TRÍPTICO DQC: SEXTA FEIRA, O TRÂMITE DA
SOLIDÃO – Olhos amanhecidos na frieza do mundo e não fosse ontem
feito de mormaço, não teria eu tantas horas de sentimentos vários, dor e
compaixão. Não fosse o amor o termômetro da vida, não teria eu nada para dizer
agora: as palavras me escondem, jamais quisera, outro era o sonho. Só os
ingênuos, quiçá, na minha alucinação; sonhadores até, sei lá, cultuarão
qualquer hora do entardecer que se fez noite e se perdeu na escuridão da
madrugada. De longe a montanha ao sol-posto, de onde faz sombra esfriando o meu
coração erradio. E eu um relês mortal, aos olhos o monograma do Cristo, voo pela
noite no mar da solidão. Na boca da noite, todas as evidências levaram a nada:
fui benzido de copas, a felicidade no descarte, o doce mel que se derrama em
grande profusão. Eu perdi, açoitado pelo ronco da onça suçuarana que nunca
existiu, virei mundo no Rabicho da Geralda e me perdi, não sei, na quentura que
se alastra. Mandei boas novas e escrevi aos familiares, nunca esperei ser
louvado por virgens de vestais ou qualquer estima, consideração. Enterrei o
trevo de paus na volta do cruzeiro, era o que podia fazer. Ao vencedor, salve,
um laço de fita no braço, palmas e saravá. Quantas imagens, labaredas,
sensaboria, defecções. Desde que me tenho por gente, vivo a morrer de sede e o
que me resta. Deixo aqui nada mais que tenho, um aceno qualquer, outra direção,
um adeus.
O TRIO DO FINCAPÉ NO PORTO DOS PATIFES– Lá estavam às bravatas no
maior leriado: o desprovido disforme Mamão-o-amor-da-jumenta,
aluado e capenga de pesado, sempre a flertar beldades passantes e só levando na
cara: Sai pra lá, bicho feio!; o Biritoaldo das proezas empenadas, pulando num pé só por ter coisado naquela de marchar
pela intervenção da ditadura e pela terra plana, até levar um peteleco de
acordar sem saber quem era nem onde estava, birutando de comer merda e rasgar
dinheiro; o Doro das trelas e revestrés
que quer por que quer ser presidente num pleito municipal – Ah, tão me
enrolando, não é pra prefeito, é pra presidente, meu! -, virado na munganga de
tão arretado, de dar um bicudo num sapo-cururu de estimação para emplacar uma
foto gigante do Coisonário na casa
dele, tudo pra ver se a coisa dava cloro! E deu, o resultado foi sua moradia virar
um criatório de pragas, isso de maribondo, mosquitos, trinca-cunhão, abelhas
africanas e assassinas, escorpiões, barbeiros, moscas tsetse e dorylus e
oestridae; ratos, pulgas, tarântulas, baratas, vespas japonesas gigantes, formiga-cabo-verde
e de fogo, maruins, pernilongos e todo tipo de empestação: Eita, virou mesmo a
boceta de Pandora! Foi numa fuga às carreiras que eles deram num entroncamento,
de serem assim do nada e na hora abduzidos! Como? Sim, batem o pé. Quando deram
em si estavam em... Cadê lembrarem o nome do lugar. E o disco voador e os
alienígenas? Tudo desencontrado. A língua deles enrolava e a memória pifada não
dava conta direito. Onde que era mesmo? Bastou uma dedada num furico de um
deles e o fora duma frochosa proutro: Sai-te, patife! Pronto. É isso! Hem? É
esse o nome: Porto dos Patifes! Existe isso? Foi lá que deixaram a gente, nesse
lugar mesmo! Ora, ora. Nenhum mapa nem registro dalgum lugar no planeta com
esse nome! Eis que lá vinha doutor Zé Gulu pro tira-teima: Ah, sim! Hem? Onde? Aqui! E abriu um livro e ao folheá-lo
foi explicando: O único sujeito que diz que botou os pés nesse lugar ou
inventou toda essa história, foi o escritor inglês Charles Kingsley (1819-1875), na sua publicação infantil The water-babies, a fairy tale for a land
baby (1863 – MAC, 2017), e que o nome
de mesmo era Polypragmosyne, também chamado de Porto dos Patifes, vejam: Reconhecem-se os nativos do lugar pelo
sorriso torto e pelo ar de quem sempre sabe mais do que você. O principal
monumento da ilha, de visita obrigatória, é o Panteão dos Grandes Fracassados.
No interior do edifício, políticos dão palestras sobre constituições que
deveriam ter funcionado, conspiradores falam de revoluções que deveriam ter
mudado a face da Terra, economistas expõem planos que deveriam ter feito a
fortuna de todos, e assim por diante. Em Polypragmosyne, cada pessoa exerce uma
profissão que não aprendeu, porque fracassou naquelas que aprendeu ou diz ter
aprendido. Ué!?! Oxe, até nisso o desgoverno Coisonário copia? Não será o Fecamepa
a reedição disso? Valha-nos! Ah, me arrependi! Pois é, me enganei com a cor da
chita! O douto logo advertiu usando do filósofo e historiador polonês Leszek Kolakowski (1927-2009): Em política, enganar-se não é desculpa. Aprendemos
história não para saber como nos comportar ou como ter sucesso, mas para saber
quem somos. Ah, mundiça, agora é tarde! Não tem outra, só consertar a
desgraceira toda! Vamos aprumar a conversa!
ELA, DE APARIÇÕES & DESAPARECIMENTO – Imagem:
arte da artista francesa Aicha Hamu
– Era assim: ela ia e vinha, como queria: quantas faces, poses, jeitos. Ah,
Marilena – sim, Marilena Villa Boas
Pinto (1948-1971), estudante de psicologia, desaparecida pela repressão da
ditadura militar -, era abril e os dias passavam, nenhuma notícia dela. Soube
que foi para a Casa da Morte e de lá desapareceu com um ferimento penetrante no
tórax e lesões do pulmão direito e hemorragia interna. Esse o laudo de sua
clandestinidade na militância, nunca mais o ar da sua graça. Ela se foi como
foram Helena, Labibe, Alceri, quantas
e tantas que ainda nem sei. Indagorinha atravessou o quarto e se achegou sensual
toda Lygia Clark: Nós somos os propositores: nós somos o
molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência. Através da
outra pessoa, o indivíduo pode perceber o seu próprio sentido, conhecer-se a si
mesmo. Beijou-me com saudoso afeto, alisou meus cabelos desalinhados,
acariciou minhas faces e montou arrebatada sobre o meu corpo para encenar alterando
a voz, o escritor estadunidense Michael
Crichton (1942-2008): Todas as grandes mudanças são como a morte. A gente só enxerga o outro
lado quando chega lá. Da minha parte, nunca mais iria embora, ficaria para
sempre comigo e aos beijos, afagos, entregas. Mas não, tinha de ir para voltar
quando quisesse. Até mais ver.
A ARTE DE WALTHER MORREIRA SANTOS
Trecho
de Todos deveriam estudar mandarim
(Multicultural, nov/2017), do escritor e ilustrador Walther Moreira Santos, autor de obras como O Ciclista
(Autêntica, 2008), Para que serve um amigo? (Becca, 2000), Helena
Gold (Geração, 2003), Dentro da chuva amarela (Geração, 2006), O
colecionador de manhãs (Saraiva, 2009), entre outros. Veja mais aqui &
aqui