais linda e nua que nunca! Levantou-se a desabafar: Não posso dar um único passo ou fazer qualquer movimento
ou gesto, sentar, sair, olhar para o céu ou para o solo, sem sentir algum
motivo de esperança ou desespero, até que enfim, exasperada pelos obstáculos
colocados em minhas ações pelo meu pensamento, eu desafio todas as superstições
e apenas ajo como quero. A vida é curta, mesmo para quem vive muito, e devemos
viver para os poucos que nos conhecem e nos apreciam, que nos julgam e nos absolvem,
e pelos quais temos o mesmo carinho e indulgência. Deu-me as costas, ajoelhou-se com a graça da sua nudez e
deitou a cabeça ao chão como se reverenciasse a alvorada, o reinado do Sol. Assim
ficou até perder a noção do tempo e eu a admirar as suas generosas formas, a
beleza extasiante de um corpo de mulher de bruços e desnuda: era ali que a vida
se refazia em mim a cada instante. Ao se erguer me disse Doris Lessing: Aprendizado é isso: de repente, você
compreende alguma coisa que sempre entendeu, mas de uma nova maneira. Fitou-me demoradamente e já era Catherine: Eu sou contra
o politicamente correto e acho que é preciso transgredir nas coisas que valem a
pena. Uma mulher tem que ser inteligente, ter charme, senso de humor e ser
gentil. São as mesmas qualidades que eu preciso em um homem. Eu sou leviana.
Então eu me sinto culpada. E me abraçou como quem nunca mais quisesse
soltar. E saltamos pelos lugares, ermos, vales e limites, e éramos mútuos como
se nada mais além de desvalidos e o amor dos desesperados. A cada três horas
ela era outra e debulhava versos, frases e sentimentos agudos no meu sexo,
entregando-se exasperada como se fosse pela última vez. Assim era, até mais
ver.
CABRAL NO RECIFE E NA MEMÓRIA
[...] Quem diria? Um pobre Severino da mais malvada vida-morte nordestina é o bochincho do momento nos meios cultos do mundo estes dias. [...].
Trecho
de Um Severino vai à forra, extraído
da obra Cabral no Recife e na memória
(Cultural/CEPE, 1997), do escritor, jornalista e professor Edilberto Coutinho (1891-1975), sobre o Prêmio Neusdtadt, em 1992,
conferido ao poeta e diplomata João
Cabral de Melo Neto (1920-1999), destacando a sua vida e sua obra. Veja
mais aqui, aqui, aqui & aqui.